Memória das cinzas

Encontro póstumo com Fernão Ferreiro
com ilustrações imaginadas à Gustave Doré

 

Luiz Guilherme Santos Neves

 

Conto 7

Estávamos outra vez caminhando pela orla do mar, o poeta ainda mal refeito dos vômitos que o sacudiram intensamente ao deixar a barcaça dos tamanduás, hienas e raposas. Era razão de sobra para que ele me levasse a conhecer em Trapisona algo que fosse menos deprimente. No entanto, quando perguntei onde seria a nossa próxima parada, sua resposta me deixou atônito:

– Vamos ao encontro das aberrações humanas numa casa de horrores.        

– Acaso suportarás uma segunda agressão ao teu estômago? – inquiri ansioso, tentando uma escapatória para o que o poeta me preparava. 

– A reação que eu tive, meu amigo, não me subiu do estômago, veio da alma. Aonde vamos agora não corro perigo semelhante. Na verdade, eu entrei na barcaça com o pé esquerdo, o que não é do meu feitio. 

– Erraste o cálculo das passadas?

– Um passo atrás, um passo à frente, como manter a passada certa se o batalhão é feito de fantasmas? – indaga o poeta. 

– Seja como for, algo me assusta: por que tens de me mostrar apenas a fealdade que existe em Trapisona? – perguntei desanimado.

O poeta demonstrou pena para com a minha falta de percepção, e me instruiu:

– A iniciação à arte poética passa pelo feio, às vezes pelo que é horrendo, para que se possa descobrir o lado oposto da feiúra que, geralmente, é o belo e é o lírico.

– Geralmente por quê?

– Porque às vezes a poesia nos leva a revelações insuspeitadas.

– Como, por exemplo...

– ...ao místico...  – disse o poeta.

– ...ou ao erótico – lembrei eu, feliz com a minha contribuição ao nosso  embaralhar de cartas.

– Para toda e qualquer poética há sempre um contraponto. Se o tema é o feio, o contraponto pode ser o belo; se é o belo, pode ser o feio – ministrou meu amigo. E estrelou: O belo poético, procurei-o em todos os hortos, chácaras, pomares e quintais que estavam a meu alcance. E se os frutos eram puros e maduros, colhi-os, incorporando-os, de logo, a meu patrimônio de beleza, e relacionando-os, na declaração de bens do Imposto sobre a Renda.      

– O que de belo ou feio me reserva a casa dos horrores?

Veio vagarosa a resposta do poeta, porém convicta:

– Um mundo cão, mas que não pode ser ignorado, formado pelo grotesco e pelo comovente... Homens com cara de lobo, anões histriônicos, mulheres barbadas, irmãs xifópagas, crianças bicéfalas, faquires que engolem espadas e buchas chamejantes...

– Tem também palhaço que é ladrão de mulher...?

– Tristes palhaços trapalhões que fazem rir às crianças e aos velhos...

– Animais não?

– Animais também... Ursos amestrados, paquidermes dançarinos, macacos vestidos com libré, leões sem realeza que se equilibram sobre bolas coloridas, tigres africanos perdendo a maquiagem do pêlo devido à senilidade que os amesquinha, enfim um zôo absurdamente fantástico apresentado ao distinto público sob a capa da hilaridade e do excêntrico.

– Um zoo-ilógico?

– Vá lá o trocadilho... Eu tive um mestre – porque também eu tive um mestre – que fazia trocadilhos, sempre dos bons. Tu me fizeste lembrar dele – disse meu amigo.

Assim conversávamos enquanto seguíamos por um caminho pelo qual atingimos um extenso descampado que fora, em tempos passados, um alagadiço palustre antes de virar aterro. O circo, erguido ali, lembrava um palácio de beduínos no deserto com flâmulas nos píncaros que ondulavam à brisa. Uma chuvinha sem imaginação começou a cair, um pingo lá outro cá, sobre nossas frontes.

– Não imaginei que fosse chover – disse ao poeta.

– Sempre que chega um circo chove em Trapisona – respondeu meu amigo, com a coroa de louros já orvalhada pela chuva.

– Sei de terras onde se prenuncia a mudança do tempo pelos sinais que a natureza emite: morros que se cobrem com o capote das nuvens; mares que se encapelam; ventanias que irrompem, de inopino... São pregões que anunciam as mudas do tempo. Nunca soube, porém, que a chegada de um circo trouxesse chuva a um lugar qualquer... – revelei minha estranheza. 

– Trapisona não é um lugar qualquer e em Trapisona quando o circo chega o tempo muda – disse o poeta sacudindo as gotas da coroa de louros que tirou da cabeça. – Ainda bem que os chuviscos já cessaram.      

Havíamos parado debaixo de um beiral em forma de marquise que nos servira de momentânea proteção contra a chuva passageira e íamos entrar no circo quando veio até nós uma mulher gorda e barbada. Puxando meu amigo com a mão suada, pediu, melíflua:

– Faça um poema para mim, poeta.

– Talvez numa outra hora, minha senhora, em ocasião menos imprópria – esquivou-se o bardo solene e circunspeto.

– Outra hora talvez não seja a hora... Faça um poema agora, nem que seja uma quadrinha que eu possa guardar de memória e recitar todas as noites antes de dormir, como criança. É tão pouco o que te peço, grande poeta!     

À voz da mulher, juntei a minha, meio por pilhéria, meio por simpatia para com a pobre pidona:

– É tão pouco o que te pedem, meu amigo! Compõe o poema.

O poeta pegou então um pedaço de grafite e com letra cursiva e clara escreveu, na lona do circo, às nossas costas:

Na entrada do circo,
pede a mulher barbada
que lhe doe um poema de presente,
nem que seja uma quadrinha,
mas que seja dela,
e que, todas as noites,
a conforte e acalente
e a encha de esperança.  
Pobre mulher barbada
que só tem os versos
de um poema simples
para a eles se apegar
e dormir como criança.

Li o poema e achei-o piegas e simplório. Quando a mulher barbada se afastou, depois de haver beijado, agradecida, a mão do poeta, disse-lhe, em tom de gozação:

– Um poema igual a este eu também faço...

Meu amigo riu e retrucou:

– Eu não fiz o poema para ti. Fiz para quem o pediu. Em verdade te digo, meu amigo, que até um espirro pode ser poético. Eu, por exemplo, dei quatro espirros tão poéticos esta madrugada, que lembrança antiga persistiu em fazer cócegas em meu nariz.

Quando ainda meditava nas palavras que ouvira, acercou-se de nós um anão de pernas tortas, que se dirigiu ao bardo e pediu todo meloso:

– Faça um poema para mim, poeta...

Meu amigo me olhou de soslaio como se dissesse ‘viu no que dá fazer poemas à porta de um circo’, e tentou livrar-se do pedido: – Talvez numa outra hora, meu caro anãozinho, em ocasião menos imprópria.

– Outra hora talvez não seja a hora... – insistiu o pedinte. – Faça um poema agora, nem que seja uma quadrinha que eu possa guardar de memória e recitar todas as noites antes de dormir, como criança. É tão pouco o que te peço, grande poeta!

– Imploro-te para não insistires, meu amigo. Já esgotei por hoje a cota dos poemas de ninar...

Mas o anão não se deu por convencido:

– A mulher barbada ganhou um poema fresco como pão saído do forno. Eu, que sou mais infeliz do que ela, não consigo ganhar o meu...

– E por que és mais infeliz do que a mulher barbada? – perguntei.

– Porque ela, se raspar a barba, vira gente. Eu, porém, não tenho como crescer para ficar normal.

O poeta deu mostras de haver se comovido com o argumento do anão. Mas lembrando-se, por certo, da crítica que eu havia feito à sua arte, pediu lápis e papel que me passou dizendo:

– Avia tu o poema para o nosso amigo. É tão pouco o que ele pede! – E se retirou de mansinho deixando-me com a batata quente na mão e o anão colado aos meus joelhos.

Quando me livrei da prebenda que meu amigo me legara, juntei-me a ele à entrada do circo.

– Como saíste da empreitada? – perguntou-me, gozador.

– Creio que bem, pois adaptei o teu poema da mulher barbada ao caso do anãozinho. 

– Com todos os esses e erres?

– Mudei apenas as palavras ‘mulher barbada’ para ‘anão tristonho’. Acho que não comprometi a tua inspirada verve.

E, para me penitenciar do plágio deslavado, completei recordativo: – São versos de circunstância que, pelo menos, têm enredo...

– Estás te saindo melhor do que a encomenda, parceiro... – retrucou meu amigo, pela primeira vez referindo-se à nossa parceria.

– Não sei não, poeta, confesso minha fraqueza. Creio que vou voltar de Trapisona tão prosador quanto aqui cheguei... Ou será que estarei fadado a ser o autor do poema inexistente?

– Não te desesperes, amigo. Todo fim é imprevisto. O quilate do ouro se apura no crisol do fogo. E só pela amostra do que já nos aconteceu na entrada desta tenda, declinemos de visitá-la. Arvoremos nossas lanças e partamos unidos como de Esparta partiram os espartanos.

Dizendo tais palavras, que soavam como um verso épico, puxou-me com força pela cinta que amarrava a minha verde túnica de aprendiz-poeta e arrastou-me com ele, tropeçando nas pernas.

Tropeçando eu, não ele.         

[Oitava Ilustração Imaginária: o poeta escreve na lateral da lona de um circo um poema para uma mulher barbada, que está ao seu lado, sendo observado pelo discípulo. Um pouco afastado deles, um anão caminha com as pernas tortas em direção aos outros três.]

 

Conto 8

– Ao hospício vamos? – perguntou o poeta enquanto íamos em meio à luz da tarde, cálida e fulva.

– Que proposta de mau gosto... Ir ao hospício, claustro da insanidade, para me deparar com tristes seres humanos perdidos dentro de si mesmos... Ou, o que é pior, seres que acham que são Cristo, ou Napoleão, ou talvez até Fernão Ferreiro a fazer versos nos subterrâneos da sandice? O hospício é demais para mim. Eu passo. A não ser que...

– A não ser que... – repetiu o poeta.

– A não ser que seja para nos internarmos lá. Chegamos a tal ponto?

– De médico, poeta e louco... – repetiu meu amigo o ditado que era do seu gosto. – Mas admito que o poeta que somos (ele me concedia o grau desmerecido) não nos qualifica com a espécie de loucura que imponha internamento.

– Por que somos mansos?

– Porque somos líricos...

– Quem acha que o lirismo é um antídoto para a loucura? – suscitei o debate.

– Os loucos de todos os gêneros... – respondeu o poeta novamente brincalhão. – Se não os loucos, os fracos de espírito que sempre são um pouco loucos. A estes, amigo, a poesia sabe como cura.

– Em doses homeopáticas ou em cavalares aplicações intravenosas?

O poeta me olhou com seus olhos serenos e disse:

– A cada um o seu receituário próprio porque é questão de individual sobrevivência. Lembra-te, parceiro, que no bojo da opção de cada um visa-se a vida, sempre vida, que gira e dança e morre e nasce e vibra. Porventura a vida de um louco é menos vida? Vamos ao hospício...

A teimosia do poeta começou a me incomodar.

– Eu lá não piso... – reafirmei minha determinação e citei jurisprudência: – Tu mesmo disseste, poeta, no Canto 32 de Fernão Ferreiro, que o poema está nas ruas, é só pegá-lo. Para que visitarmos os loucos?

– Tu entendeste meu verso ao pé da letra... Para pegar nas ruas o poema há que primeiro impor à alma a dimensão do sofrimento. É o vestibular poético. Indispensável. Inarredável. Vamos ao hospício...

Estávamos empacados nessa prática fraternal ao lado de três sombrios ciprestes que oscilavam ao vento. Um banco de pedra sem encosto me deu a base de sustentação material de que carecia para reforçar a minha relutância ante a insistência do poeta, e nele me sentei, dizendo:

– Já que não quero ir ao hospício, façamos um acordo entre parceiros que se prezam.

– Que acordo? – E havia interesse resplandecendo na face do poeta.

– O seguinte: se eu extrair dos teus Cantos de Fernão Ferreiro um outro canto com versos da tua lavra que espelhem a loucura que eu sei que há no mundo, tu me dispensas de ir ao hospício?

Meu amigo deu uma pensadinha e disse:

– Dispenso, com duas condições: 1ª) que o novo canto tenha lógica, embora verse a loucura; 2ª) que nessa nova composição tu informes os cantos de minha autoria de onde provierem os versos utilizados.

Esta contraproposta me deixou desconcertado.

– Com a primeira condição vejo que esperas que eu dê um sentido racional para a descrição do irracional... Até aí, tudo bem. Irei tirar das linhas dos teus versos a solução para esta aparente incoerência. A matéria-prima é tua, não é minha. Quanto à segunda exigência, parece-me que pões sob suspeita a minha honestidade em me valer de versos exclusivamente da tua lavra.

O poeta protestou incontinenti.

– Longe de mim tão mesquinho pensamento, amigo de minh’alma. A razão do segundo pedido é para que eu possa ver as possibilidades que o entrelaçamento dos meus versos é capaz de oferecer, sem prejuízo do senso poético original. Só isso.   

– Sendo assim, topo o desafio – disse, retornando às boas com o meu parceiro. – E serei mais requintado ainda: preferes que eu transcreva o novo canto na sequência dos versos que escreveste ou posso alterar-lhes a ordem para dar à nova composição um apurado efeito literário?

O poeta esboçou um risinho de entrelábios e sentou-se no banco ao meu lado. Pousando a mão de ferro sobre o meu joelho, apertou-o com os dedos em garra e disse:

– Já que fui desafiado, prosador, vamos ao embate: fico com a segunda alternativa. Será uma ótima oportunidade para um exercício literário em que meus cantos te servirão de cartilha de iniciação poética. Não será um bom teste?

Estabelecidas assim as bases do acordo pedi tempo ao meu amigo (‘um tempinho só’, me fiz importante) para consultar o seu livro de poemas que saquei do meu alforje. Enquanto me desincumbia da tarefa, o poeta permaneceu petreamente sentado junto a mim, porém, à espreita.

Quando terminei, submeti à sua douta apreciação, como faz o discente para com o mestre, o seguinte canto:

É um fantasma a casa do futuro,
cheia de cegos, surdos, mudos, aleijões,
e mulheres sem dentes riem, descalças,
tiraram a pele, rasgaram a carne e saíram nuas.
Cortaram todos os nós cegos, abriram todas as portas. (18)
E no Tribunal se realiza um banquete em honra de. (21)
A guerra prova que o homem é louco.
As batalhas são somente potelaches
para animar combalidas economias
e diminuir as taxas de natalidade. (31)
Pela manutenção das injustiças.
Pela poluição de terras, mares e ares.
Pela construção de pirâmides sem finalidade.
Pela devastação de matas atlânticas e pacíficas.
Pela pena de morte a homens, baleias e beija-flores, etc.
Pelo aumento do espaço para os mortos.
Pela guerra bacteriológica, química, nuclear.
Pelo fim da incômoda espécie humana. (62)
No chão ficou uma pequenina poça,
era eu, quando vivo, em Hiroxima. (27)
Morreu a poesia ou morri eu? (28)
Torres de Babel agora em toda parte.
Estas mães que matam os filhos,
estes maridos que matam as mulheres,
estes que não respeitam o corpo alheio,
enquanto o inocente arde em febre.(32)
E os homens lutam, de foice, no escuro, pelos ermos. (24)
Aqui jazem as pernas, ali os braços,
o coração ainda bate, intermitente. (32)
Que espécie é esta que chegou tão longe,
e agora só pensa em destruir-se? (63)
Tantas e tantas doutrinas já passaram,
tantas e tantas doutrinas passarão. (35)
Em Atenas bebi cicuta, em Roma, puseram-me na arena,
mil vezes ardi, em mil fogueiras,
feiticeira em Salém sofri suplício, 
enquanto flautas de tíbia humana sutilmente tocam. (33)
Lá, muito além de Limo Verde, faz frio,
e corpos gelados fumam e gritam.
Esta gente está fadada ao fracasso.
Terra assim não pode ir para frente. (36)
O urso e a águia morrem enregelados
banhados por mísseis frios que sopram do Ártico. (53)
Cobras e ratos fugindo da enchente.
Aranhas e moscas querendo acertar contas. (32)
Os empresários indiferentes à ditadura,
os empresários alheios ao polvo estranho,
prosseguem na busca de seus lucros. (25)
Há tantos pescadores, agora, morrendo no mar,
são as algas que não querem ser industrializadas
e, na calada da noite, puxam os barquinhos
para o pélago profundo. (60)
Acidentes que só Jung explica, inexplicáveis. (53)
Sem ser profeta antevejo inundações e secas,
pois muitos corações dançam num ritmo dissoluto,
e carros de passeio continuam a esbanjar energia. (60)
Presos enlouquecidos jogavam, pelas grades, fezes nos passantes.(62)
Lagosta e cocaína apreendidas.
Só se fala no próximo Presidente. ( 27)
Um dia haverá um só, um único buraco negro. (Canto sinótico VIII)
O futuro chega em ondas de silício. (19)

Meu amigo leu atentamente o que eu havia escrito e se fez pensativo.

– Então, estou aprovado...? – cutuquei seu julgamento. E repeti a pergunta, porque ele não a tinha ouvido. 

– Está bom, mas pode ficar melhor... – observou.

– Se quiseres posso incluir mais versos... Tragédia é o que não falta nos Cantos de Fernão Ferreiro – disse eu, indo por um caminho errado.

– Não se trata de aumentar o novo canto. Trata-se de encerrá-lo com estilo.

– Onde entra o toque final do mestre, o tempero do arremate?              
           
– O tempero do arremate entra no... arremate – disse o poeta. – Basta que sejam repetidos os versos finais, que transcreveste, para fechar de forma perfeita a composição. Vê como ficaria:                    

......................................................................
Presos enlouquecidos jogavam, pelas grades, fezes nos passantes.
Lagosta e cocaína apreendidas.
Só se fala no próximo Presidente.
Um dia haverá um só, um único buraco negro.
O futuro chega em ondas de silício.
Que espécie é esta que chegou tão longe,
E agora só pensa em destruir-se?

– Que tal? – indagou meu amigo depois que li o que ele havia aposto ao novo canto por mim articulado.

– Mestre é mestre perante o qual o discípulo se curva humildemente e rende as suas homenagens – disse, dobrando-me diante dele quase tanto quanto se dobrara diante de nós a raposa da barca das leis.

E, para não perder a ocasião, já que de arremates estávamos falando, indaguei, cobrador:

– Ainda tenho de ir a uma casa de Orates? 

– Dispensado! – bradou o poeta como se detonasse uma ordem militar. E, muito ao seu jeito, emendou, zombeteiro:

– Assim falo eu porque sou o rei de Portugal.

[Nona Ilustração Imaginária: o discípulo, sentado num banco de pedra, escreve em algumas folhas de papel. Junto dele o poeta o observa atentamente. Atrás do banco, três ciprestes negros se empinam ao vento.]

 

Conto 9

Livre do hospício, eu quis saber do poeta qual seria o destino que nos aguardava.

– Vamos ao hospital – disse ele. – Não fomos ao hospício, mas não deixarás de ir ao hospital. – E quase me inclino a dizer que percebi sadismo em sua voz.

– Não sei dos dois qual é o pior dos males – defendi-me procurando uma saída que me salvasse desta outra experiência indesejável. Mas nada atinei para barganhar com meu amigo. Resolvi ser franco: – Cansei-me do que sendo triste não me deixa ficar alegre em Trapisona. Ou mudamos os roteiros ou prefiro dar por encerrada a minha derrota poética.

– Tens razão, parceiro, porém é uma pena, porque ainda teria tanta coisa para te mostrar: o prostíbulo, o necrotério público, a delegacia de polícia, a academia dos literatos imortais (não queres entrar para a academia, há sempre um imortal recentemente falecido), mas serei compreensivo. E como não temos uma Beatriz que nos guie os passos, eu mesmo vou te levar ao monte Alvo para lá de cima te mostrar uma Trapisona deleitosa e bela.

A subida do monte não foi fácil, pelo menos para mim. O poeta, sempre à minha frente pelas trilhas íngremes que cortavam a mata, ia em passadas firmes, quase atléticas, a respiração fagueira, a marcha cadenciada sem denotar esforço. Eu, atrás dele, e cada vez mais para trás, subia de corpo bamboleante e encurvado, sentindo as pernas desobedecer ao meu comando, lerdas e pesadas, desejosas de parar quando a ordem era andar, andar, andar sem esmorecimento, subir firme e resolutamente nas pegadas do lépido e invejável exemplo à minha dianteira.

– Não desanimes, parceiro, sobretudo não te detenhas – dizia meu amigo sem sequer me agraciar com a esmola de um olhar. – Se cedermos ao cansaço, aqui apodrecemos, devastados por extensas e imprecisas feridas irrecuperáveis...

– Além de me sujeitares como um mulo à subida da montanha, ainda atiras à minha face, cada vez mais exangue, frases de efeito poético duvidoso... Até quando abusarás, ó Catilina, da minha paciência? – retruquei com a voz arfante.

Há um louco na montanha, ele é um sábio. Quem manda teres nascido em Libra, balança que balança e não sai do lugar... Se tivesses nascido em Sagitário, como o degas aqui, estaríamos competindo em igualdade de condição nesta escalada – gozou o poeta.

– Balança é signo do ar e ar é tudo o de que preciso neste instante para não rolar encosta abaixo, como a rocha de Sísifo – disse, interrompendo a subida e sentando-me ao pé de uma árvore, por absoluta necessidade de um descanso. 

De onde estávamos, embora ainda faltassem cerca de quinhentos metros para atingir o cume da montanha, já dava para descortinar o panorama embaixo, amplo e verdejante, verdejante e majestoso.  Meu amigo aproveitou a deixa que o cansaço me impunha, voltou-se para o espaço vasto que se estendia sob os nossos olhos, abriu os braços dando-se pose de imperador do mundo e disse:

– Sinto-me tomar de um impulso incontrolável para recitar um canto.

Um canto assim: aqui o centro,
em volta, ocidente e oriente, sul e norte.
Aqui o centro da esfera, onde fico eu,
em volta, som e fúria, luz e trevas.
Aqui, o centro onde me quedo mudo,
em volta todos os seres invisíveis e visíveis.
Aqui, o centro com os “chacras” em comunhão,
em volta, tudo e nada, hóspedes do inferno,
e moradores do céu, bailando em asas delta.

Quando o poeta terminou, bati palmas, palmas sinceras.

– Parabéns, amigo – disse eu, esticando ao máximo a chance de permanecer largado onde estava.

O poeta se sentiu estimulado com o meu aplauso e foi além:

Enquanto eu contemplo estrelas, não mando chuva,
eu olho aves, eu olho lírios, estou atrasado,
o futuro chegou para os quixotes, visionários,
sonhadores, anarquistas românticos utópicos.
Eu sou colóide, me organizo minuto a minuto,
nasço agora em fraternidade, alegria e beleza. 

– Está explicada a tua resistência... Tu és colóide que se refaz a todo instante. Eu, que não desfruto de natureza semelhante, que me estrepe a duras penas, arrastando-me pela encosta deste monte...    

Ao pronunciar estas frases, que retratavam bem o meu cansaço, uma coruja piou na mata. E piou outra, e uma terceira, em sonata de mau presságio. O poeta não deixou passar em branco:

Os pios das corujas são agouros. Nos velhos clássicos elas prenunciam a Morte, o fim irremediável. Guarda o que vou te dizer, prosador: tem sempre um projeto de vida em mente, para espantar a Insaciável... Agora retomemos a subida.

– É este o nosso projeto imediato?

– Por ora é – disse meu parceiro, estendendo a mão para me levantar de onde eu estava.

– Me dá mais um segundo de descanso – roguei-lhe eu. – Conta uma história que me espaireça e me deixe mais leve para chegar ao fim deste alpinismo.

Levado por sua extrema consideração para comigo o poeta aquiesceu ao meu pedido.

– Vá lá que seja... Vou contar uma historinha, em linguagem de versos:

Tirei um alfinete da cabeça da pombinha,
e a morte, mais uma vez, foi derrotada,
a despeito de seus ódios, de suas vaidades, seus truques.   

– Quero outra – pedi infantilmente. – Uma que não seja tão curta.

– Neste caso, vou te contar uma história de Pedro Malazarte, da qual eu gosto muito.

E o poeta contou: ‘Por causa de suas travessuras, Pedro aborreceu o rei, que o condenou à morte. Para salvar a pele o esperto condenado propôs ensinar o cavalo do rei a falar, dentro de vinte anos. Imaginando o sucesso que seria um cavalo que falasse, o rei aceitou a proposta e adiou a morte de Pedro. Um amigo dele, que ouvira tudo, disse-lhe, depois: Você ficou maluco, Pedro? Você nunca vai conseguir fazer o cavalo falar... Ao que Pedro respondeu: Pouco importa. Em vinte anos morri eu, morreu o cavalo ou morreu o rei...’

– Agora, Lázaro, levanta-te do chão e retomemos a nossa caminhada – disse o poeta para mim.

Tornei, porém, a fazer corpo mole, aliás, molíssimo.

– Espera um pouco mais, meu amigo. Mata a minha curiosidade. Fala da primeira vez em que subiste até aqui para ver Trapisona do alto. Deve ter sido uma experiência inesquecível!

– Vejo que estás querendo bancar comigo o sabidão do Malazarte... – disse Fernão Ferreiro me repreendendo amigavelmente. – Mas vou me deixar cair na tua lábia. Historinhas vão surgindo à margem do caminho enquanto se apossa de mim uma Sherazade da montanha. A primeira vez que vim ao monte Alvo – começou ele – foi num sonho. Eu era um lagarto sedento e cego que me arrastava pelo chão à procura de água, guiado pelo canto de uma fonte que soava sempre à minha frente, porém, inalcançável. De repente, a fonte calou e eu fui interpelado por uma voz que, no sonho, era a minha própria voz, com a qual travei o seguinte diálogo:    

– Bicho danado, que é que você tem?
– Comi uma banana verde que não me fez bem.
– Isto não é nada, isto logo passa,
tome uma boa dose de cianureto de potassa.
– Cianureto eu não tomo nem de graça,
pois é remédio que elimina a minha raça.

Quando o diálogo cessou – prosseguiu o poeta –, uma chuva forte despencou sobre meu corpo. Ao abrir a boca para saciar a sede, a água da chuva virou cinzas, e com elas me engasguei. O engasgo foi tão forte que meus olhos se despregaram das órbitas em vôo cego, até serem consumidos pelo vento. Nessa primeira vez em que vim ao monte Alvo, nada pude ver de Trapisona.

O sonho do meu amigo me deixou impressionado.

– Foi um sonho trágico... Na verdade, considero-o um pesadelo cheio de mistério – disse-lhe eu.

– Mas também cheio de verdade – observou em resposta.

– Verdade por quê?

– Porque me foi negado, dentro do meu sonho, o meu sonho de ver a terra dos meus sonhos. Uma frustração que, felizmente, depois foi superada quando de fato vim aqui pela primeira vez. Chega, porém, de lero-lero, prosador. Até quando abusarás da minha paciência?  

E puxando-me com força pela mão, disse meu amigo:

– Estamos quase no fim da jornada. Avante, a meta se aproxima, vitória à vista... Repouso só depois.

Pois valeu realmente o derradeiro esforço para assomar ao ápice da montanha. Lá de cima, o poeta, num segundo gesto imperial e largo, mostrou-me o Éden que se espraiava ao nosso derredor, e falou grandiloquente:

Ó coisas que trazem indizível alegria. Eis Trapisona, minha terra idílica, o lugar onde levito e teço as minhas Letras. O oceano chega aos mais altos da serra. Cavalos alados percorrem a imensidão. Aqui reinvento o mundo e tudo o que há nele... Dou testemunho de palavras ditas ou pensadas... Ingresso em mares interiores... Ultrapasso luas incandescentes, sóis e cometas... Nas praias lanço redes e pesco flores... Aqui tenho o mundo preso em minhas mãos... – Depois, respirando fundo, completou: – Olha que céu, que mar, que rios, que florestas...

– A natureza aqui perpetuamente em festa? Uma terra para ser amada com fé e orgulho? – indaguei lembrando-me do poema do Alexandrino ao descrever o país em beleza virginal idêntico ao que deslumbrava os nossos olhos.   

– Tu o disseste. E aproveito a observação para te lembrar, prosador, que às vezes se diz uma palavra que já foi dita; às vezes se escreve uma frase que já foi escrita; às vezes se esboça um gesto já esboçado. Ah! essa terrível comunhão humana, à qual estamos condenados! No entanto, oh, no entanto, quando estou em meio aos homens me irrito, quando estou sozinho, ai, me aborreço

Instaurou-se o silêncio entre nós, pesado como pedra. Eu não precisava olhar para o poeta para saber que ele estava absorto num pélago profundo. Quando reabri a conversa tive que repetir duas vezes a pergunta.                 

– É próprio dos poetas viverem o drama da contradição permanente?                  

– Por que não?  (Ele respondeu sem pressa, quase medindo as palavras). – A contradição é força motriz que leva à criação. Se Deus existe, e talvez exista, deve ser poeta, porque é contraditório.

– Disso tudo, uma particularidade ainda me intriga, mestre: somente a distância é que se pode ver o belo que há em Trapisona?

– Se não abarcares por inteiro a sua beleza jamais aceitarás com benevolência os defeitos e misérias que Trapisona tem. Mas dá a ti mesmo um tempo, prosador, um minuto de silêncio para contemplar o panorama que daqui se arrebanha com a alma.

Segui o seu conselho e deixei-me dominar pelo cenário visto do cimo da montanha. Quando dei por finda a fase do enlevo, comentei:

– Não pensei que Trapisona fosse uma ilha...

– Se não fosse uma ilha não seria a minha terra, a minha ilha do tesouro. Uma ilha-continente, cercada de mitos por todos os lados – declarou o poeta.

– Conheço alguns deles? – indaguei, esforçando-me para recordar de pelo menos um.

– Não, porque tens de criá-los e cultivá-los como quem cultiva borboletas. Mitos são borboletas, meu amigo, que nos povoam a mente.

– Mas como posso criar mitos, eu, um reles prosador?

O seu conselho veio rapidamente.

– Mergulha em quarentena solitária que os mitos se revelarão a ti... A 40º de temperatura mínima descobrirás que só à noite o céu é firmamento. E já está aí a base para um mito.

– Nesse caso criarei a minha própria Trapisona, libando a descoberta do sagrado?

– Aleluia, aleluia! – bradou o poeta. – Eis que entraste enfim em Trapisona. Agora é desfrutá-la em êxtase, porque êxtase é fundamental para a criação de mitos. E preserva o ensinamento: inventor de um mito, eu sou este mito.

– E para fazer poesia, o processo é o mesmo?

– Os dois caminhos se cruzam, mas a poesia tem dois atributos que não sei se os digo ou não, para não parecer pedante...

Apelei prontamente:

– Diz-me, por favor. Para aprender a poetar vim a Trapisona. A oportunidade é única, o isolamento da montanha nos inspira... 

O poeta se concedeu alguns instantes de reflexão, antes de falar:

– Aceito tua ponderação, parceiro, e, como ia dizendo, a poesia tem dois atributos que não se encontram nos mitos: é a essencialidade eucarística e a expressividade anímica.

Sem ter apreendido o sentido das palavras que ouvira, perguntei:

– Nesse ensinamento existe algum segredo cabalístico para ser desvendado?

– Entenda-o como puder, quando puder e se puderes...– foi a resposta que me deu.

– Esta é também a chave para compreender os Cantos de Fernão Ferreiro?

– É preciso ter cuidado com as generalizações, prosador...

– Porém insisto: fala um pouco dos teus Cantos, como nasceram e foram escritos. Será excelente ilustração para um aprendiz-poeta...

Meu amigo ensimesmou-se, mas depois disse:

– Vou atender ao teu pedido, com palavras breves: para escrever meus Cantos padeci milênios e, quando os concluí, ressuscitei de mim porque foi das vísceras que os cantos provieram. Agora vamos descer do monte Alvo.

– Não, poeta, ainda não – protestei, impondo autoridade à minha voz, para detê-lo onde estava. – Quando eu disse que vim a Trapisona para minha iniciação poética não falei toda a verdade. Porque, afora a busca deste aprendizado dolorido, que nem sei se vou conseguir um dia, vim cumprir uma missão mais grave...

Fernão Ferreiro me encarou de face turva e perguntou:

– Que missão é essa mais importante do que aprender a ser poeta?

Em resposta à sua pergunta, abri, desconsolado, o alforje que trazia comigo, dando a conhecer a ele do que eu estava falando. Depois que viu o que eu acabara de mostrar, meu amigo pousou a mão no meu ombro, e disse:

Agora, parece que, de fato, as águas passadas não movem velas em meus moinhos de vento. Baixemos à terra, o que, no meu caso pessoal, é mera força de expressão.

Só então descemos da montanha.

E, pela primeira vez, eu ia à frente, e ele, atrás, silencioso em nossa caminhada.    

[Décima Ilustração Imaginária: do alto do monte Alvo o poeta aponta ao discípulo, com o braço estendido em gesto largo, o panorama que se descortina lá de cima.]

 

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