Torre do delírio

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FRIDA

As mulheres do signo de Salamandra, como Frida, têm quadris estreitos, carnes alvas e frias, o sexo transparente. Quando se entregam aos homens agem sem sofreguidão, comedidas e antissépticas.

Nessas ocasiões é possível ver o membro masculino encravado nos seus ventres onde aparece como sombra através da película da epiderme.

Poucos toleram esta visão sombria. Outros, mais experientes, sabem que ver ou não ver é uma questão de posição. E geram novas nativas de Salamandra.

Eu, de minha parte, não consigo ereção com as mulheres desse signo, não tanto por elas, muito mais pelo seu próprio signo.

A verdade é que as salamandras me causam um misto de pânico e de repulsa desde quando, na infância, me caiu às costas um desses seres sem voz e sem sangue que me entrou pela pele e passou a povoar meus pesadelos.

Portanto, tão logo Frida chegou à torre informei-a, honestamente, da minha aversão às salamandras.

Ela pareceu aceitar com naturalidade as explicações que lhe dei e passamos a conversar fraternamente sobre o prepúcio dos deuses, os liquens afrodisíacos e os sonetos de Cantáridas.

Na hora da saída Frida me estendeu a mão úmida e se despediu com um verso de Neruda: “todo em ti fué um naufragio”.

Uma hora depois, bebeu cicuta resfriada com cubos de gelo.

 

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PARNÁSIA

O bando de vestais entrou na torre em festa pândega ao som de flautas, címbalos e sistros, dançando em torno de uma deusa.

Todas eram do signo de Sátiros, o que as fazia debochadas e ruidosas.

No alvoroço dos cânticos e das músicas pareciam em transe, empolgadas num grande alarido que lembrava o ladrar de cães em saturnália.

No meio da algazarra, eu me vi subitamente transportado numa bandeja de prata e servido à deusa, a quem chamavam Parnásia, que me violentou com impiedade.

Depois, todas saíram sem sentimento de culpa e com sorrisos de asteriscos.

Ficou apenas um fauno gentil cuja presença eu não notara antes, que me lambeu as feridas e me devolveu minha machucada virilidade.

 

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ADA E ANA

Há um instante na noite, um fugaz instante noturno, no qual reina o silêncio absoluto. É o momento das metamorfoses.

Dura um milésimo de segundo, mas nele tudo é possível: os pássaros se convertem em peixes, os peixes em água, a água em espumas, estas em nuvens que viram novamente pássaros voltando tudo ao normal como se nada tivesse se passado.   

No entanto, naquele átimo de tempo reservado às metamorfoses, a noite mergulha em si mesma milhões de anos e os encantamentos acontecem.

Ada e Ana surgiram na torre como pássaros, batendo as asas cheias de vento, quebrando assim o silêncio das metamorfoses.

Seus corpos gêmeos tinham escamas misturadas às penas, e elas voavam como peixes num aquário, harmônicas.

Violado o silêncio, rompeu-se o encantamento: Ada e Ana despencaram no meu leito sob a forma de duas formosas mulheres, mas em momentos diferentes de metamorfose – uma coberta de escamas, outra vestida de penas.

Ada e Ana eram do signo de Abtu e Anet, os peixes gêmeos e sagrados que precedem a barca do Sol na diuturna viagem sobre a Terra.  

É o signo das grandes amorosas, que andam aos pares, protegendo-se juntas contra estranhos e violentadores.

Nunca pude saber qual dos elementos sagrados, se Abtu, se Anet, influenciava Ada e influenciava Ana, ou vice-versa. Mas a ciência deste saber não seria bastante para explicar a paixão que as unia, na forma cúmplice do amor sem falo.

Também não sei dizer por que aquelas aves erráticas, que bastavam a si mesmas, acabaram caindo no meu leito.

Ao se espojarem nele entregaram-se, cônjuges e ambidestras, a um ritual de carícias marcado por afagos e sussurros, concordante em gestos e palavras, feito de igualdades, exceto pelas escamas de uma e pelas penas da outra.

Na medida em que a intimidade entre elas crescia de intensidade, Ada e Ana se envolviam mais e mais numa recíproca doação de si mesmas a ponto de se trocarem penas e escamas.

Quando se saciaram até a exaustão dos seus ardores, retomaram o vôo interrompido, radiosas como os peixes sagrados que precedem a barca do Sol na viagem diária em torno da Terra.

Mas eu não mais sabia qual era Ada, qual era Ana, transmutadas as penas e as escamas.

 

 

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BALDINA

São do signo de Mandrágora as mulheres que rondam os patíbulos, as carpideiras e as masoquistas. Suas faces têm a cor do absinto, os olhos são chagas profundas.

Para atingirem o orgasmo precisam ser despedaçadas parte por parte, como pétalas de malmequeres, perdendo mãos, pernas, braços, pés. Seus brados de prazer, que lembram os uivos das lobas, soturnos e eternos, são gritos de dor. Eles varam a noite e enlouquecem os homens porque Mandrágora tem a propriedade, quando atingida no cerne do seu ser vegetal, de levar à loucura os que ouvem seus gritos.

As mulheres deste signo, como Baldina, depois de possuídas, ficam petrificadas sete dias para cada parte despedaçada do seu corpo. A recomposição se dá sob uivos igualmente pungentes.

Quando Baldina entrou na torre eu já estava com cera nos ouvidos, para não lhe ouvir os brados, prudente e solerte como Odisseu ante as sereias. Mesmo assim foi um encontro doloroso.

Do silêncio seráfico em que me refugiara entendi os apelos masoquistas de Baldina, ávida de flagelos, rogando orgasmos, o corpo em contorções, os olhos pedintes, as unhas dilacerando a própria carne.

Por medida de segurança somente desobstruí os tímpanos depois que ela se foi.

Em vão: seus gritos lancinantes se despregaram da cera derretida nos meus dedos e me enlouqueceram por doze luas.

 

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NATÁRCIA

Quando ela apareceu, imunda e obscena, identifiquei-lhe o signo, Catoblepas, ser horrível de nome, horrível de forma, horrível de odor.

Vinha desgrenhada e farroupilha, parecendo uma revolucionária francesa. E era, como pude notar pelo barrete frígio que trazia na cabeça.

Não quis saber seu nome – a uma mulher dessas não se pergunta a graça porque talvez não a tenha. Mas indaguei, erraste de endereço?

- Não, cidadão, claro que não! – disse-me ríspida.

Era impossível suportar sua presença fétida, de forma que retruquei incisivo:

- Claro que sim, claro que sim.

Ela fitou-me com olhos revolucionários e sentenciou:

- Burguês, teu lugar e na guilhotina!

Tentei dizer, pertences a um tempo que morreu, querendo convencê-la desta verdade, mas logo me senti tomado por braços vigorosos que me enlaçaram o pescoço firmemente.

A luta era desigual, eu, pobre burguês, indefeso recluso, ela, jacobina, manipuladora de foices e ancinhos.

Em desespero, nem sei como, arranquei-lhe da cabeça o barrete colorido, símbolo da liberdade nos dias parisienses da Bastilha, quando os ideais eram críveis.

Foi o bastante para que minha algoz se desfizesse num bafo de vento nauseante, que assoviou forte parecendo clamar, allons enfants de la patrie...

Eu ainda estava com o gorro na mão, sem saber o que fazer com ele, quando me surgiu a mais bela mulher que vi na vida, talvez por ser do signo de Unicórnio.

Tinha a face resplandecente, olhos de ametista, madeixas – ela possuía madeixas – purpurinas.   

- Atrasei-me um pouco – lamentou-se, e sua voz era terna como um acalanto.

Perguntei-lhe:

- Qual a sua graça? – achando, não sei por que, que seu nome era Natárcia.

- Minha graça sou eu – respondeu – e estava certa.

Desculpei-me pelas condições da torre, o leito sujo, os lençóis em desalinho, o odor insuportável, procurando esconder atrás do corpo o barrete libertário que me pesava na mão.

Ela sorriu unicorniana, que é como sorriem as mulheres de Unicórnio, e disse:

- É uma pena - indo-se para sempre.

Desde então me tornei um antirrevolucionário convicto.

 

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KALENA

Kalena pertence à confraria das sádicas.

Bem a propósito, entrou na torre a cavalo, estalando o chicote que extraía fagulhas do ar.

Estava ali para me humilhar – queria mostrar que não mais precisava de mim, achando que era injúria o que eu considerava uma bênção.

Chegou num corcel alado de asas negras e triangulares que tinha o dom de se imobilizar no espaço.

Aquele ginete fantástico, projetando sombra no meu leito, era a própria encarnação do signo de Kalena - Burak, o cavalo de asas, a montaria das deusas, que rege a perversidade feminina.

Influenciada por Burak, Kalena tinha obsessão por equinos. Em seus devaneios sexuais cavalgava os amantes açoitando-os, furiosa.

Agora eu podia vê-la em ação tendo como parceiro o cavalo voador.

Kalena o montava nua, o sexo em contato direto com o lombo do animal, seus pelos contra os pelos dele.

A posição parecia propícia, pois Kalena sacudia-se em orgasmos cíclicos enquanto chicoteava o corcel, que, aos relinchos, pinoteava.

Depois de cada êxtase, num gesto feiticeiro, ela lhe oferecia ambrosia retirada dos seus seios, para apaziguar o animal que bufava e sangrava.

Era espantoso vê-los naquela exibição dentro da torre que, no entanto, parecia ter se dilatado demasiadamente para comportá-los.

Ao partirem pelos ares, ele brandindo as asas colossais, ela, o chicote com línguas de sangue, voltei a viver o silêncio claustral da reclusão.

Mas a torre havia, de fato, crescido extraordinariamente e se transformado num mosteiro.

Nela me vi monge exaltado, mas sem fé, catando migalhas de ambrosia pelo chão, em solidão miserável.

 

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ISMÂMIA

A mais sensual das minhas visitantes, Ismânia, tinha olhos de ágata e, no sexo, aromas hipnóticos. Impossível resistir aos seus encantos, apesar de conhecer o estigma do seu signo, Kujata.

Kujata é o touro portentoso e disforme cujo corpo tem quatro mil apêndices: bocas, línguas, olhos, orelhas, pés, chifres.

Por que quatro mil?

Adivinhos e cabalistas não encontraram até hoje a explicação para esse mistério que ameaça perdurar até a consumação dos séculos.

Mais inexplicável é a maldição que pesa sobre as mulheres deste signo que, ao atingirem o êxtase, transformam seus amantes em Kujata.

Durante quarenta dias e quarenta noites eles conservam o aspecto monstruoso, sendo horrível vê-los nessa condição taurina.

Eu conhecia a extensão da maldição que acompanha as mulheres de Kujata. Mas apesar disso não pude resistir aos aromas inebriantes de Ismânia e acabei transformado em touro, multiplicado em bocas, línguas, olhos, orelhas, pés, chifres – ser abominável e horrendo.

Era necessário ficar agora em quarentena, em paciente quarentena animal, pare recobrar minha perdida identidade humana.

Caí de joelhos como touro abatido, fechei bovinamente meus quatro mil olhos e mergulhei no sono.

 

 

21

LUMÊNIA

Espesso como a saliva dos bois foi o sono em que mergulhei.

Nos bois os sonhos se passam em tonalidade sépia, os movimentos são lerdos, os sons inaudíveis.

A mulher com quem sonho é do signo de Ninfas e seu nome, Lumênia. As mulheres deste signo são graves e sensíveis, de admirável beleza, mas sua nudez é mortal se contempladas nuas.

Quando elas amam cobrem-se com os cabelos, que deixam crescer até os pés, para poupar a vida dos amantes.

No meu sonho Lumênia aparecia nítida, envolta em sua cabeleira vasta. Eu a podia contemplar à vontade, num privilégio raro, imune à maldição de sua nudez acobertada. Mas este deleite era apenas visual sendo-me impossível tocá-la, imobilizado no chão como eu estava, convertido em touro descomunal de quatro mil olhos.

Em compensação, numa extravagância onírica, eu sonhava através de cada um dos quatro mil olhos, sorvendo a beleza de Lumênia em prazer multiplicado.

Esta multiplicação de imagens, porém, não me foi suficiente. Cúpido, desejei mais.

Por meio de movimentos labiais precisos, pedi a Lumênia que me deixasse ver seu dorso, oculto sob os cabelos longos. Ela me encarou séria, mas aquiesceu.

Virando-se, compenetrada, ofereceu-me o dorso nu e eu comprovei o quanto ele era belo.

Pedi então que me mostrasse os seios. Ela se fez de rogada e eu roguei, rogante.

Ela cedeu. Lentamente, bem lentamente, repartiu com as mãos suaves a cabeleira solta, desvendando seus pomos e eu comprovei o quanto eram perfeitos.

Fascinado, ousei o máximo e pedi que me revelasse o sexo.

Ela me olhou repreensiva e disse não com o dedo. Insisti. Supliquei, suplicante, súplice.

Ela me perscrutou pensativa. Quando me dispus a implorar de novo, fez-se dócil e me concedeu a graça entreabrindo timidamente as pernas.

Antes, porém, que me fosse dado ver o que me era dado, irradiou-se de Lumênia  uma luz fortíssima que me desfez o sonho.

Acordei aturdido, com as pálpebras queimando, as pestanas em desalinho, querendo com meus quatro mil olhos saber onde estava e o que tinha acontecido. Mas não consegui. Estava cego.

 

22

FRANCINA

O círculo de gelo que envolvia Francina era emblemático: simbolizava seu signo, Uroboros - “a serpente que morde a própria cauda” -, sem princípio, sem meio e sem fim.

As mulheres deste signo são ensimesmadas e cheias de soberba. Amam a reclusão e o silêncio. O círculo de gelo que as cerca, como os anéis a Saturno, significa isolamento.

Nesse isolamento vivem, porém, inquietas e esquivas, inclusive sexualmente, relutando em se realizar com plenitude, sob a força adversa do seu signo.

Se não me agradava a visita de Francina, também não me aborrecia por completo.

Havia nela um quê de permanente desafio que me atraía, que me atiçava o desejo de lhe varar os dardanelos, de lhe romper o anel protetor, nele introduzindo um começo e um fim, para levá-la a conhecer os despenhadeiros de si mesma.

Por isso lhe dei espaço no meu leito e passei a despi-la com dedos sábios.

Despertada em anseios, eis que cede e se entrega.

Mas repete-se o círculo vicioso das nascidas em Uroboros: quando lhe pego as mãos me dá os seios; se os acaricio, me oferece o ventre; se o roço com meus lábios, me expõe o sexo; quando dele começo a cuidar me vêm, em seu lugar, as coxas.

Em pouco tempo, eu que principiei pelas mãos estou saindo pelos pés, nesta inglória relação amorosa que termina sem pé nem cabeça.

 

23

SHAMSH

Longa e demorada é a aprendizagem dos encantamentos. Dessa lenta elaboração dos saberes encantados, não escapam nem os bruxos, nem as fadas.

Shamsh, a visitante daquela noite, era uma fada em início de carreira, noviça no adestramento do ofício. Era também do signo de Fadas, que dota as mulheres de temperamento arrebatado, sobretudo na adolescência, quando fustigadas pelos primeiros frêmitos do sexo.

Shamsh me apareceu num manto de estrelas, o bastão mágico em uma das mãos espargindo cintilações.

Diante de sua iluminada aparição indaguei, serviçal e vassalo:

- Em que posso te servir, pequena fada, eu, um mísero mortal?

- Foi-me dado satisfazer a três desejos.  Venho realizá-los contigo, mas segundo a minha vontade – respondeu.

- Qual será a minha função? – quis saber interessado.

- Vou provar em tua carne a fúria animalesca dos irracionais – esclareceu, zoófila, o olhar libidinoso.

- Tudo isso comigo? – inquiri, retraindo -me, pois me repugna a prática da zoofilia.

- Contigo e agora! – insistiu sem pestanejar, despindo-se do seu manto de estrelas.

Jovial e nua – nua e menina – era ainda mais etérea do que vestida de estrelas. Com a varinha mágica aproximou-se de mim, dizendo:

- Vou te converter num ginete impetuoso, feito para o meu prazer.

- Por que não te servir de mim, bela fadinha, apenas como criatura humana? – perguntei malicioso.   

- Quero viver as grandes descobertas amorosas, provar das extravagâncias dos sentidos. Transforma-te em cavalo! – proclamou, imperiosa, tocando-me a fronte com o bastão brilhante.

No passe da mágica, virei cavalo- marinho.

Não faço a menor ideia de como procedem os cavalos-marinhos para arrefecerem o arroubo das donzelas, muito menos das fadinhas. Nem sequer tenho conhecimento de como se reproduzem cavalos-marinhos, de cuja virilidade até desconfio.

Com tamanha ignorância não pude corresponder à expectativa da ansiosa Shamsh. Decepcionada, ela me retornou à forma humana dizendo:

- Vamos tentar outra vez.

Novamente senti na fronte os duros açoites das suas varetadas mágicas e ouvi a ordem esbaforida:

- Transforma-te em touro!

O peixe-boi no qual me transmutei não era de todo desprezível. Confesso que a espécie em extinção me conferia é até um ar de raridade.

Mas como não sou entendido em peixe-boi, tudo ignorando sobre a vida amorosa desses seres, fiquei abúlico.

Shamsh desencantou-me visivelmente contrariada.  

- Perdi meu segundo desejo. Agora só me resta o último. Vê se não me decepcionas! – fuzilou. E me varetou mais fortemente ainda:

- Que me venha a cobra, o falo por excelência!

Desta feita me vi serpente, mas serpente de duas cabeças, uma em cada extremidade do corpo.

Ora, diz o povo, que tudo sabe, que cada cabeça uma sentença, e assim nenhuma das minhas duas cabeças sentenciava na direção desejada por Shamsh.

Tamanha foi a sua decepção que cheguei a temer que ela me condenasse à perpétua condição de réptil.

Mas felizmente a decepção que a abateu superou o seu desejo de vingança.

Ao partir voejando em seu manto de estrelas, Shamsh fez questão de declarar que eu era um caso sem perdão, fulminando-me do ar, com voz zangada:

- Incompetente!

Não me ofendeu o duro veredicto da fadinha que se atrapalhou no aprendizado dos encantamentos. Certamente, um dia, quando ela se graduar em fada e adquirir a ciência dos condões, há de me fazer justiça e reconhecer que foi dela a incompetência e os desacertos cometidos. Talvez então reapareça para uma experiência mais bem sucedida.  

Claro que me repugna a prática da zoofilia, mas quem resiste aos encantos de uma fadinha?

 

24

ELLE

O duplo é o igual e também o desigual, jamais o irmão gêmeo.

A imagem refletida no espelho não é o duplo porque é contrafação e toda contrafação é distorção – precisa ser conferida com monóculo, sendo necessário tirar-lhe a impressão de cada dígito para atestar a exatidão por veredicto.

A imagem reproduzida no caleidoscópio pode ser miragem, cintilações do ópio, refulgência, mas também não é o duplo.

O duplo não se mostra, se disfarça, mas quando se disfarça apenas se entremostra, insistindo em passar por um só, por ele mesmo.

Pergunte-lhe, de repente, quem sois? e ele talvez se traia respondendo, eu ou eu.

O mais certo, porém, é que responda, sou eu e mais ninguém, querendo dizer com isso, eu sou um, eu mesmo, o mesmo.

Esta resposta pode ser meia verdade, escamoteação ou mentira por inteiro, dependendo do ponto de vista ou do ponto de fuga e até do horizonte das estrelas. Mas é bom retê-la para posterior confirmação.

Há duplos que partem sozinhos, ímpares, à procura de si mesmos. Navegam mares, ultrapassam terras, viajam ventos. Outros se encontram nas curvas dos meridianos, recompondo elos, ou vagam, errantes e incompletos, pelos paralelos. E há os que são múltiplos, como os heterônimos do poeta, numa só pessoa vários desdobramentos.

Dos duplos, muito se pode falar, mas o que aí está basta. É bom começo, muito mais do que mereço. Exceto que faltou dizer, para melhor desfecho, que os genuínos duplos, seres binários, são do signo de Duplo, no livro dos signos imaginários.

Assim, ao me dar conta, minha nova visitante estava no meu leito. Suas coxas eram lisas e firmes, os seios miúdos, o cabelo cortado rente, o sorriso circunspecto.

Ao chegar nada falou, pois a eloquência havia sido afogada no rio vítreo das palavras e não se devia quebrar a mudez da madrugada.

Com pés róseos na aurora leve subiu ao leito em recatada nudez, como um nauta que entrasse na caravela Glória. Deitou-se junto a mim, discretamente, e iniciamos a circunavegação dos nossos corpos, guiados pelos astrolábios e ao som dos hinos.

Só então percebi, ao lhe tocar o androceu, que era masculino.

 

25

ARDÉSIA

Terrível é o signo de Pandemônio, ser informe, associado ao Diabo e aos ventos ensandecidos. Sua força explode em mil demônios que se desdobram no ar e penetram nos espíritos dos nascidos à meia noite do dia 29 de fevereiro dos anos bissextos.

As pessoas nascidas nessa rara ocasião pertencem a esse intersigno terrível cuja existência muitos astrólogos negam e cujo aspecto é o de um ser inimaginável, jamais descrito ou reproduzido em arte.

As mulheres regidas por Pandemônio, como Ardésia, as mais fulgurantes da terra, são inacessíveis aos homens porque seu prazer é fruto dos vendavais aos quais oferecem o sexo, as pernas abertas em ângulo livre, uma na direção do nascente, outra do inconsequente.

Quando atingem o clímax conseguem gritar tão alto que sufocam o som das ventanias que as sacodem violentamente. Quando se saciam, o que raramente acontece, seus corpos ficam prostrados, mas o espírito se desprende pelo espaço na busca infatigável de novos tufões.

Assim que Ardésia surgiu na torre, depois de uma dessas peregrinações sem rumo, vinha grandemente aquietada pelas tempestades trágico-marítimas, à cata das quais singrara os oceanos.

Graças às rajadas desses ventos marinheiros, com que se havia defrontado no caminho, adivinhei que eu sobreviveria ao seu trânsito no meu leito.

Mesmo assim, Ardésia trazia dentro de si, como peste a bordo, a insaciabilidade das mulheres pandemônicas.

Deitando-se ao meu lado, ela escancarou-se libertina, o sexo inteiramente violável, não me dando alternativa: invoquei Eólio, inspirei fundo e soprei-lhe na chaga aberta o vento abissal dos meus pulmões.

Que mais poderia fazer?

 

O EXTREMO DO DELÍRIO

Nunca mais revi minhas visitantes, desaparecidas aparições de um zodíaco fantástico – afirmo-o sem tristeza e sem saudade.

Às vezes, entretanto, julgo pressentir, no íntimo da torre da qual sou prisioneiro e onde cabem minha loucura e minha solidão, a aproximação de algumas delas, por meio de vagas impressões que me fazem recordar a gargalhada maliciosa de Octô, a fragrância inebriante de Ismânia, os uivos lupinos de Baldina, o ruflar de asas de Ada e Ana.

Mas são sensações fugazes e imprecisas que não se convertem em delírio, nem chegam a completar um devaneio.

Admito, então: é hora de tocar um réquiem para um sonhador.

 

 

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