De "Oh, Suzana" a Luz em agosto

Luiz Guilherme Santos Neves

Talvez tenha sido no Espírito Santo onde se cantou em inglês pela primeira vez no Brasil a conhecida canção norte-americana “Oh, Suzana, não chore por mim” - e cantada poucos anos depois de composta por Stephen Collins Foster.

O autor – está no Google para quem quiser consultar – foi considerado o "pai da música norte-americana", nascido em 4 de julho de 1826 e falecido em 13 de janeiro de 1864. Suas canções, incluindo “Oh, Suzanna”, "Camptown Races", "My Old Kentucky Home", "Old Black Joe", "Beautiful Dreamer", "Old Folks at Home", "Swanee River" permanecem populares até hoje.  

Oh! Suzana, tida como escrita e composta em 1847, trata da viagem de um negro do Alabama até Nova Orleans, na Louisiana, para encontrar sua amada. O estribilho, que se repete três vezes no tilintar da melodia, diz no original: “Oh, Susanna,/Don't you cry for me/Well, I come from Alabama/With my banjo on my knee” que, na conhecida versão para o português corresponde a “Oh, Suzana,/não chore por mim/eu venho do Alabama,/tocando bandolim”.

A cantiga, a se dar crédito ao aspirante da marinha inglesa Edward Wilberforce, chegou ao Espírito Santo, mais precisamente à cidade de Vitória, a bordo da corveta Geyser, em 1851. Nela estava embarcado Wilberforce, autor de um relato interessantíssimo com base na missão de patrulhamento que os britânicos faziam no litoral brasileiro combatendo o tráfico clandestino de africanos escravizados.

A obra foi publicada em Londres, em 1856, e recebeu em português o título O Brasil visto através de uma luneta com notas sobre a escravidão e tráfico de escravos (acessível no site Estação Capixaba).

As passagens relativas ao Espírito Santo constituem os capítulos XV e XVI, escritos em estilo direto, com pitadas de humor e derramamentos poéticos. Estava-se, então, nos anos imediatos à assinatura da Lei Euzébio de Queiroz que decretou oficialmente o fim do tráfico negreiro para o Brasil, em 1850.

Apesar disso, a aristocracia rural brasileira, economicamente dependente da mão de obra escravizada, sobretudo a atrelada à lavoura do café em franca expansão em diferentes partes do território nacional, como acontecia também no Espírito Santo, não se deu por vencida pelas barreiras e perseguições ao comércio escravocrata. Em reação aos seus interesses contrariados apelou para o tráfico clandestino de escravos que se incrementou no litoral brasileiro, muitas vezes sob as vistas grossas das autoridades governamentais, apesar do combate sistemático que a Grã-Bretanha desencadeou contra os navios negreiros até mesmo em águas nacionais.  

O fato é largamente estudado em suas implicações políticas, sociais e econômicas dispensando maiores comentários. Importa sim lembrar que no Espírito Santo os africanos escravizados foram desembarcados clandestinamente em diferentes pontos da costa como Itapemirim, Benevente, Piúma, Guarapari, Vitória e São Mateus.

A Geyser, por exemplo, localizou dois navios na baía de Vitória transportando africanos escravizados. Em um deles, procedente de Cabinda (atual Angola, na África), havia 180 prisioneiros, conforme informação de Wilberforce. Como também é de sua autoria o curioso registro da recepção que foi dada a um grupo de convidados quando da curta estada da corveta inglesa na baía de Vitória.

Trata-se de informação pitoresca cuja autoria o oficial de marinha atribuiu a um jornalista anônimo, correspondente de jornal que estaria presente, no dizer de Wilberforce, a um “acontecimento tão elegante” [a recepção na Geyser] que “não poderia prescindir o seu vates sacer [poeta sagrado]que adequadamente, assinando-se ‘nosso correspondente’, fez o relato da cerimônia, que apareceu em algum jornal”. 

O texto desse estranhíssimo e anônimo “correspondente jornalístico”, precedida pela chamada notoriamente irônica da lavra de Wilberforce, requer transcrição integral para o propósito destes comentários. Senão vejamos:

“FESTIVIDADES NO ESPÍRITO SANTO (de nosso correspondente)

Ontem um grupo consistindo de alguns membros da elite desta cidade foi a bordo do vapor de guerra inglês, a convite do capitão. Depois de compartilhar uma refeição, servida com grande esplendor no camarote do nobre milorde, o grupo passou ao convés superior, onde um toldo decorado com bandeiras cobria suas cabeças. A música começou a tocar, e os convidados entregaram-se à nobre diversão da dança. O galante capitão instou um dos jovens oficiais do navio a tomar parte na dança, tomando a mão de uma jovem; mas este convite o indelicado oficial recusou, desculpando-se polidamente, e sem empregar a exclamação nacional inglesa. Evidentemente os britânicos assumiram seus melhores modos para nos recepcionar a bordo, pois nem sequer uma vez durante minha visita escutei a praga nacional God dam! É de uso tão frequente que um erudito inglês publicou um livro mostrando que ela é proferida a cada cinco minutos por todo homem, mulher ou criança da Grã-Bretanha. Isso é certamente espantoso. Observei um grupo de aspirantes em pé, afastados dos que dançavam, conversando com um pequeno pajem moreno, cujo traje era elegante, consistindo em um chapéu lustroso com uma fita dourada, jaqueta azul com botões amarelos e um par de botas de cano alto. Uma senhora idosa era observada com especial atenção por esses aspirantes, e percebi que circulavam alguns rumores a respeito de sua idade, alguns assegurando que ela tinha trinta e dois anos, outros, apenas dezoito. Por informação de determinada pessoa, fui capaz de confirmar que esta conjectura estava correta; mas como nossas mulheres envelhecem quando ainda muito novas, comparativamente falando, e essa senhora tinha um filho de quatro anos, e um outro de idade mais tenra, a primeira opinião não deveria ser considerada infundada.

Terminada a dança, os marinheiros no castelo de proa entretiveram os visitantes com algumas canções, uma das quais era o pedido de um negro a uma moça chamada Susana para que não chorasse por ele, pois estava vindo vê-Ia, causando efeito impressionante, já que todos os marinheiros cantavam o refrão em coro [Grifei]. O cantor principal teve uma vida extraordinária, tendo até se apresentado uma vez no palco. Em minha próxima carta, pretendo iniciar uma biografia desse homem notável.

Retornando os convidados a terra, o cordial e alegre capitão ordenou que luzes azuis fossem acesas e rojões disparados para iluminar o retorno deles. Os fogos de artifício clareavam os prédios próximos à beira-mar, e iluminavam os moradores atônitos que se juntavam nas ruas, boquiabertos e maravilhados. Quando subi atrás da carruagem de minha esposa, não pude deixar de lançar um olhar de despedida ao navio, em prejuízo de minhas meias de seda, que foram salpicadas de lama.”

Seja ou não o texto da camuflada autoria de Wilberforce - o que tende a confirmá-la o estilo humorístico que igualmente reponta em várias passagens do seu relato de viagem –, recolhe-se da sua leitura a informação da chegada ao Espírito Santo, em primeiríssima ancoragem, da canção “Oh, Susanna/Don't you cry for me”, na voz animada, e bem animada, da marujada da Geyser.

Fico a imaginar o longo percurso que a alegre e saltitante canção, então de composição recente, realizou em curto espaço de tempo, numa época desprovida dos meios de comunicação modernos, indo da América do Norte à Inglaterra para, daí, vir desembarcar nas águas capixabas onde teria rompido seu ineditismo no Brasil. Isso se a narrativa de Wilberforce for verdadeira e não uma invencionice divertida. E poderia ter sido divertissiment de sua parte?

Vejam-se a favor desta hipótese os seguintes pontos em voo de pássaro: 1) a intencional omissão da autoria da reportagem e do nome do jornal; 2) o emprego da expressão latina vates sacer relacionada ao autor da matéria como se fosse uma entidade etérea com poder de descrever a festa na Geyser por dela ter participado incorporeamente; 3) pela dificuldade que seria recepcionar os convidados a bordo da corveta para onde tinham que ser içados (dentre os quais senhoras com chapéus emplumados e saiões rodados), tendo todos que ser transportados até a Geyser em embarcações ligeiras, visto que na época os cais de Vitória não comportavam a atracagem direta de navios maiores obrigados a permanecer de molho nas águas em frente à cidade; 4) e last but not the least, o delicioso fecho da reportagem que, ao falar de carruagem e meias de seda de quem as vestia, remete muito mais aos usos sociais de uma urbe anglo-vitoriana do que aos da nossa obscura Vitória na metade do século XIX.

E já que Wiberforce proporcionou a deixa com a sua possível invencionice literária, e até para dar sentido ao título deste texto, digo do meu lado que sempre que ouço cantar ou tocar “Oh, Susana”, recordo-me do começo do notável romance de William Faulkner, Luz em agosto, e me pergunto se não teria Faulkner, conscientemente ou não, escrito aquele começo sob a influência da canção de Stephen Foster. Vejam se cabe ou não a minha conjectura lembrando que a Lena de Faulkner é Lena Grove, a jovem branca que vai à procura de Lucas Burch, o negro que a engravidou:Sentada junto ao caminho, observando a carroça que se aproximava enconsta acima, Lena pensa: ‘Venho do Albama até aqui. Boa caminhada. A pé desde o Alabama. Boa caminhada’. E pensa também: apesar de nem há um mês andar na estrada, já estou no Mississipi, mais longe de casa do que nunca”. 

A diferença de Luz em agosto para a canção de Foster é que, no romance, é a mulher que vai do Alabama até o negro a quem procura e, ao invés de um bandolim na mão, leva um filho no ventre.

Mas, divagações literárias à parte, não serei eu o contestador da minha própria tese, ou seja, de que teria sido a bordo da corveta Geyser que a canção “Oh, Suzana” chegou ao Brasil pela primeira vez entrando pelo Espírito Santo. Que seja, portanto, fato histórico o relato de Wilberforce.

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