Soneto mote: Azul – Orlando Teixeira

Chapéu azul, vestido azul, de azul bordado,
Azuis o para-sol e as luvas. Senhorita,
Como um lótus azul por um deus animado,
Passa, toda de azul, por mil bocas bendita.

Há um bálsamo azul nesse azul que palpita,
Misticismo de um mundo, há muito e em vão, sonhado,
Azul que a alma da gente a idolatrá-la incita,
Azul claro, azul suave, azul de céu lavado.

Deixa na rua um rastro azul que cega e prende,
Não sei quê de anormal, de fantasma ou de duende,
Que prende os pés ao solo e ao mundo os olhos cerra;

Vendo-a, não se vê mais nada que o azul, tonteia...
Como num sonho azul, logo nos vem à ideia
Um pedaço de céu azul passeando a terra.

 

Rapsódia em azul

Na sala de um azul esmaecido, ela surgiu – esboço de mulher, encanto de menina. Vestia um vestido de veludo azul, de gola azul rendada, porém de um azul mais claro do que o do vestido. Tinha à cabeça um chapéu azul, de aba descaída para o lado, de azul bordado. Calçava botinhas azuis, de bicos finos e fivelas prateadas, que iam além dos tornozelos, amarradas com cordéis azuis entrançados em laçadas várias.

Num ronronar de gata disse meu nome, meu nome horrível, mas apenas a primeira parte do meu nome – Tertu! –, num tom de voz também azul. E ao dizer meu nome, ainda que partido ao meio, apossou-se de mim inteiramente, senhora do meu desejo, dona da minha vontade.

Por favor, entendam-me: até então nunca ninguém dissera meu nome assim tão curtamente, extraindo de um insípido Tertuliano um Tertu intimista e carinhoso.

Num sortilégio mágico fiquei rendido. E ela, percebendo a anulação dos meus sentidos, assumiu o controle das ações, infanta e obscena.

Disse-me então que eu ficasse nu, e nu fiquei. Tendo-me nu diante dela, o meu corpo percorreu ao léu, apalpando-me as reações dos nervos e dos músculos com a mão enluvada. Não se contendo, desfez-se peça por peça das peças azuis que a cobriam, atirando-as em minha direção uma por uma, à medida que as tirava: as luvas azuladas; o chapéu de azul bordado e aba descaída; o vestido de veludo azul. Ficou apenas com as botinhas azuis de bicos finos que lhe iam além dos tornozelos, amarradas com cordéis azuis entrançados em laçadas várias.

Não nego que estava sugestiva. Eu disse sugestiva? Pois me corrijo: estava deslumbrante! Mais ainda: arrebatadora estava, e arrebatou-me.

Senhora do meu desejo, dona da minha vontade, obrigou-me a percorrer seu corpo de léu em léu, primeiro com as mãos, depois com os lábios, por fim com a língua.

Naveguei assim aquele corpo azul, os seios de um azul mais claro, de mamilos azuis marinhos, o ventre de suave azul, o sexo azul de céu lavado, sentindo-me envolver num bálsamo azul que, palpitante, se exalava de cada toque que eu lhe dava. Finalmente, eis que ela finalmente me oferece o lótus azul da sua fenda extrema, ainda inviolada.

Não sei quê de anormal me reteve os pés ao solo, à beira de precipitar-me loucamente sobre a frincha de um azul profundo, azul que tonteia, a mim oferecida sem que eu a pedisse. No entanto, contive-me e interroguei-lhe:

– Aonde me quereis levar, com vossa impudência e imprudência, oh senhorita da tentação azul que cega e prende?      

– Ao celeste azul do céu e ao negro azul do inferno – respondeu-me com o bálsamo azul de sua voz azul. – Ou acaso não sois o frívolo peralta de quem ouvi falar?

Era desafio demais para a minha falta de juízo. Num arranco, tomei-a e, tomando-a, cravei-lhe na carne azul, nua e infanta, a chama azul do meu ferrete, enquanto ela, gritando ardentemente, sentia escorrer, do lótus azul que a chama azul varava, o rastro azul da sua perdida virgindade.  

 

Soneto mote: Prosopopeia da Pepa ao Pupo – Emílio de Meneses

Parece peta. A Pepa aporta à praça
e pede ao Pupo que lhe passe o apito.
Pula do palco, pálida, perpassa
por entre um porco, um pato e um periquito.

Após, papando, em pé, pudim com passa,
depois de peixes, pombos e palmito,
precípite, por entre a populaça,
passa, picando a ponta de um palito.

Peças compostas por um poeta pulha,
que a papalvos perplexos empulha,
prestando apenas pra apanhar os paios,

permuta a Pepa por pastéis, pamonha...
– Que a Pepa apupe o Pupo e à popa ponha
Papas, pipas, pepinos, papagaios!

 

Infância

Versão 1

Parece peta mas não é. Quando eu vi Pepa nua, pela primeira vez conheci um corpo de mulher, em miniatura num corpo de menina.

Éramos crianças e brincávamos de chicotinho queimado no quintal da casa dela, por entre patos, porcos, periquitos. O chicotinho era um ramo de açucena que ora  eu escondia, ora ela, para o outro achar. Quem estava na vez de procurar o chicotinho tinha de fechar os olhos para não ver onde ele era escondido. (A bem da verdade lhes digo: Foi Pepa quem escolheu o ramo de açucena porque gostava da trovinha: “Açucena quando nasce / Põe a rama pelo chão / Menina quando namora / Põe a mão no coração”).

– Pronto, pode procurar – ela me ordenou, lá pelas tantas.

Andei às tontas pelo quintal ouvindo-a dizer “está frio”, quando eu estava longe do chicotinho, “está quente”, quando eu chegava perto dele.

Entre idas e vindas de um lugar a outro, fui percebendo que eu estava frio quando ficava longe de Pepa, e que ficava quente quando me aproximava dela.

– O chicotinho está escondido em você – acabei gritando, enquanto ela ria nervosa e excitada.

Avancei sobre ela agarrando-a para correr minhas mãos sobre o seu vestido fino.

– Assim não vale, assim não vale, Pupo! – contorcia Pepa o seu corpinho flexível de menina dentro dos meus braços magros.  

– Então deixa eu ver onde o chicotinho está – disse-lhe ao largá-la.

– Não está comigo! – respondeu-me Pepa.

– Jura que não está?

– Juro! – disse ela rindo.

– Se você está rindo é porque está mentindo! – concluí com certa lógica.

– Estou falando a verdade... O chicotinho não está na minha roupa – protestou Pepa com ar severo.

– Então tira a roupa que eu quero ver... – foi a minha resposta.

Aqui é importante que se abra um parêntese para uma necessária explicação: não é por ter sido eu um reconhecido peralta desde fedelho que pedi a Pepa para tirar a roupa. Meu pedido foi feito com naturalidade, sem a mínima intenção maldosa. Afinal, eu tinha apenas oito anos e Pepa apenas sete anos tinha. Dada a explicação, feche-se o parêntese. Até porque, para o meu espanto, Pepa satisfez o meu pedido. 

Primeiro, puxou o vestidinho fino pela cabeça e, depois, num gesto precípite, como se não quisesse pensar no que estava fazendo, tirou a calcinha.

– Viu? Eu não disse que o chicotinho não estava comigo? – disse uma Pepa pálida para um pálido Pupo, magnetizado pela imagem nuinha diante dos seus olhos.

– Onde é que ele está então? – conseguiu finalmente perguntar o magnetizado Pupo.

– Procure aí no quintal, seu bobalhão! – respondeu Pepa, depois de se vestir e fugir correndo para dentro de casa, perpassando, ainda pálida, por entre um porco, um pato e um periquito.

Foi desse modo mágico e inesperado que, pela primeira vez em minha vida, eu conheci um corpo de mulher, em miniatura num corpo de menina.

Mas que inesquecível pepa!

 

Versão 2 (preferida pelo poeta)

Pupo viu a pepa de Pepa.

Pepa viu o pupo de Pupo.

Eram crianças, ricos de infância, e viam a vida cheia de segredos.

– Por que Pupo é diferente de Pepa? – perguntou Pepa a Pupo.

– É porque Pupo tem pupo e Pepa tem pepa? – Pupo respondeu com outra pergunta.

– É... – disse Pepa.

– Acho que Pepa tem pepa porque faz pipi sentada e Pupo tem pupo porque faz pipi em pé.

– E por que a diferença é só na frente e não é também atrás? – Pepa perguntou a Pupo.

– Acho que é porque Pepa e Pupo fazem popô sentados.

Pepa ficou pensativa por um pouco. Depois voltou à prosa:

– Sabe que eu acho o pupo de Pupo feio? 

– E por que você acha o meu pupo feio? – perguntou Pupo.

– Tenho vergonha de dizer por quê – Pepa respondeu. Depois disse, ainda pensativa: – Você tem que perguntar à minha pepa...

– Pepa de Pepa, por que Pepa acha o pupo de Pupo feio? – perguntou um Pupo de olhar peralta.

Fazendo uma vozinha diferente, Pepa respondeu por sua pepa, pondo as mãos em concha em torno da boca para alongar a frase:

– É porque o pupo de Pupo parece um apito...

Foi a vez de Pupo ficar pensativo. Aí prosseguiu:

– Sabe que eu também acho a pepa de Pepa feia?

– E por que você acha a minha pepa feia? – perguntou Pepa. 

– Também tenho vergonha de dizer por quê. Você vai ter que perguntar a meu pupo.

– Pupo de Pupo, por que Pupo acha a pepa de Pepa feia? – perguntou Pepa.

Fazendo uma vozinha diferente, Pupo respondeu, pondo as mãos em concha em torno da boca e alongando a frase:

– É porque a pepa de Pepa parece uma passa...

Pode parecer peta. Mas foi assim que Pupo e Pepa, ante os segredos da vida, conversaram sobre a pepa dela e o pupo dele, puros de infância, ricos de phantasia.

 

Soneto mote: A Iara – Olavo Bilac

Vive dentro de mim, como num rio,
uma linda mulher, esquiva e rara,
num borbulhar de argênteos flocos, Iara,
de cabeleira de ouro e corpo frio.

Entre as ninfeias a namoro e espio:
e ela, do espelho móbil da onda clara,
com os verdes olhos úmidos me encara,
e oferece-me o seio alvo e macio.

Precipito-me, no ímpeto de esposo,
na desesperação da glória suma,
para a estreitar, louco de orgulho e gozo...

Mas nos meus braços a ilusão se esfuma:
e a mãe-da-água, exalando um ai piedoso,
desfaz-se em mortas pérolas de espuma.

 

Delírio espetacular

Recebo de um espelho antigo o reflexo de um rapaz simpático e formoso, e recebo das águas de um rio o reflexo de uma mulher de olhos verdes e úmidos, que espio e namoro.

A imagem do rapaz que o espelho reflete e a da mulher de olhos verdes e úmidos que vem das águas do rio viajam pelo espaço e sobre mim convergem, retornando depois aos pontos de origem. Mas retornam trocadas: a imagem do rapaz vai para o rio e a da mulher, para o espelho.

E, antes que eu tenha tempo e entendimento para decifrar o duplo sentido dessa móbil troca de reflexos, a imagem do rapaz irrompe do rio e, na desesperação de um ímpeto e num borbulhar de argênteos flocos, choca-se contra a superfície do espelho que se desfaz em cacos, dos quais me encaram os olhos verdes da mulher esquiva, que namoro com um ai piedoso, mas louco de gozo.

 

Soneto mote: Desdéns – Raimundo Correia

Realçam no marfim da ventarola
as tuas unhas de coral – felinas
garras com que, a sorrir, tu me assassinas,
bela e feroz. O sândalo se evola;

o ar cheiroso em redor se desenrola;
pulsam os seios, arfam as narinas...
sobre o espaldar de seda o torso inclinas
numa indolência mórbida, espanhola...

Como sou infeliz! Como é sangrenta
essa mão impiedosa que me arranca
a vida aos poucos, nesta morte lenta!

Essa mão de fidalga, fina e branca;
essa mão, que me atrai e me afugenta,
que eu afago, que eu beijo, e que me espanca!  

 

Delírio extremo

Batem-me à porta. Abro e vejo que era ela, com suas unhas de coral, felinas garras realçadas no marfim da ventarola, que abana à espanhola.

Mandei-a entrar, antes que se fosse.

Entrou fidalga e branca, sem nada dizer, sem se fazer de rogada. Sabia ao que vinha, por quanto tempo vinha. Puxando-me pela mão, levou-me para o quarto, esperta e tresandando a sândalo, não me dando azo para resistências. E resistir pra quê? 

Entramos juntos na alcova (naquele tempo eu tinha uma alcova), mas juntos é maneira de dizer porque ela ia à minha frente, arrastando-me como se tivesse uma tarefa a cumprir urgentemente. Antevendo o que me estava reservado, fiz-me dócil, entregue, abandonado, pronto para o que desse e viesse, e o Diabo mandasse.

Pois foi o diabo!

Ela me despiu com dedos ágeis e, com dedos ágeis de unhas ferinas cor de coral, percorreu-me o corpo todo, arranhando-me o torso, espancando-me o rosto, extraindo centelhas de fogo dos meus poros epidérmicos. As centelhas irradiavam-se pelo quarto como vaga-lumes, chegando a dar luz própria ao ambiente.

Gradativamente, no auge do prazer arfante que me dava aquela mão, bela e felina, que me batera à porta, tive a impressão de que, num estalo de dedos, ela se desdobrou em duas, e em três, em quatro, em cinco e seis mãos a cada novo estalo que dava com os dedos, para, assim multiplicada em pássaros, me fazer subir ao Céu e descer ao Inferno, arrancando-me a vida aos poucos, numa morte lenta!

Quando finalmente deu por encerrada a bacanal dos manuseios assassinos, deixou-me prostrado na alcova, numa indolência mórbida.
Retirou-se como veio: silente e esvoaçante, solta no espaço, abanando de leve a ventarola.

(Não sei se já lhes disse que, desde fedelho, sou obcecado por mãos – este é o meu fetiche! – e às vezes, só de pensar nelas, caio em delírio extremo).

 

Soneto mote: Particularidades...  – Gilka Machado

Muitas vezes, a sós, eu me analiso e estudo,
os meus gostos crimino e busco, em vão, torcê-los;
é incrível a paixão que me absorve tudo
quanto é sedoso, suave ao tato: a coma... os pelos...

Amo as noutes de luar porque são de veludo,
delicio-me quando, acaso, sinto, pelos
meus frágeis membros, sobre o meu corpo desnudo,
em carícias sutis, rolarem-me os cabelos.

Pela fria estação, que aos mais seres erriça,
andam-me pelo corpo espasmos repetidos,
às luvas de camurça, às boas, à peliça...

O meu tato se estende a todos os sentidos;
sou toda languidez, sonolência, preguiça,
se me quedo a fitar tapetes estendidos.

 

Particularidades

Esclareci a Tertuliano que a função dele seria a de um coadjuvante que ficaria em cena quedo e calado. Menos até: um vulto apenas, na posição de olheiro discreto, uma sombra na espreita, nada mais.

Presunçoso e explodindo vaidade ele quis protestar. Mas não lhe dei chance.

– Ou uma pontinha, ou fica de fora!

– Aceito ser o vulto – concordou ele, vendo-me irredutível.

Voltei-me para a figurante principal:

– Você está pronta? Estudou o roteiro?

Ela disse que sim e iniciamos a filmagem. Seu papel seria o de uma odalisca recostada no leito, como no quadro de Matisse. Em gestos lascivos, ela perpassaria as mãos, inicialmente em toques ligeiros, depois bem mais arteiros, pelos altos e baixos relevos do seu corpo, que desnudaria aos poucos.

– Luz, câmera, ação! – soltei a ordem.

Com dedos de veludo, os gestos sedosos, o tato suave, a odalisca se pôs a acalentar os seios, a beliscar os mamilos, a acarinhar o ventre, a ouriçar os pelos, a dedilhar o púbis, a alisar a cabeleira presa...

– Corta! – gritei veementemente. – Você tem que soltar a coma... Está no roteiro!

– Ela me olhou desconcertada e, meio sem jeito, disse:

– Eu li o roteiro, mas o que é coma?

– É cabeleira vasta... Os seus cabelos... – expliquei pacientemente como convém a um diretor que filma um script. – Veja o que o roteiro diz logo adiante: “sobre o meu corpo desnudo, em carícias sutis, rolaram-me os cabelos...”

– Posso dar uma sugestão? – interveio Tertuliano, saindo da sombra em que se mantivera.

– Quedo e calado! – cortei-lhe de chofre a pretensão.

– Mas é uma ideia para melhorar o script... – insistiu, intrometido.

– Calado e quedo! Tive muito trabalho em conseguir este roteiro – falei mais alto. E dirigindo-me à figurante principal, estendida sobre o leito, perguntei:

– Podemos recomeçar?

Ela assentiu com a cabeça e recomeçamos.

– Luz, câmera, ação!

Com dedos de veludo, os gestos sedosos, o tato suave, a odalisca se pôs a acalentar os seios, a beliscar os mamilos, a acarinhar o ventre, a ouriçar os pelos, a dedilhar o púbis, a alisar a coma que soltou sobre o torso desnudo enquanto se agitava em espasmos repetidos, em toda a sua languidez e fingida sonolência.

– Corta, corta! Está perfeito... – gritei exuberante.

E a equipe toda de filmagem se cumprimentou em festa. Mas quando procurei Tertuliano para também saudá-lo pelo bom trabalho de olheiro em meio às sombras, ele, mudo e calado, havia se escafedido em alta velocidade, e me avexa dizer para qual inadiável particularidade...

 

Soneto mote: Dança do ventre – Cruz e Souza

Torva, febril, torcicolosamente,
Numa espiral de elétricos volteios,
Na cabeça, nos olhos e nos seios,
Fluíam-lhe os venenos da serpente.

Ah! Que agonia tenebrosa e ardente!
Que convulsões, que lúbricos anseios,
Quanta volúpia e quantos bamboleios,
Que brusco e horrível sensualismo quente.

O ventre, em pinchos, empinava todo
Como réptil abjeto sobre o lodo,
Espolinhando e retorcido em fúria.

Era a dança macabra e multiforme
De um verme estranho, colossal, enorme,
Do demônio sangrento da luxúria!

 

Dança na ilha dos Amores

Eu estava na ilha dos Amores quando uma ninfeta apareceu, os seios nus, os pés descalços, a saia longa. Trazia na cabeça uma tiara, com um cravo e uma rosa de adorno, e tinha na mão uma cítara de ouro.

Ao ver-me triste e solitário disse:

– Por que você está solitário e triste, formoso fauno?

Olhei para um lado, olhei para o outro, e confirmei, porque não havia mais ninguém ali por perto, que o formoso fauno a quem a ninfeta se referia era eu, Tertuliano. Então lhe respondi:

– Estou triste, bela ninfeta, porque estou só na ilha dos Amores...

– Pois vim romper sua tristeza, já que a sua solidão estou rompendo – disse-me ela. E num gesto mimoso – gesto de ninfa – entregou-me a cítara de ouro, pedindo: – Toque!

– Mas não sei tocar... – desculpei-me aparvalhado. 

Com sua mão de borboleta, ela tirou o cravo que adornava a tiara em sua cabeça e me entregou, dizendo:

– Toque com o cravo. É um cravo mágico que só de tocar as cordas da cítara, a cítara toca.

– A cítara toca ao toque do cravo? – perguntei agnóstico.

– Faça o teste...

Fiz o teste, e as cordas da cítara, tangidas pelo leve toque do cravo nos meus dedos, se fizeram musicais e maviosas.

Olhando para mim com olhos egípcios, disse a ninfeta:

– Agora vou dançar para você a dança do ventre.

Minha mão tremeu e tremeu o cravo nas cordas da cítara quando a ninfeta disse o que dissera. Mas nem assim a música estremeceu ou a cítara se fez menos maviosa, podendo a ninfeta iniciar sua dança de muitos requebros e empinos.

Onde buscarei palavras para exprimir tanta volúpia e tanto sensualismo quente no corpo da ninfeta, na cabeça, nos olhos e nos seios? Dança febril? Espiral de elétricos volteios? Convulsões ardentes? Lúbricos anseios? Vibrante serpenteio?

Que agonia tenebrosa a minha, assistindo ali à retorcida dança da ninfeta, e querendo defini-la aqui numa expressão precisa, numa palavra exata. Deus do Verbo, oh, deus do Verbo, aplacai minha agonia, dai-me o termo que almejo, soprai-me do seu celeste vocabulário o vocábulo a que aspiro... Como? Terei ouvido direito e entendido certo? ... Torcicolosamente!? Ora, graças, deus do Verbo, posso voltar agora ao que estava descrevendo!

Assim lhes digo que torcicolosamente contorcia-se a ninfeta, torcicolosamente contorceu-se muito tempo, torcicolosamente sensual e mística até que cessou a música da cítara e cessaram os pinchos da ninfeta como se o cravo em minha mão, que fizera vibrar as cordas do instrumento, tivesse cumprido o seu mágico papel e esgotado toda a sua energia.

Saindo dos seus bamboleios, o ventre retornando à calma natural do ventre, mas ainda de face ruborizada, disse-me a ninfeta, cravando em mim seus olhos egípcios:

– Agora é sua vez de dançar...

Ao ouvir estas palavras, tremeram-me as pernas, tremeram-me as mãos, os braços tremeram-me, tremeu-me o corpo por inteiro parecendo até que eu já estava começando a me bambolear antes da hora.

– Mas não sei dançar... – desculpei-me novamente aparvalhado, aliás, muito mais aparvalhado do que antes. 

– Eu dou um jeito nisso – disse a ninfeta. – Dispa-se! 

– Vai ser mesmo necessário? – perguntei envergonhado.

– Vai.

Impossível duvidar que não fosse necessário, ante a resposta categórica que ouvi.

Ao ver-me despido, a ninfeta se aproximou de mim sem cerimônia e tocou meu corpo com o dedo para me eletrizar e me predispor à dança. Foi uma aproximação de sonho, algo inaudito. Senti de perto seu hálito morno e perfumado, seu aroma inebriante, sua pele quase roçando a minha pele, a ponta aguda e quente do seu dedinho elétrico pousando no meu peito. Mas nem assim dancei, porque uma parte do meu corpo se tornara hígida!

Sem se afastar de mim, ela tirou então a rosa que adornava a tiara em sua cabeça e com sua mão de borboleta tocou de leve, de leveza leve, a porção que hígida se fizera no meu corpo, dizendo num encantamento: – Dança!

Em seguida, dedilhou a cítara com suavidade, e a dança aconteceu!  Mas estranhamente foi apenas a parte hígida do meu corpo que, tocada de leve pela rosa da ninfeta, entregou-se, num paroxismo crescente de serpente, a uma dança macabra e multiforme, empinando-se toda como um réptil abjeto, colossal, enorme, retorcendo-se em fúria incontida, fazendo lembrar o demônio sangrento da luxúria!   

Quanto tempo durou aquela dança esdrúxula e fantástica não sei dizer. Mas durou o tempo em que a ninfeta tangeu a cítara com sua mão de borboleta.

Quando a música cessou, minha higidez havia se desfeito – e graças ao deus do Verbo posso dizer que se desfez torcicolosamente.

O pior, porém, é que foi torcicolosamente para sempre.

 

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