Ontem eu a possuí... e você não é minha!
Paradoxo talvez, mas tudo aconteceu...
Em pensamento, o beijo que eu colhia, tinha,
O sabor desse beijo que você não deu...
De olhos cerrados, louco, a sua imagem vinha
Com a força do que é real e se impôs ao meu “eu”...
E o corpo que eu tocava e a minha mão sustinha,
Na sombra, aos meus sentidos cegos – era o seu!
Ontem, por mais que a ideia seja estranha e louca,
– você foi minha enfim!... apertei-a ao meu peito...
Desmanchei seus cabelos... machuquei-lhe a boca!
E possuía-a afinal, – num ímpeto criador –
Vingando o meu orgulho abatido e desfeito
Num doentio segundo de paixão e amor!
O sonambulismo é uma doença, dizem, e ontem eu acordei sonâmbulo. Paradoxo talvez, mas isto aconteceu.
Nunca havia vivido uma experiência desse tipo e, por isso, acho que devo dar detalhes do que comigo se passou para figurar nos manuais de medicina que versam o assunto.
Meu sonambulismo foi um sonambulismo brando, pelo menos é o que penso, porque não apaguei de todo dentro do meu sono, mantendo-me semiadormecido (um olho meio aberto, o outro dormindo), o que dá mais valor ao meu depoimento clínico.
Havia abusado do vinho, naquela noite, e fui dormir de língua empastada, o pensamento idem. Quando levantei de madrugada – e levantei dormindo – fui parar na casa da vizinha, uma jovem bela e presunçosa que se esquivava à asa que eu lhe arrastava dia a dia.
Como entrei lá não sei dizer, nem me perguntem, pois aprendi também que um noctâmbulo não sabe explicar tudo o que acontece durante sua crise sonambúlica. Fiquemos nos fatos principais.
A vizinha dormia bela adormecidamente quando perto dela cheguei, o feio adormecido que eu era, mais feio ainda porque usava um pijama de listas zebradas e tinha touca na cabeça.
Cutuquei-a de leve, acordando a bela, que me viu e se assustou, recuando sobre o leito. Eu fiz psiu com o dedo sobre a boca e ela, talvez porque ouvisse dizer que não se deve acordar um sonâmbulo em pleno transe, nada disse. Quieta ficou, mansa e quieta, nada arredia, consentindo que eu galgasse o leito quente, e a desnudasse da camisola transparente que mal a revestia.
De olhos cerrados, louco voraz, vendo-a ao meu lado – vendo é modo de dizer – desvalida e nua, apertei-a ao meu peito, desmanchei seus cabelos, machuquei-lhe a boca e possuí-a afinal num ímpeto de gozo, num doentio (o sonambulismo é uma doença, dizem), num doentio segundo de paixão e amor, sem admitir sequer que o beijo que eu colhi de sua boca tivesse o sabor desse beijo que ela não deu.
Hoje posso dizer, vingado o meu orgulho pela indiferença que antes me dedicara minha vizinha pela corte que eu lhe fazia e ela recusava, que ontem você foi minha enfim, oh, bela que abati no sono! Porque o corpo que eu tocava e minha mão sustinha, na sombra em que estava semiadormecido, aos meus sentidos cegos era o seu, vizinha, que possuí com a força do que é real e se impôs ao meu eu – o eu do feio e adormecido Tertuliano, em sua primeira e única crise de noctambulismo.
"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro a janela, pálido de espanto...
E conversamos toda a noite, enquanto
A via-láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda a procuro pelo céu deserto
Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que te dizem, quando estão contigo?"
E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas".
Houve um tempo em que Tertuliano gostava de ouvir Estela. Não vos direi quando foi isso. Digo-vos apenas que foi antes de Tertuliano vir a ser o tresloucado frívolo peralta que, diante de um espelho, foi flagrado por seu pai, quando contemplava desvanecido a tertuliânica figura dele mesmo, como sabeis e já ouvistes contar alhures.
Mas sinto que um cenário mínimo precisa ser composto para emoldurar Tertuliano nesse tempo em que gostava de ouvir Estela. Ponha-se então um enário mínimo nesse tempo.
Mas que seja um cenário romântico próprio de uma época em que Tertuliano (não se surpreendam os que me lerem) se atrevia a fazer versos e se lançava poesia adentro e poesia afora como um jangadeiro solto em pleno mar, porque, então, Tertuliano era bem jovem (embora não fosse jangadeiro). E, sendo jovem, era metido a poeta e, sendo metido a poeta, era metido a poeta parnasiano, eis o que Tertuliano era.
Mas vejo que ainda não temos o cenário, à cata do qual estamos rodando. Sejamos mais explícitos: imaginai então uma casa avarandada pintada de branco num ambiente rural, com telhado de quatro águas coberto de telhas canal, de janelas azuis abrindo para o campo, próximas a um pé de trepadeira são João e de uma jabuticabeira carregada, com um curral nem perto nem distante de onde as vozes dos bois e das vacas chegavam até o quarto de Tertuliano, à cama de Tertuliano, às oiças de Tertuliano, tirando-o ao sono da madrugada para abrir a janela e ver - não os bois e vacas ruminando a madrugada no curral, nem a trepadeira são João com suas corolas louras, nem sequer a jabuticabeira carregada de pérolas negras pelo tronco acima e pelo tronco abaixo -, mas para ver... Estela!
Porque Estela vinha até o quarto de Tertuliano para lhe ofertar o leite da mulher amada quando as vozes das reses mugiam na madrugada mal desperta e a via-láctea cintilava no firmamento como um pálio aberto.
Ao contrário, porém, da madrugada mal desperta, Estela vinha esperta e doidivanas, para se entregar a Tertuliano deleitosamente.
Se Estela vinha nua, quereis saber?
Não digo que viesse nua, mas quase-quase. Portanto, vinha seminua, envolta apenas (envolta é o termo) numa túnica leve e transparente.
E se buscais a imagem exata para o advento auspicioso de Estela, sob o pálio da via-láctea cintilante, digo-vos que Estela vinha envolta numa túnica inconsútil, que Tertuliano despia, não com dedos destros e canhotos, mas num sopro rápido e possante cheio de bovina volúpia que antecipava os longos mugidos que daria com Estela (e sobre Estela) até a madrugada se dilacerar em dia e Estela se dilacerar em êxtases.
E era aí, nesse translúcido e transitório instante em que a madrugada se rompia em dedos róseos sob o prepúcio do sol nascente, após o dilaceramento dos êxtases na palidez da aurora, que Tertuliano ouvia Estela, e enternecidamente ouvia.
O que ouvia Tertuliano, quereis saber? Pois vos digo que Tertuliano ouvia o canto de sereia de Estela, mas um canto de sereia satisfeita, canto-acalanto assim tão em surdina, mas tão em surdina e tão acalanto que se diria até que nem havia canto nesse cálido acalanto, mas puro encanto - encanto canoro sem canoridade alguma que, no entanto, era captado pelas oiças aguçadas de Tertuliano - oh, Deus, o que vos digo? -, canto de encanto que somente era captado pela sensibilidade amantíssima de Tertuliano, é o que quero dizer, porque relembro a vós que nesse tempo Tertuliano era jovem e parnasiano e o firmamento ainda se respingava das luzes da via-láctea cintilante, sob o prepúcio do sol rompendo a palidez da aurora.
Mas infelizmente o tempo passa, e como passa!
Tertuliano se fez adulto, o que significa dizer que deixou de ser parnasiano e largou do campo e das reses do campo para vir para a cidade, onde se fez frívolo e peralta como previra seu velho pai, não sabendo eu vos dizer em qual dessas duas especialidades se especializou primeiro, embora se especializando bem em ambas as duas.
E sobre Estela, o que posso dizer? Digo-vos, com muito dó no coração, que Tertuliano nunca mais a viu nem a ouviu encantadora e deleitosa.
E se quereis saber o que de Estela ficou em Tertuliano, na memória de Tertuliano, na alma de Tertuliano, sobre isso vos digo que ficou uma saudade terna, tenra e eterna, eterna e terna, e tão parnasiana que toda vez que Tertuliano se deparava com o conhecido soneto de Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, nome que por si só é um alexandrino perfeito, acudia-lhe à lembrança, enternecidamente, a imagem de uma casa branca avarandada, com janelas azuis, próxima de um pé de trepadeira são João e de uma jabuticabeira carregada, onde uma estrela candente ia a seu encontro para se entregar à epifania do sexo, em noites de via-láctea.
Da alcova na penumbra andavam flutuando
Em tênue confusão fantasmas indecisos,
Gerados ao fulgor da luz reverberando
Nos límpidos cristais e nos dourados frisos.
Era como um sabbath fantástico e nefando!
Das velhas saturnais talvez tivesse uns visos
A enorme projeção das sombras vacilando
Esguias e sutis sobre os tapetes lisos.
Havia no ambiente uns mórbidos perfumes;
Os bronzes, os biscuits se olhavam com ciúmes,
Nos dunkerques, de pé, por dentro das redomas.
Enquanto eu, sem temor, ao lado de uma taça,
Um conto oriental relia entre a fumaça
De um charuto havanês de excêntricos aromas.
Segundo soneto mote: Antropofagia – Carvalho Júnior
Mulher! Ao ver-te nua, as formas opulentas
Indecisas luzindo à noite, sobre o leito,
Como um bando voraz de lúbricas jumentas,
Instintos canibais refervem-me no peito.
Como a besta feroz a dilatar as ventas
Mede a presa infeliz por dar-lhe o bote a jeito,
Do meu fúlgido olhar às chispas odientas
Envolvo-te, e, convulso, ao seio meu t´estreito:
E ao longo do teu corpo elástico, onduloso,
Corpo de cascavel, elétrico, escamoso,
Em toda essa extensão pululam meus desejos,
– Os átomos sutis, – os vermes sensuais,
Cevando a seu talante as fomes bestiais
Nessas carnes febris – esplêndidos sobejos!
Deslizei o dedo distraído no cristal da minha taça de absinto e o gênio apareceu, disforme, abjeto, pigmeu. Com voz pastosa, disse:
– Aqui estou para satisfazer os seus pedidos, amo Tertuliano.
Se aquele era o gênio que me concedeu a taça de absinto – o avesso de um gênio saído de um conto oriental – não me era lícito duvidar dos seus poderes. Fiz o meu pedido:
– Quero ter a mulher dos meus sonhos num camarim de rei.
– Comecemos pelo camarim – disse o pigmeu. E, tirando da mão acromegálica um charuto havanês com a ponta em brasa fumegante, deu-lhe uma sugada forte, consumindo-o até o meio. Depois, soprou bochechas afora uma fumaça de aromas excêntricos, através da qual vi surgir o camarim real do pedido que eu fizera.
Mas o camarim que apareceu, com ar fantasmagórico em meio a mórbidos perfumes, estava longe de ser o camarim que eu desejara. Sobre os tapetes finos, nos límpidos cristais e nos dourados frisos, vacilavam sombras enormes como um sabbath fantástico e nefando, de fantasmas indecisos em velhas saturnais.
– Não foi este o camarim que eu lhe pedi – reclamei ao gênio pigmeu.
Com a voz pastosa, ele respondeu:
– Nem sempre a resposta a um pedido vem na medida do desejo. Vamos ver se me redimo com a mulher dos sonhos seus, amo Tertuliano.
E repetiu o ritual da fumaça de aromas excêntricos que soprou bochechas afora da sugada intensa e demorada que deu no restante do charuto havanês, que em cinzas se desfez.
Mas também a mulher que apareceu no camarim fantasmagórico, em meio a mórbidos perfumes, estava longe de ser a mulher com que eu sonhara. Estirada nua sobre o leito, tinha corpo de cascavel, elétrico, escamoso, que na penumbra reluzia abominável e onduloso.
– Não é esta a mulher dos sonhos meus! – bradei, aborrecido, ao gênio pigmeu.
– Nem sempre...
– Já sei... – cortei-lhe a frase que completei imitando sua voz pastosa: – ...a resposta a um pedido vem na medida do desejo.
– O amo Tertuliano pensa que errei na mágica? – perguntou em tom sarcástico o pigmeu.
– Um erro só foi pouco... Foram dois erros medonhos e grosseiros – respondi.
– Meu amo está dispensando os meus serviços? – açoitou-me a sua voz pastosa.
– Definitivamente. E desapareça da minha vista para sempre... – disparei, agressivo.
– Antes, porém... – ressalvou ele.
– Antes, porém...? – indaguei eu.
Antes, porém, com uma risada horrenda e debochada, qual besta feroz a dilatar as ventas de instintos canibais, o gênio pigmeu, movido pela fome voraz de lúbricas jumentas, atirou-se sobre o corpo elástico e escamoso da mulher nua sobre o leito, cevando em suas carnes febris seus ímpetos bestiais...
Quanto a mim, enojado e triste, restou sorver de um só trago o azedume azul da taça de cristal de onde saiu, ao toque distraído do meu dedo, um gênio disforme, abjeto e pigmeu.
Disseram-me que Tertuliano era um devasso.
– Quão devasso? – perguntei.
– Muito devasso... – informaram-me.
Sou curiosa – é um dos meus defeitos – e quis conhecê-lo. No nosso encontro, disse-lhe de cara:
– Disseram-me que você é um devasso.
– Devasso quanto? – perguntou ele.
– Muito devasso – respondi.
– Não sei se tanto...
– Mesmo assim gostaria de saber – disse-lhe cara a cara, com a franqueza que eu tenho (outro defeito meu).
– Vejo que você não perde tempo – comentou Tertuliano.
E não perdemos, fomos para a cama. Na cama, entreguei-me de corpo e alma (mais de corpo do que de alma), porque na cama com um homem perco o tino, caio em desatino, dou-me de cima embaixo sem qualquer controle, embora assuma o comando, insensata e sôfrega, porque sou masoquista – outro defeito que tenho.
Assim foi que sofregamente me dei a Tertuliano, insensatamente o provoquei na ânsia da devassidão que nele procurava.
– Seja devasso, honre sua fama! – dizia-lhe feroz. – Bata-me com força! Bem forte! Vire-me de bruços, arranhe as minhas costas, morda meu pescoço, deixe nele uma marca roxa, uma dentada violácea, coma a tanajura e o gafanhoto!
(Aqui me explico: a tanajura e o gafanhoto são duas tatuagens que eu tenho no bumbum, uma no bum direito, outra no esquerdo, consideradas do meu ponto de vista. O gafanhoto eu escolhi no mostruário do meu tatuagista; a tanajura eu tirei de um desenho de um livro de insetos, porque a tanajura tem um bumbum que lembra o meu, firme e arrebitado).
Voltemos aonde estávamos (estávamos eu e Tertuliano). Ao sentir que ele atendia ao meu pedido, cheguei ao auge do prazer, um prazer louco que para mim foi um espanto.
Despedimo-nos satisfeitos (segundo penso), eu com ele, ele comigo.
– Você é mesmo um devasso... – disse-lhe.
– Quão devasso? – perguntou.
– Muito devasso...
Disseram-me que disseram a ela que eu era um devasso.
– Quão devasso? – perguntei.
– Muito devasso... – informaram-me.
Sou curioso – é uma das minhas virtudes – e quis conhecê-la. No nosso encontro, ela me disse, logo de cara:
– Disseram-me que você é um devasso.
– Devasso quanto? – perguntei.
– Muito devasso.
– Não sei se tanto...
– Mesmo assim gostaria de saber – disse-me ela, cara a cara.
– Vejo que você não perde tempo... – comentei com a franqueza que eu tenho, outra das minhas virtudes.
E tempo não perdemos. Fomos para a cama. Na cama, ela se entregou de corpo e alma (tanto de corpo, quanto de alma), sem fazer rebuços, sem qualquer comedimento, em completo desatino, comandando as ações, insensata e sôfrega, porque era masoquista (virtude que eu não tenho).
Na ânsia da devassidão que em mim ela procurava, mas que estava nela, sofregamente me gritava ordens: – Seja devasso, honre sua fama! Bata-me com força! Vire-me de bruços, arranhe as minhas costas, morda meu pescoço, deixe nele uma marca roxa, uma dentada violácea, coma a tanajura e o gafanhoto!
(Aqui explico: ela se referia às tatuagens que tinha no bumbum, por sinal, bem feitas, sobre suas formas firmes e arrebitadas).
Para não decepcioná-la, até porque sou obediente, outra virtude que eu tenho, atendi ao seu pedido e, contrariando um pouco o meu bom gosto, porque não sou devasso tanto, comi-lhe a tanajura e o gafanhoto.
Despedimo-nos satisfeitos (segundo penso), eu com ela, ela comigo.
– Você é mesmo um devasso... – disse-me ela.
– Quão devasso?
– Muito devasso...– respondeu um pouco estouvadinha e cheia de malícia, deixando-me a ligeira impressão de que eu fora além das suas tatuagens, quando ela pediu para eu comer a tanajura e o gafanhoto.
Eu tenho amor pelo meu tipo feio,
Esguio e magro, muito magro e alto.
Às vezes fico embevecido e creio
Que o meu semblante é de terroso asfalto.
E noite adentro sonho um lago e em meio
Às águas calmas que em meu sonho exalto,
Vejo entre astros, a mim próprio alheio,
O meu perfil tristonho de pernalto.
Entre os dois céus iguais em que me perco,
De um grande amor pelo meu Ser me cerco
Abrindo as asas deste Ideal que é meu.
E assim perdido na quimera, absorto,
Espera pela paz, depois de morto,
Quem nunca soube para que nasceu.
De muitos sei que falam com os seus botões. Eu não. Aos meus botões não dou conversa mole. Prefiro conversar com o meu umbigo. Por ele vejo o mundo e meço a vida, por ele tive a vida e vim ao mundo.
Rendo-lhe então as homenagens que merece, dele me fazendo escravo submisso, visto que nele repousa o meu princípio de Arquimedes, o ponto de apoio que me torna capaz de mover o Universo. E nas conversas que fazemos intimamente por pouco me falta ouvi-lo dizer, “sou todo ouvido”.
Não estranheis, portanto, a afeição que nutro pelo meu umbigo, a atenção que lhe dou, a ternura com que o trato, os cuidados de que o revisto, beirando os limites da idolatria. Beirando os limites da idolatria, uma conversa! Idolatrando-o mesmo porque, em se tratando do meu umbigo, não admito limites que o inferiorizem ou menosprezem. Ao contrário. Faço questão de vê-lo triunfal e onipotente, num alto páramo cultuado, como deus que é.
Sempre fui assim desde que me entendo. Desde que, menino ainda, pensava que umbigo era embigo, meu bom amigo!
Já naquele tempo me postava diante do espelho a contemplar embevecido meu corpo juvenil e nu, sem pejo ou pêlo. Criei assim o hábito de me amar em carne e osso, e de sobejo, amar o meu reflexo esbatido na superfície reluzente e lisa.
Desta forma aprendi que eu e meu reflexo somos dois, apesar de sermos um ser único, divididos pela aura especular que faz de um o outro, idênticos entre si em cara, tronco e membros, sem falar no espírito.
E se alguém me diz hoje que sou feio e fátuo, e nunca soube para que nasci, respondo, irado, que quem ama o feio, belo lhe parece, e que tenho amor pelo corpo que eu tenho. Feio? Esguio? Magro? Muito magro e alto? Um semblante terroso de asfalto? Um perfil tristonho de pernalto? Um frívolo peralta?
Pouco importa essa descrição entrecortada e fria, pois que me vejo pelo olho amigo do meu estimado umbigo e, embora sendo eu realmente esguio e magro, de semblante terroso de asfalto, em mim tudo se me parece bem proporcionado, até harmonioso, tendo meu umbigo por epicentro do conjunto como se fora um pequeno astro – o astro-rei da composição em que me tornei.
E quando, de umbigo atento, espreito-me nas contemplações intermináveis de mim mesmo, ponho-me a sonhar os sonhos que exalto e de um grande amor pelo meu ser me cerco, enquanto, de umbigo deslumbrado, perco-me no celestial endeusamento do meu corpo, abrindo as asas deste ideal que é meu, somente meu. E assim perdido na quimera, absorto, nada faz mudar meu jeito de ser ou de pensar, nem sequer quando me acode à lembrança uma frase da infância – “tipo que morto não faria falta” – que à outra frase se soma no presente: “quem nunca soube para que nasceu”. Porque assim sou eu! E pronto.
O feio nome que meu pai me deu,
Graça sem graça, sem beleza e arte,
Como se eu fosse um outro Malasarte,
Como se fora reles Zebedeu,
É nome triste que me abate o Eu.
Só de ouvi-lo, o coração me parte,
Só em dizê-lo, digo um disparate,
Pecha cruel, meu pai me concedeu.
Se não bastasse, chamam-me peralta,
“tipo que morto não faria falta”,
Sátiro louco que na vida flano...
Justiça quero! Não peço desculpa,
Pois cabe a meu pai o peso da culpa
Que a mim denominou Tertuliano.
É preciso escrever mais alguma coisa?
Caríssimo Pedro J. Nunes:
Além da nobre função de adornar os textos, os asteriscos têm a finalidade de fazer uma chamada para um esclarecimento no curso da leitura, geralmente em pé de página, numa conversa à parte. Vamos, pois, a essa conversa, não em pé de página, mas num dedo de prosa.
Deixaram na minha caixa postal 517, um envelope amarelo com um punhado de textos denominados Tertulianas, pretensamente da autoria de um certo (ou incerto) Tertuliano. Será pseudônimo? Nome próprio?
Nunca encontrei ninguém na vida com nome tão pouco sugestivo e, que eu saiba, somente um eloquente doutrinador da Igreja, nascido em Cartago lá por volta de 155, “gênio poderoso, absoluto e sombrio”, autor de A Apologética e de outros cartapácios, conforme leio no meu Dicionário Prático Ilustrado, foi premiado com tal nome.
Mas afora o cartaginês vetusto, o único Tertuliano de que me lembro é o personagem paspalhão do delicioso soneto Velha Anedota, de Artur Azevedo. Aliás, é o mesmo soneto com que se iniciam os textos que estou lhe remetendo.
E por que os remeto?
Fique tranquilo que não é para ouvir a sua opinião crítica sobre o conjunto da obra que recebi no envelope amarelo. Não! Não iria submeter um amigo, tão cheio de afazeres como você, ao encargo de dar uma opinião crítica e abalizada sobre um material a respeito do qual eu próprio já formei o meu juízo. Que, por sinal, não é nada favorável.
O tal Tertuliano, ou seja lá quem for, meteu-se a escrever algumas divagações literárias inspiradas, diria até mal inspiradas, nas poesias de uns poucos vates brasileiros, num trabalho que, se algum mérito tem, é o de transcrever as poesias.
Aqui do meu discretíssimo observatório, inclino-me a dizer até que foi tempo perdido, o de Tertuliano, ao escrever os textos que escreveu, tanto quanto será tempo perdido o de levá-los a sério.
Dispenso, portanto, a sua preciosa opinião crítica, meu caro Pedro J. Nunes. E se remeto os escritos a você é porque talvez lhe seja interessante instalá-los no seu site Tertúlia para preencher espaço, nada mais do que para preencher espaço, se a tanto os escritos se prestarem. E só por isso, ou seja, por admitir a remota possibilidade de você vir a hospedá-los no Tertúlia, é que tomei a liberdade de entrar em texto alheio (o de Tertuliano) para cravar-lhe um asterisco logo no início, e dedicar a você as tais Tertulianas. Com o quê fica explicado o asterisco da dedicatória e a própria dedicatória.
Um abraço amigo, do amigo Luiz Guilherme Santos Neves.