Torre do delírio

7

SET

Trágico é o signo de Nesnás a que pertence Set.

Nesnás não é pássaro, nem réptil, nem peixe. Nesnás é a criatura pela metade, incompleta. Um ser parcial para o qual não existe o dúplice, com um só olho, um só braço, uma só perna, meia cabeça, meio coração, a alma partida.

Uma criatura que, por algum desígnio cruel, não se completou no ato da criação – um ser inconformado.

É da regra do horóscopo que os seres se completem conjugando as características dos signos a que pertençam.

A fatalidade em Nesnás transcende essa regra, pois Nesnás não se completa nem com Nesnás.

A remota possibilidade da junção de indivíduos desse signo faz com que uma força poderosa os repila e ainda lhes agrave a solidão.

Esta carência congênita do outro e de si mesmos marca os nascidos em Nesnás como Set, que só se realiza amorosamente nos sonhos – seus êxtases são oníricos.

Isto a torna infeliz e esta infelicidade é irremediável.

O Inferno em Set é ainda maior. Nascida em Nesnás ela tem a figuração de Nesnás: é meia mulher de cima em baixo, por dentro e por fora e até, como é natural, se natural fosse palavra aplicável a Set, tem apenas meio psiquismo.  Com o olho solitário, vê mal; com metade da língua, expressa-se com parcimônia; com meio cérebro, pensa unilateralmente; quando fica nua está seminua. No entanto, sofre em dobro com o seu coração de um só ventrículo.

Quando Set entrou na torre, saudei-a, dizendo, bem-vinda seja, minha cara.

- Cara metade – respondeu à saudação com amargura. Em seguida emudeceu de forma lapidar.

Depois de um dia resolvi quebrar o silêncio gélido que fazia brotar estalagmites do assoalho, esfriando a temperatura ambiente.

- O que é desta vez? - indaguei fazendo-me um pouco de idiota, muito de cínico.

- O de sem – respondeu, e adivinhei que ela queria dizer sempre, em sua meia língua.

Novamente o silêncio se instalou entre nós enquanto as estalagmites cresciam.

No sétimo dia, por muito que me enternecesse sua condição de meia mulher, não suportava mais olhar para Set. De tanto vê-la a minha frente, condenada à metade de si mesma, comecei a ficar vesgo.

Se isto continuar vou acabar tendo também um olho só, refleti, egoísta. Falei, então, com frieza:

- Creio que já é dia de você partir.

Ela entendeu o recado.

Constrangido, mas aliviado, vi Set abandonar a torre, silenciosa e triste, derramando lágrimas de gelo pelo único olho de sua meia face. As lágrimas pingavam no chão, pesadas como cristais, formando novas estalagmites.

Terrível é o destino de quem nasce em Nesnás.    

 

8

OCTÔ

Octô me recordava as mulheres obesas dos quadros de Rubens.

Do signo de Esfinge, surgiu com seu corpo em 8, farta de carnes, além e aquém da cintura, equador abaixo e acima do qual não havia pecado.

Seus seios eram opulentos, os braços nédios. Nas coxas de Octô balançavam-se dobras em alto relevo, brancas e quentes, tão quentes – contava-me ela em meio a gargalhadas cínicas – que muitos homens as preferiam como vagina, dada a dificuldade de acharem a própria, perdida no seu baixo ventre.

Esta dificuldade aumentava devido ao famigerado hábito das mulheres de Esfinge de buscarem o orgasmo em três diferentes posições, nas três diferentes horas do dia: pela manhã, quando se põe de quatro como potras selvagens; ao meio dia, quando ficam de pé; e à noite, quando de tripé, posição conhecida apenas pelas nascidas em Esfinge, nem sequer mencionada no Kama Sutra.

Esfinge é signo de mulheres temperamentais e inventivas cujo furor sexual explode em vagas que chegam a ser atemorizantes.    

Octô honrava este signo de explosões famélicas. Veio a minha torre de marfim porque conhecia a minha habilidade em lhe proporcionar prazer no local adequado, acima das grosas rugas que tinha nas coxas.

Enquanto se agitava debaixo de mim como um terremoto, Octô propunha-me enigmas.

Iniciava com adivinhações ingênuas, do tipo o que é, o que é, que sai de casa para fazer barulho no mato ou vice-versa.

Eu entrava nesse jogo de alegres adivinhas, que a estimulava, e dizia, não sei, não sei!

Octô se matava de gozo, levando-me numa vertigem.

- Agora, outra, decifra: olho para os lados, tenho dois olhos; olho para a trás, tenho mil olhos; olho para a frente, estou cega. Vamos, veja se mata – desafiava-me a incompetência.

- Não sei, não sei – e realmente não sabia.

- O presente, o passado e o futuro – berrava em nova borrasca de prazer.

- Vamos à outra - recomeçava, infatigável. - No centro da roda, a roca; no centro da roca, a roda. Mata, mata esta!

Ou eu acabava com aquele sismo de voracidade ou ele acabaria comigo.

- O nada absoluto – arrisquei, inventando a resposta.

Octô despedaçou-se nos meus braços como se tivesse caído de um precipício.

- Liquidei a Esfinge – pensei, recordando o mito. Só me resta matar meu pai, casar com minha mãe e vazar os olhos.

 

 

9

NOA

Ah, as inalcançáveis mulheres de Quimera!  Interditas aos homens, paira sobre elas o estigma da inviolabilidade, sina das mulheres deste signo.

Condenadas a permanente virgindade, nem sequer ousam rompê-la com as próprias mãos. Quando tentam, desesperadas, os dedos viram água e o máximo que conseguem é refrescar o sexo.

Mesmo assim não se abatem, alimentando-se de esperança. A chama implacável que vibra dentro delas as mantém vívidas, embora não possa ser extinta nunca, tornando-lhes o sexo indecifrável. As mais ardentes, ao morrerem, não chegam a ser sepultadas – são transformadas em cinzas pelo fogo interior que as devora. As mais incontidas aplacam a ansiedade com o cilício dos atormentados, podendo, desse modo, alcançar a bem-aventurada santidade. Finalmente, as mais sensuais projetam em sonhos seus anseios amorosos, vivendo-os intensamente, embora sem lograr o clímax.

Noa pertencia a essa terceira casta de quimerianas.

Quando apareceu na torre, o corpo à mostra na túnica transparente, já chegou em transe, o hálito recendendo a marijuana, as pupilas abertas em papoulas, o desejo trepidando nas veias.

Eu sabia o que viria em seguida: deitada ao meu lado, prontamente pegaria no sono.

Seus sonhos brotariam, então, dos olhos acrílicos, que jamais se fecham, mesmo quando ela dorme.

Minha missão era entrar nesses sonhos para satisfazer-lhe os desejos até onde nos permitisse sua indestrutível virgindade.

Conhecendo, porém, suas limitações, eu não me sentia interessado.

Diante da minha relutância, Noa excedeu-se em sedução.

Nos sonhos não existem limites. Ao som de Stardust, ela se pôs a bailar pela torre, messalina, rodopiando sob luzes multicores, evoluindo com leveza, ora lenta, ora lépida, em sua levitação oferecida. Aquela provocação me avivou o sexo.

Lá de cima Noa percebeu a ereção que revelava minhas segundas intenções, mas que para ela era o desejado caminho das primícias.

Sem perda de tempo, despencou do alto, excitada e sôfrega. Mas despertou no meio da queda consumando-se a inviolabilidade das nascidas em Quimera.

Afinal, “pode uma segunda quimera, bamboleando-se no vácuo, engolir segundas intenções?”. 

 

10

DASA

Dasa surgiu intempestivamente – não a esperava àquela hora.

Quando invadiu a torre, Noa ainda estava comigo.

Dasa, do signo de Garuda, que rege as mulheres impulsivas, era mulher da cintura para cima e homem daí para baixo.

Apesar disso não se via fealdade nela. Ao contrário: era bela em suas duas partes, masculina e feminina. Eu diria até que, em cada parte, mostrava-se particularmente bela, gentil-homem, gentil-mulher.

Trajava uma blusa leve e solta que, no entanto, deixava visíveis os seios diminutos, e uma calça de napa negra, justa, que combinava com as botas de cano curto. Na cintura, o cinturão cravejado de luzes alternativas lembrava um desses anúncios circulantes, que parecem não se apagar nunca. Suas mãos, de dedos longos, eram grandes e fortes, a boca esplêndida, os lábios plenos.

Ao vê-la, Noa não se conteve e disse, espontânea:

- Que bela, belo!

Dasa sorriu, envaidecida e viril, e se aproximou da cama. Noa ergueu-se, magnetizada, fazendo menção de deixar o leito, submissa ao sortilégio da outra.

- Fica! – ela disse, governanta. – Fica, seu lugar é aí – completou com palavras categóricas.

E encarando-me gladiadora, decretou:

- Você sai – as luzes do cinturão rebrilhando rubras como as faíscas dos seus olhos.

Dasa, como as mulheres de Garuda, resolutas e pugnazes, não admitia restrições aos seus desejos.

Decidi enfrentá-la, suserano no meu reino, medieval na liça.

- Não vos atrevais, senhor senhora, a dizer uma palavra a mais – desafiei, gaulês.

Dasa sorriu imponente, senhora da sua força, senhor do seu brasão. Sem proferir palavra estendeu a mão a Noa e raptou-me a amiga, que se foi encantada.  

 

11

ELLIFTA

Squonk é o mais cruel dos signos, ser infeliz que se dissolve em água sem conhecer o amor. Tristes e desditosas são, portanto, as mulheres deste signo. Assim era Ellifta, a que veio com o crepúsculo e já chegou úmida, como as nativas de Squonk, marcando o chão com a umidade dos seus passos.

Quem a conhece melhor do que eu, diz que esse rastro é a “trilha de lágrimas” em que se dissolvem as mulheres deste signo quando à procura do amor.

Ai de quem pisar nessa via lágrima que dura um dia e uma noite, pois terá os pés pegajosos por todos os séculos. Ai de quem escorregar nesse caminho de sal, pois viajará pelos espaços siderais convertido em gelo.

Ellifta veio a mim inusitadamente: primeiro apareceu o espelho, depois Ellifta, através dele. Antes, porém, sabendo-se observada, seduziu-me com gestos artífices, refletidos na superfície especular. Fazia-se desejável e eu a desejava.

Para sair do espelho, silenciosa como um peixe, Ellifta teve apenas que dar um passo em falso, mas que requereu desembaraço.

Eu a acolho cerimoniosamente vendo no chão as marcas dos seus passos.

Beijo-a na face e sinto-a úmida. Seus olhos, no entanto, luzem como archotes e as mãos, apesar de frias, tornam-se atrevidas, percorrendo-me o corpo em toques mercuriais que me excitam.

Fazendo-me ousado, tomo-a nos braços e a carrego para o leito, nupcial e fremente.

Já se disse que as mulheres de Squonk, as infelizes mulheres deste signo, dissolvem-se em lágrimas a caminho do orgasmo.

Enquanto a transporto nos meus braços, dilui-se metade de Ellifta; a outra metade logo se desfaz, jazendo mancha d´água sobre o leito.

Na parede oposta, corpo estranho dentro da torre, o espelho reflete minha perplexidade e meu desamparo em seu olho de prata.

Irritado, avanço para destruí-lo, mas deslizo na trilha de lágrimas deixada por Ellifta para mergulhar numa viagem sideral espelho adentro.

 

12

DUODÊ

No bestiário dos povos não existe dragão manso – os menos ferozes cospem fogo nos bocejos.

As mulheres deste signo, como Duodê, têm veias flamejantes e olhos incendiários. Quando beijam ou gozam conservam os olhos acesos, cravados nos machos, para vê-los arderem.

A chegada de Duodê elevou a temperatura da torre apesar da noite fria. Meu suor escorria em gotas, quentes como bolotas de fogo. Com sua epiderme rubra, o corpo abrasador, a língua labareda, o sexo vulcânico, Duodê carecia de parceiro igual para aplacá-la.

No entanto, embora ardendo de desejo, fazia parte do jogo que se negasse ao sexo, de forma que tive de domá-la à força. Atirei-me à façanha como um São Jorge guerreiro.

Acossada, seus urros faziam tremer as paredes da torre, esfoladas pelos nossos corpos em luta. Pedaços de cama, partidos e repartidos pelos choques, espalhavam-se em brasas pelo chão. Finalmente, aboletei-me no seu dorso e dominei-a.

No auge do prazer vi seus olhos saltarem das órbitas e circularem em fachos luminosos, na dança ritual do fogo fátuo. Seus gritos incandescentes reverberavam nas paredes e caíam sobre minha pele, tostando-a.

Seu orgasmo foi uma explosão dourada de chamas desventradas.

Adormecemos fartos, eu ainda débil do combate, ela como fera saciada. Quando acordei me vi estampado na lua, cavaleiro sem elmo e sem lança, cavalgando Duodê a serviço de Eros.  

 

INTERSIGNOS

 

 

 

Onde os signos se confinam, ali ficam os intersignos, doze ao todo, presididos também por seres fantásticos.

Estes seres influenciam todos aqueles que nascem no exato momento da passagem entre um signo e um intersigno.

São tão grandes os poderes destes seres que os intersignos são também reconhecidos como signos.

 

13

BRUNA

Bruna surgiu com a lua das demências – tinha enlouquecido a serviço de Deus na castidade duradoura.

Rompido o sexo, colocou-o a serviço do Diabo e se fez ninfômana, devoradora de exércitos. Mas não perdeu o hábito de usar o hábito.

Seu signo era Manticora, o leão vermelho, de dentes em três fileiras, a fauce negra, o hálito insuportável.

As mulheres deste signo, rancorosas quando odeiam, são também carnívoras: durante a cópula devoram os amantes com dentes ferinos.

Para lhes escapar à sanha amorosa é indispensável que se tenha à mão alguns bocados de sal, para lhes por na boca. O sal, por ignotas virtudes, tem a propriedade de lhes amortecer os dentes, tornando-os inofensivos.

Quando Bruna surgiu, em trajes de freira, perguntei, por onde andavas?

- Nos reinos de granito, nas longínquas escarpas, donde mandei meu grito. Ouviste?

- Tenho estado secreto entre paredes, nestas últimas gerações – respondi.

- Por isto vim – arrematou ela, os dentes num sorriso de ameaças.

- Enquanto ela se punha nua eu quis saber, precavido, pensando nos seus dentes:

- Trouxeste o sal?

Num gesto tranquilizador Bruna me exibiu as cinco pedras na palma da mão como num ninho. Ao retirá-las dali vi, porém, no côncavo vazio, a coroa de espinhos tatuada em sangue.

Não me foi possível possuí-la daquela vez. Num ato mecânico, desmanchei as pedras de sal entre meus dedos e lhe tomei a mão para a despedida. Mas não a pude sentir: eu havia perdido o tato.

 

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