Memória das cinzas

Encontro póstumo com Fernão Ferreiro
com ilustrações imaginadas à Gustave Doré

 

Luiz Guilherme Santos Neves


 Conto zero

Com sua túnica escarlate e seus olhos gentis o poeta me aguarda à porta da cidade, na manhã que desabrocha.

Vim de longe, com as sandálias rotas e um alforje a tiracolo, de um longe que não sei muito bem onde fica, de onde parti para percorrer o caminho que me trouxe até aqui. Foi uma peregrinação errante, sem que eu possa afirmar que tenha sido longa, pois a sensação de lonjura que me invade pode não passar de falsa impressão dos meus sentidos ou vir do cansaço do meu corpo.

E vós, aonde ides, nessa caminhada trôpega? – pergunta o poeta tão logo me vê.

– Venho em busca da Poética e agora posso dizer eis-me chegado, enfim, a Trapisona, onde o poeta é rei.

– Não me atribuas graus de hierarquia que não tenho – disse o poeta mudando o tratamento do verbo. – O que te garanto, amigo, é que chegaste à terra que eu amo, esta terra que é minha, na qual nasci e em que verdades me foram dadas a conhecer. Por isso a ela sou agradecido. Mais do que agradecido, sou fiel. Todavia, acredita: esta minha terra são os meus limites. Tudo o que sei, tudo o que aprendi, dela me veio, num saber longamente aprendido e degustado. Porque é aqui que calado ando, descubro paisagens, cheiro cores, tateio sons, ouço imagens de mil gostos, sentidos loucos, e tenho nove olhos abertos neste corpo-asa.

– É este conhecimento que venho buscar, poeta: andar sonâmbulo descobrindo paisagens, tatear sons e aspirar cores, ouvir imagens de mil gostos sem nenhum desgosto, antes tirando disso um inexcedível prazer de viver, viver ainda que em sonho, conduzido por ti que, vezes sem conta, conduziu-me pela mão como um mestre a um discípulo. Portanto, dos nove olhos abertos que possuis, cede-me pelo menos a metade, imploro-te. E já que a metade de nove olhos são quatro olhos e meio, faço um desconto: concede-me apenas quatro olhos, dos quais dois podem vir abertos e dois cerrados; aqueles para que eu veja com um mínimo de lirismo dois nonos do que viste como astronauta sem nave, viajeiro dos espaços, dentro e fora do Universo; e os dois olhos cerrados para que eu, embora recolhido dentro deles, as pálpebras bem cerzidas em transe ou pesadelo, entre no mundo curvilíneo do passado vivo, corra através de canais não suspeitados e crie – negando o caos – a vida, o carma e os códigos genéticos. Quanto ao teu corpo-asa, seria pedir muito que me fosse concedido para que me elevasse ao espaço à custa dele. Contento-me com meu corpo desvalido, meus braços frágeis e delgados, de muque sem muque que, se não se prestam a nadar em águas turvas, nem a voar em oníricas esferas, dão-me o equilíbrio básico para percorrer os meridianos da Terra, se a tanto me atrevesse.

– Deixa-me compreender sem erro o que desejas, porque, muitas vezes, a poesia está na prosa, e vejo que isso não te basta – disse o poeta.

– Não estou falando de prosa. Falo da Poesia inefável, rica e plena em seu fundo e sua forma. Falo da Poesia que é deusa e é mulher – retruquei enfático.

O poeta se mostrou admirado diante do entusiasmo com que eu me expressara, e perguntou:

– Vieste, pois, a Trapisona para aprender a dormir com os olhos abertos e sal na boca, luzir até as raias do infinito, alçar todos os céus em alto grito, e correr em direção ao mar, ao nada, em caminhada sem fim e sem começo?

– É o que almejo, se em mim houver o cerne para tão conspícuo aprendizado, do que, todavia, duvido. Mas é o meu anseio: iniciar-me nos mistérios da poética! – (Ainda me ardia a ênfase nas entranhas).

– A tua busca não é nova. Ela também não é fácil porque é busca de luz e de suor, das ideias não pensadas, da arte minóica ou asteca, nos livros de uma extinta biblioteca – preveniu-me o poeta.

– Permite que eu te cite novamente – disse, dizendo: Nesse lago cabem todas as poéticas e nele quero mergulhar de cabeça, num salto imortal de muitos rodopios, antes de tocar a superfície líquida das liras.   

– Já que me citaste, valho-me do precedente e cito a um terceiro, muito maior do que eu: “beautiful is difficult.” Estás preparado para conquistá-la?

– Para tanto percorri as rugas das veredas. Só espero que não tenha sido em vão.

– Não precisavas vir tão longe, meu amigo. Acaso já leste a Bíblia?

A pergunta me surpreendeu, e respondi a ela: 

– Um versículo sim, um versículo não, um salmo aqui, outro acolá, porque é preciso ter a determinação ferrenha dos fanáticos para ler a Bíblia toda. Deste acendrado ardor não sou dotado. Somente os ungidos de Deus e os hereges, que o negam – fora os eclesiásticos e os pregadores – já leram a Bíblia de cabo a rabo e, geralmente, com olhos vesgos. Mas por que queres saber?

– A resposta é simples: se tudo está na Bíblia, por que poetar?

– Não creio que tudo esteja na Bíblia – contestei cauteloso. – Com franqueza te digo que o Homem é maior do que a Bíblia, só não sendo maior do que a Terra.

– Acabas de proferir uma heresia digna de uma bela fogueira em Ruão – disse o poeta rindo. – Mas concordo contigo, apesar de estarmos trocando palavras cruzadas. Na vertical: o livro dos livros; na horizontal: o mais lídimo dos gêneros literários. Tu queres matar o segundo sem passar pelo primeiro?

– Na verdade, estou matando o primeiro para chegar ao segundo sem a angústia da espera – observei com pertinácia.

O poeta me olhou com olhos distantes, como se os pousasse em outras instâncias. Depois, comentou:

– Se assim desejas, que assim seja. Mas cabe-me avisar-te, meu caro: vais penetrar um mundo mau, mundo luz, mundo louco. Um mundo desvairado, sem pé nem cabeça, que não cabe na moldura do entendimento lógico. Um mundo que não está ao alcance de qualquer lira, para que se torne Lira.

Voltei a exprimir a minha determinação:

– Assumo o risco, porque para correr riscos vim até aqui.

– Deixa, porém que te pergunte, para meu juízo pessoal – disse meu amigo. – Porventura já fizeste alguns versinhos?

Interroguei-me intimamente avaliando até onde o interesse do poeta era sincero ou uma simples provocação que me lançava à face. Decidi-me pela sinceridade.  

– Encabuladamente digo que sim e envergonhadamente que foram um desastre.

– Que tipo de versos?

– Trovinhas para começar... O beabá da poesia. Mas nunca fui do segundo para o terceiro verso. Enveredei então pela literatura de cordel e foi pior – me enrolei todo. No entanto, quando leio as estrofes de um cordel parecem-me de elaboração facílima. A inveja me mata, a poesia está na voz alheia. Um amigo meu, que é poeta, contou-me um caso: conheceu uma mulher numa viagem e passou com ela a noite inteira. Ouve o que ele disse e como o disse:

Amei a noite toda uma estranha...
Amei intensamente,
sem que uma só vez olhasse,
por pudor,
o principal ator
no meu baixo ventre.

– Aí está... – continuei falando. – Gostaste desses versos?

O poeta balançou a cabeça demonstrando indecisão e qualificou-os com generosidade:

São versos de circunstância. Pelo menos têm enredo...

– Pois eu gostei. De uma aventura casual tece o poeta uma memória em versos que podem não ser uma peça primorosa, mas para quem, como eu, não sabe rimar ar com ar e ão com ao, é uma façanha... Em outra ocasião... será que te interessas pelo que estou contando?

– Prossiga. Estou curtindo o teu discurso...

– ...em outra ocasião eu ia descendo, de tardinha, por uma escadaria pública e subia, em sentindo contrário, um velho maltrapilho que falava sozinho, gesticulando. Ao passar por mim, ouvi-o dizer: ‘Esta é a hora excelentíssima em que tudo é nada e a voz se cala.’ Não é um achado?

– É uma frase mística... – observou meu amigo.

– E estava na boca de um maluco, e não na minha... – comentei decepcionado.

– De médico, poeta e louco...

– É antigo o ditado... Para mim, porém, basta que consiga ser poeta. Ajuda-me, meu amigo!

O poeta deitou-me um olhar que intuí fosse de consternação e disse:

– Vou fazer o possível, já que vives em terrível frustração poética. E começo prevenindo-te: o verdadeiro poeta tem que escrever seus poemas antes de ficar doido. Se for depois, não será considerado poeta, mas um louco.

– Guardarei de cor esta lição, o que reforça a minha vontade de ser poeta logo. Não posso morrer sem antes viver uma experiência poética intensa.

Meu amigo me enquadrou novamente com seu olhar penalizado e ressalvou:

– A poesia não se leva para cama para dela se despedir depois com versinhos laudatórios às partes acima ou abaixo do equador ventral. Ela contagia, vira visgo, adquire permanência, atazana a mente, entorpece o dia-a-dia...

– Saberei valorizá-la ao infinito – quis tranquilizá-lo com uma frase que achei que fosse o máximo.

– Nada de exageros, eu falo sério. Falo tão sério que hei de testá-lo ao longo do caminho. E volto a repetir porque de repetir eu gosto: tu irás penetrar um mundo mau, um mundo desvairado...

– Não importa...

– Então presta atenção no letreiro que está sobre a porta da cidade.

– Não me digas que nele está escrito como na entrada do Inferno de Dante: “deixai, ó vós que entrais, toda a esperança.”

– Ao contrário, meu amigo. O aviso, aliás, o convite, é de luz e bem-aventurança – observou o poeta apontando a inscrição que meus olhos leram: Agora tudo é novo e ao longe nos conduz.

Li e reli os dizeres sobre a porta. E repeti entusiasmado: eis-me chegado, enfim, a

Trapisona!

Depois disso, à minha frente moveu-se o Vate.

E após o sigo, como diria o Florentino. 

[Primeira Ilustração Imaginária: embuçados nos seus mantos, o poeta, com a coroa de louros à cabeça, e o discípulo estão diante de uma porta encaixada numa muralha de grossas pedras, que dá acesso a uma cidade ignota. Sobre a porta há um dístico escrito em palavras ilegíveis, que se supõe seja o que o poeta indicou à leitura do amigo.]   

 

Conto 1

Virgilio e Dante aqui nunca estiveram – disse o poeta como se lesse o meu pensamento.

Na verdade, referia-se à fortaleza construída à beira-mar, à qual chegamos descendo por uma escada de degraus escavados na rocha, tão diminutos e estreitos que mal nos receberiam os pés se os pisássemos retos. Os canhões de ferro, que outrora cuspiram sobre o mar petardos de eficácia duvidosa, talvez em tiros simulados, achavam-se mudos e surdos e não se poderia sequer dizer que servissem de adornos à amurada do forte, porque estavam sujos, além de roídos pela maresia. Tudo estava a demonstrar, pela aparente natureza morta da velha fortaleza, que ali não havia o menor resquício de vida, embora talvez o forte conservasse dentro de si memórias gloriosas de um tempo ido, mas perdido. De onde nos vinha então o som da algaravia humana que pelos nossos ouvidos penetrou em forma de lamentos?      

Ó Tártaro das portas de bronze. Ei, alguém, ó de casa, nessa fortaleza existe que possa nos dar entrada? – gritou o poeta com sua voz brava e poderosa. 

Pela insistência com que forçava a entrada, deduzi que havia muito para ser mostrado dentro do fortim. Parecia-me uma promissora iniciação poética.

Enquanto esperávamos que as portas de bronze nos fossem franqueadas, perguntou meu cicerone:

– Ouve as vozes que chegam em ondas de silício?

– Ouço e cogito: por que tanto martírio e eloquente sofrimento?

– É porque dentro desta casa os homens se ajoelham, choram, clamam e gritam, e pedem paz, e ladram e uivam.

– São condenados? – perguntei amargurado.

– Mais do que condenados, são desterrados de si mesmos pela prepotência dos tiranos e pela opressão das baionetas. Os que aí dentro gritam e clamam e uivam e ladram são prisioneiros políticos – informou o poeta.

Lembrando-me de um verso de autoria do meu amigo, interroguei-o:

– Não foste tu que escreveste, meu caro Fernão Ferreiro (pela primeira vez o chamava pelo nome), que só o Poeta pode destruir o mundo, pois as palavras permitem o eterno recriar? 

– Não se trata de destruir o mundo, meu querido prosador (pela primeira vez ele mencionava o meu ofício). Trata-se de demolir mentes! É o que se faz dentro desta masmorra que já foi praça de guerra e hoje é um porão de criaturas em crise de lamúria, porque neste tempo em que vivemos é tudo ou nada.

– Oito ou oitenta? Ou pensas como eu, ou morres como um verme? Este é o ensinamento que me desejas transmitir, tirado desta prisão de resolutas paredes pedregosas, deste jazigo de vozes torturadas que nos chegam em lamentos pavorosos como se partidos de um labirinto de horror? 

A resposta do poeta me foi dada na fluência da língua que ele dominava:

Marte brutal, medo e terror semeiam a discórdia,
cães e abutres esperam seus despojos.
As verdades nascem em profusão, e passam.
Que transitórios são os valores eternos!
Que ridículos, visto de longe, os fanatismos!

– É esta a mensagem que me passas? – tornei a perguntar com a voz sofrida. – Se é, dou-me por satisfeito. Eu supus que Trapisona fosse Heliópolis, que não houvesse aqui tiranos, menos ainda que a tirania se prestasse a versos.

– Engano puro, meu amigo. Trapisona também tem as suas misérias. Aqui às vezes só vejo o sol quando me viro em água, só vejo a lua quando o desejo aperta. Fica sabendo que um dos poemas clássicos desta terra foi um grito de revolta contra a tirania, apesar de ter sido uma derrota. Canto-te uma estrofe:

Este foge ao furor do monstro horrível
Vai aquele abrigar-se em terra alheia:
Outro prostra-se aos pés de um rei sensível
E do tirano faz a conta cheia:   
Não desiste o cruel quanto é possível,
Levar o lucro e o dó à própria aldeia;
Do sertão para servir este inclemente
Manietados vêm...

Neste ponto o poeta parou procurando recordar o resto do verso.

– Creio que termina assim: “...manietados vêm homens mensalmente.” 

– Louvo os versos, poeta, louvo até o teu cantar desafinado, mas desprezo ao autor o motivo do poema – disse eu.

Meu cicerone abriu em nossa conversa um parêntese de silêncio. Estaria pensando no que deveria me dizer? Antecipei-me a ele com uma pergunta nova:

– Os versos que cantaste foram dirigidos a algum tirano em particular?

– A um tirano truculento a quem o povo chamava de capitão de mal e guerra – informou meu amigo.

– O bardo que fez o poema sofreu nas suas garras?

– Sofreu bastante, porque ao ousar levantar a voz contra as crueldades do tirano, caiu-lhe nas guelras, padeceu horrores e acabou desterrado.

– Daí surgiu a inspiração para seu canto de denúncia?

– Um dolorido canto contra o seu perseguidor despótico e também de despedida da terra em que nasceu e das mulheres que nela amou... – explicou explicadinho meu amigo.

– Foram muitas mulheres, as suas musas?

– Foram diversas, com as quais o poeta tinha contato direto na pecaminosa boate do confessionário...

– Do confessionário...?

Meu amigo riu e disse, irônico:

– O poeta era padre, um padre revolucionário em todos os sentidos...

– O que, possivelmente, fez redobrar contra ele a ira do tirano... – observei procurando compreender a intensidade do drama do vate-sacerdote. – Mas continuo achando inacreditável que a tirania sirva de tema à poesia...

– É porque a arte poética não tem casa. Habita a vida!

– Esta é uma das lições que tenho que aprender em Trapisona?

– A primeira lição está dada a quem se dispõe à conquista de um ‘dolce stil nuovo’, como tu. Vem agora a cobrança do que a ti foi ensinado: que aprendizado pode ser tirado do lancinante murmurar de horrores que diante desta fortaleza enchem os nossos ouvidos?

Pensei um pouco e saí-me por esta variante:

– Tiro a resposta que leio no Canto 61 dos teus poemas: De repente, a gente descobre quão difícil é o amor, entre chacais cujo focinho não se volta para a lua. Eis por que insisto: partamos urgentemente antes que as portas deste fortim nos sejam abertas e tenhamos de ver o que os nossos ouvidos recomendam que não seja visto.

Já que é preciso ir, então partamos – concordou o poeta. – E o façamos rápido porque a mim também me causam perplexidade e dor o ruído, o estrondo, o grito, o som dilacerado em sofrimento.

Por fim o poeta recitou: – Não há tesouros nesta arca imensa, nem candeias para acender em noite escura.

Então partimos. 

[Segunda Ilustração Imaginária: pela escadinha de degraus estreitos, escavados na rocha, descem o poeta e o discípulo, vendo-se, em plano inferior, a fortaleza à beira-mar, com seus negros canhões apontando para o nada.]

 

Conto 2

O caminho que tomamos ficava à esquerda da fortaleza e seguia ao nível do mar. Marolas sopradas pelo vento batiam contra as pedras que protegiam a trilha por onde caminhávamos, o poeta à frente, eu à sua retaguarda, discípulo andante, aprendiz de artes e ofícios.

Em dado momento meu amigo parou e fisgou-me inteiro com seus olhos azuis e límpidos:

– Com qual palavra definirias, ilustre prosador, o reverberar de gemidos que testemunhamos à porta do forte que não nos foi aberta? 

A palavra que me acudiu foi desespero e dei-lhe como resposta. Ele sorriu indulgente e perguntou:

– Por que não conhecimento? Não é o que vieste buscar em Trapisona? Portanto, simbolizemos, irmão, simbolizemos, amigo. Lembra-te de que somos egressos de um mundo feito e refeito com defeito. Simbolizar é preciso. 

E sem esperar de mim uma palavra de acréscimo, retomou a caminhada pela orla do mar.

Devemos ter andado uns cinco minutos, se tanto, em mudez recolhida e pensativa. Nossa parada seguinte foi diante de uma casa de fachada larga, decorada com esculturais figuras femininas encastoadas em relevo nas paredes.

– Que casa é esta, poeta, adornada de musas à qual me trazem tuas passadas compassadas e silentes?  

– Aqui a cortina da vida se abre para um palco onde todas as metamorfoses são possíveis, passo a passo, para um nada, para um tudo; aqui, inferno, purgatório se confundem numa grande bolha de ar, balão sem gravidade. Estamos diante de um teatro, prosador. Queres entrar? 

– Vamos à bolha, poeta, embora duvide que seja um balão sem gravidade.

E me fazendo guia de quem para mim guia se fizera até ali, ao poeta precedi movido pela ânsia de visitar a casa de espetáculos diante da qual paráramos.

O saguão da entrada dormitava em lusco-fusco, sinal de que, no interior do prédio, um espetáculo estava em andamento. O poeta acompanhou-me por uma galeria de espelhos nos quais nossos reflexos se diluíam em fugazes esplendores. Em passadas rápidas varamos o saguão espelhado e entramos numa porta giratória que nos recebeu de braços abertos, revoluteou sobre si mesma e nos cuspiu para dentro da plateia.  

No palco iluminado, figuras com máscaras falavam com vozes roufenhas. Era necessário afinar o ouvido para tentar entender o que diziam.

Agora, nada fazer, não interferir, apenas olhar – disse meu amigo.

– E ouvir... – sussurrei à sua recomendação.

Ele voltou-se para mim esforçando-se para reduzir o volume da voz tonitruante e insistiu:

Nada fazer, não interferir, apenas contemplar!

Fiz sinal de que me submetia à sua reprimenda e sentamos lado a lado em duas poltronas vazias, na fila do W. Intimamente, porém, aplicava-me em captar a fala dos atores, apesar de terem as vozes arrastadas, semelhantes a uma gravação de tempo retardado. Foi, porém, embalde o meu empenho. Limitei-me, pois, a ver o que havia para ver: uma trupe de atores e atrizes que entravam no palco e dele saíam depois de se engalfinharem de todos os modos possíveis e imagináveis numa mixórdia de corpos e de gritos, atirando-se uns contra os outros num embate selvagem.

Colando ao meu ouvido a sua voz rotunda, disse o poeta:

É muito difícil, quase impossível amar o próximo.

Mantendo o tom solene do cochicho devolvi:

– Por que estão todos com máscaras?

Mal emiti a pergunta dei-me conta de que ela continha em si uma indagação que era ambígua, e que poderia confundir meu interlocutor: eu estava querendo saber se é difícil amar o próximo porque todos se escondem atrás de suas máscaras ou desejava saber por que os atores e atrizes as portavam?

Meu amigo, porém, pegou o exato sentido da minha intenção e respondeu, depois de um discreto sorriso:

– Não são máscaras, prosador! São as próprias faces deformadas pelo ódio.

– Pelo menos seus rictos faciais revelam o sentimento verdadeiro de que estão possuídos.

– Ledo engano, meu amigo. Aqui nada é verdadeiro, tudo é encenação. Daqui a pouco os mesmos atores vão voltar à ribalta para apresentar cenas de amor, com máscaras de satisfação atreladas às faces.

Assim que o poeta fez a observação, fecharam-se e abriram-se as cortinas num corte repentino e o quadro que se seguiu era uma festa de confraternização promíscua, em que atores e atrizes se entrelaçavam num clima de franca harmonia, ao som de um ininteligível canto-chão.

O canto pode não ser belo, mas é triste – disse o poeta.

– Como pode ser triste se o coro de vozes contracena com o amor e a alegria? – inquiri ignaro.   

– É triste porque não contracena com nenhum dos dois; contracena com o ódio – disse meu amigo. – Ou será que esqueceste que quando aqui chegamos passavam-se no palco cenas de ódio expressadas em medonhas carantonhas que com máscaras confundiste?

– E por que o espetáculo começa pelo ódio, para depois se converter em amor? Geralmente não é o contrário que se dá entre os homens, o amor se transformar em ódio? – perguntei perdido em minhas incompreensões.

O poeta falou olhando-me de lado:

– Estamos diante de um tablado que imita a vida, meu caro prosador. Desde tempos imemoriais, ali, naquele palco, sobre aqueles frisos de madeira – torno a falar simbolicamente – todos os sentimentos humanos já foram levados à cena. Quando aqui chegamos o espetáculo não estava começando, embora para nós, recém-chegados, assim nos parecesse. Ele estava em andamento, um andamento cíclico, um moto contínuo, porque o espetáculo começa quando você chega, a festa é permanente. Os seres bailam, e bailam, ao infinito. Vimos inicialmente um lado da peça, depois o outro, sem que o primeiro fosse o começo, nem o segundo, o fim. Ódio e Amor, Amor e Ódio, ou odioamorodio, se tu quiseres, é uma questão de momento, mera perspectiva sem ômega, apesar de estarmos tu e eu posicionados num ômega (o poeta fazia alusão à fila das cadeiras onde sentáramos) para tentar captar uma razão maior que nos escapa daquilo a que estamos assistindo. E sabes por que nos escapa, prosador? Porque, conforme já te disse, tudo é símbolo; objetividade é intersubjetividade. Devemos, pois, ter cuidado para nem tudo aceitar, nem nada aceitar.

– Por isso o canto é triste? – fiz a pergunta quase para mim mesmo.

– Ainda que belo – confirmou meu amigo, voltando a se concentrar no espetáculo que se desenrolava no palco.

Na minha cabeça, porém, repercutiam as palavras nem tudo aceitar, nem nada aceitar...

– Desculpa-me, meu amigo: se não se deve aceitar nem tudo, nem nada, fica-se no meio-termo?

Com extrema brandura o poeta me respondeu: 

– Tua questão, prosador, mostra que estás atento ao que te digo, o que muito me agrada. A resposta que te darei, porém, terá o sabor de uma filigrana oracular que a ti cumpre decifrar:

O universo é tão grande,
Mas cabe na ponta de meu dedo mínimo,
No seu vizinho, pai de todos, fura-bolo, mata-piolho.
Cadê o universo que estava aqui?

Dito o que, meu amigo se levantou da cadeira sem fazer ruído, pegou-me pelo braço e, do teatro, não foi nosso partir menos ligeiro. 

[Terceira Ilustração Imaginária: no palco de um teatro, atores e atrizes se enredam, amontoados, tendo à face máscaras medonhas. Sentados em duas poltronas no fundo da plateia, o poeta e o discípulo assistem à cena, enquanto o primeiro cochicha com a mão em concha no ouvido do segundo.]

 

Conto 3

Saídos que fomos da casa de espetáculos, avançamos pela rampa pedregosa de um outeiro em cujo topo, de costas para o mar embaixo, erguia-se uma igreja eivada de torrinhas que ladeavam o telhado. Contornamos a parte traseira da alta construção e chegamos à entrada principal, onde uma porta de duas bandas flexíveis dava acesso ao templo. 

– É a primeira vez que entro numa igreja com porta de vaivém – disse para o meu amigo.

– Assim deveriam ser as portas de todas as igrejas – respondeu ele. – Uma para empurrar os fiéis para dentro, outra para empurrar os infiéis para fora.

– Mas acaso os infiéis visitam as igrejas? – indaguei olhando meu amigo com surpresa.

– O que somos nós senão infiéis dentro de um templo? Aqui estamos tu e eu com nossa falta de fé e nossos olhares matreiros para esmiuçar o que nos é inaceitável e discutível. Prepara, pois, o teu espírito, meu amigo, porque, além desta porta, verás muitas outras estranhezas... a começar por aquela cruz no altar-mor.  

No fim de um comprido corredor que separava os bancos de madeira em partes opostas, uma cruz elevava-se branca como um fantasma, mas sem o Cristo. Diferentemente, porém, das cruzes tradicionais, aquela estava encurvada para frente como um ancião e tinha os braços pendidos para o solo.

– Esta cruz se dobra sob os pecados dos homens? – perguntei curioso.

– Ou talvez se curve para amparar os pecadores... – respondeu o poeta. – Lembra-te do nem tudo aceitar, nem nada aceitar?

Degluti a questão e contrapus:

– Os braços pendidos me dão ideia de exaustão. Nem há Cristo nenhum pregado no cruzeiro para um olhar de amparo à pobre Humanidade...

– Mas há luz, uma luz de suave claraboia que envolve a escultura... – O poeta falou esboçando no ar, com as duas mãos, um gesto que significava um halo arredondado. – Essa luz não te transmite a ideia de paz e esperança?

– Confesso que não consigo enxergar a vaga luminosidade a que te referes, e estranho até que a percebas, tu, um proclamado agnóstico...

– Nem por isso deixo de rezar, principalmente quando duvido, nem de manter querelas luteranas com Santo Agostinho. Sabe que Santo Agostinho e eu conversamos sobre o tempo e outras heresias que dão cadeia ou fogueira? Sou agnóstico confesso porque me permito a bendita faculdade do questionamento que, se não me purifica, me aprimora na esgrima das ideias. Foi assim que aprendi que só um Deus pode adorar outro Deus.

– Não sei o que responder ao que me dizes... – falei depois de alguns segundos de hesitação.

– Então não digas nada, apenas rezes... – disse meu amigo com ironia. – Rezes desejando crer, crer piamente, sem te preocupares se o homem Cristo foi Deus ou não foi Deus.

Apesar do teu conselho a ele resisto por deficiência de fé...

Mas vale a pena tentar. Lembra-te que aquele que vê a impermanência de tudo, aquele vê! Quem sabe seja este o teu caso? (Havia novamente um sarcasmo sutil em seu olhar).

– Pareces um jesuíta pregando pela voz da catequese... – disse ao meu amigo em tom de gozação.

Ad majorem Dei gloriam... – respondeu ele, saboreando o latim e o sentido histórico da sua frase.

Havíamos parado rente a um confessionário que parecia um pequeno castelo de madeira, ao lado do qual travamos nosso diálogo. Com a ponta do dedo eu afastei indiscretamente a cortina de veludo roxo que vedava as treliças do locutório e, por alguns segundos, estiquei o olho para bisbilhotar o interior do castelinho envolto em sombras. Para meu espanto, um murmúrio de vozes ressoou lá dentro como uma revoada de morcegos invisíveis. 

– Não cutuques esta caixa de Pandora de mágoas e de culpas – advertiu meu amigo. – Nesse chocalhar de confissões céu, inferno, purgatório se confundem numa grande bolha de ar, balão sem gravidade, um só buraco negro de massa total e concentrada. 

– É a segunda vez que invocas estes versos... São os teus prediletos?

– É uma questão de contexto, meu amigo. Se o contexto pede, repitam-se as palavras tantas vezes quantas sejam necessárias. É uma técnica de ensinamento ou, quem sabe, de admoestação.

Aquelas considerações feitas pela voz grossa do poeta me tocaram. Senti-me culpado pela futucada que havia dado na cortininha do confessionário, movido por uma curiosidade pueril.

– Há mais alguma coisa para ser vista nesta igreja? – perguntei desejoso de sair dali, rodando sobre os calcanhares.

Meu amigo dirigiu-me um olhar de palpável decepção diante da minha pressa.

– Mal entramos e já queres partir? Dois milênios de Igreja na história do Mundo nos esperam dentro desta nave e tu sucumbes à primeira visão da cruz, origem da Cristandade por inteiro, e ao esvoaçado sussurrar de um confessionário? Não achas precipitação demais?

– Não é por mal, poeta, podes crer. Mas dentro das igrejas, ao cheiro dos incensos, ante o bruxulear das velas, minha claustrofobia me sufoca.

O poeta não admitiu minha desculpa. Foi categórico:

– Não partirás daqui sem visitares o presépio armado atrás do altar com a cruz acorcundada. Vem...

Em passos macios, levou-me até onde podíamos contemplar uma maquete artística, banhada por uma luz arroxeada cujo ponto de origem se ocultava aos nossos olhos. Ali, quase ao pé da cruz, via-se uma manjedoura com a imagem de uma loba que amamentava doze papas, dentre os quais Nicolau III, Calixto III e Alexandre VI. 

– O que me dizes disto? – indagou o poeta sem que eu pudesse perceber se havia deboche ou seriedade em sua voz.

– Pensei que ias me perguntar se eu sei quem é a loba.

– Não é tão polêmica a minha intenção. Minha pergunta é o que eu perguntei: o que me dizes desta representação simbólica?

Tornei a analisar o bizarro presépio e respondi:

– Digo que o que eu vejo com meus olhos pasmos não está escrito nas Sagradas Escrituras.

Para que servem as Escrituras Sacratíssimas se nossa sabedoria, em as treslendo, nada cresce...? Se os velhos mitos morrem, saudosos criemos outros piores, maxidesvalorizando-os sempre – disse o poeta.

– Vou pular o capítulo dos velhos e dos novos mitos, deixando a ti a prerrogativa do assunto. Prefiro me cingir a uma indagação imediata: por que um presépio como este é tolerado dentro de uma igreja?

– Sinal dos tempos, prosador... Talvez uma autocrítica religiosa sob forma estética ou uma expiação de culpas, sabe-se lá? 

– Perdoa-me, meu amigo, mas estou em atordoante estado de angústia. Tenho absoluta necessidade de sair daqui – implorei de novo.

O poeta coçou o queixo tentando avaliar minha alegada ansiedade e decidiu a meu favor:

– Acato o teu pedido, porque vejo que se ficarmos como estamos enterraremos Cristo! 

– Mais uma razão para sairmos, pois seria peso demais para os meus ombros frágeis recair sobre eles a fúria de Deus pelo sepultamento do seu Filho. Sou ateu declarado, mas não levo meu ateísmo às raias do exagero...

– Então vamos. Mas devo aquinhoar-te com uma verdade a que cheguei em minhas meditações (e que Santo Agostinho não me ouça): Deus não castiga. Deus é bondade, Deus é perdão, Deus é salvação. Quem castiga é o Demo, o Inconformado, o Maligno, que é o braço sinistro de Deus. Ou será que Deus é maneta como afirma o padre Voador?

Olhei desconfiado para o meu amigo. Até onde estaria ele sendo sincero com o que dizia? Seu rosto, porém, mostrava-se impassível aguardando que eu falasse. Aí falei:  

– Estás colocando em discussão, poeta, a ambivalência essencial do ser supremo? Deus como manifestação primeira de O médico e o monstro? – enveredei pela literatura na falta de um bom argumento teológico.

– A comparação me parece válida numa conversa sem maiores aprofundamentos metafísicos como a nossa. E espero que dela resulte algum ensino, senão teológico, pelo menos poético – disse-me ele – e vi que falava sério.  Dei-lhe resposta:

– Tudo isso dentro de uma igreja? Pois se o teu objetivo é este, recorre aos doutos santos para com eles debater tuas querelas, de preferência com o teu parceiro o agostiniano...

Furtando-se a ir mais longe em nosso debate, replicou o poeta:

– Releva o meu avesso agnóstico, do qual não consigo me livrar e no qual me enredo em inquietações tremendas. Dúvidas terra-a-terra ou fundamentais, que os jovens não têm, que os tolos não têm, que os fanáticos ou enamorados não têm, só eu, somente eu com tantas dúvidas eutópicas. – E terminou ansioso: – A saída, onde está a saída?

Para minha felicidade, saímos sem mais delongas pela porta de vaivém que nos devolveu, num tranco sem barranco, ao ar fresco que pairava sobre Trapisona.

[Quarta Ilustração Imaginária: diante de um presépio armado atrás de uma grande cruz no altar-mor de uma igreja, o poeta e o discípulo contemplam, horrorizados, uma loba que amamenta doze papas.]

 

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