Mecanismos precários

Herbert Farias

 

Máquina fluida: Precariedade da vigília

 

As sereias de Merinfal 

Marinho é de pouco pensar, sujeito pacato, ordeiro, domado pelo cercado do dia, contido em paredes de escritório prosaico. Relatórios, o viver. Promoções à deriva. Um vislumbre distante de aposentadoria merencória, franzina, rota, bem mais do de sempre, que o seu futuro espelha essa bambeza.

Marinho tem lá as suas fugas, quem não as tem? Um caso com a secretária, nunca. Suor de quadras ou campos aos domingos, ninguém pense. Antes se despeja como homem frugal na poltrona, donde o rastro no tecido do uso de tantos anos. Fecha-se no curto quintal da tela alumiante da sala, como alguém que quisesse se esquecer do frio num jato morno de chuveiro de dez centímetros de raio e meia hora de duração. Entrega-se com tal devoção à contemplação do inútil, pendendo de filmes ruins e de notícias rasas e truncadas, oscilando entre novelas retramadas e auditórios purgativos, sofrendo os balidos medianos dos comerciais, tanto se entrega a tão beócia atividade que dorme, para então fazer valer seus direitos de homem vivente, sua autoridade de mentor dos filhos, no que essa digna função deve à imaginação e ao delírio. Porque é nos sonhos que Marinho domestica o tédio diário de que ele, tão afeito ao pouco da vida, não reclama, com receio de parecer ingrato.

E já que nos sonhos reside o melhor da criação e do engenho de Marinho, falemos de uma vez neles, e não procedamos como o narrador da venturosa pesca que derramou demasiado tempo nas minúcias da captura de minhocas e não teve quem lhe ouvisse o desfecho. Quem se aproxima da cama de Marinho às horas de sono solto contempla-lhe um sorriso quase belo, de que ele não é capaz durante o dia, e adivinha-se que sonha com a meninice, não a mediana que viveu enclausurado nos mimos da mãe, mas a clandestina, do tipo que subtrai o infante indócil ao leito noturno e ao banco de escola e o atira nos matagais infestados de outros meninos, o bando eleito. E se o observador divertido desafia o passar das horas e continua lendo o semblante do homem entregue ao sono, acaba por ler palavras sussurradas e até gritadas, nomes de amizades cúmplices e escapadas por um triz ou dois, de que a aventura se molda. É nela que residem a onça desafiada sem armas, os personagens noturnos de lumes nos olhos, a velha morta que atira tições acesos.

Mas três ou quatro relâmpagos sobre a casa no escuro não dão ao caminhante jeito seguro de a alcançar. Melhor ter à mão lanterna e sondá-la por mais tempo, em um aspecto que seja. Da mesma forma, façamos aqui parada em um dos sonhos de Marinho e traremos alguma luz ao todo de sua vida dormente. Elejo o episódio das sereias de Merinfal, que são surdas e não conhecem o próprio canto. Tais beldades distantes experimentam a sedução das suas vozes pelo efeito causado nos navegantes estrangeiros. O único eco da música que lhes chega é a expressão de êxtase dos marujos, com derradeiro tombo na água. A única interdição, de ignoto motivo, perde-se na ética da raça: jamais deixar viver aquele que se move sobre barcos.

Pois bem, Marinho sonha então que navega no território de Merinfal em noite enluarada, quer porque narrativas caiadas de lua já muitas há, inspirando a imaginação para que mais delas ainda haja, quer porque apraz às sereias de Merinfal dar a conhecer seu canto quando a luz é mais profícua, e dessa forma degustar o fim da vítima. E nisso dá que Marinho ouça uma das sereias do lugar, de olhos fixos no navio forasteiro, plena de ânimo de ver em breve despencar afogado nas profundezas uma figura de marinheiro. E Marinho, autêntico apreciador de cantos de sereia, se bem que nenhum tivesse escutado até então, de bamboleio na amurada do barco já iniciava queda mortal, quando o imponderável Amor estabelece que a própria sereia se apaixone por ele. E de tal forma foi peremptório e agudo o desvio na alma perversa da sereia que de pronto ela cessou seu canto, incapaz de fazer descer sem volta às águas o ingênuo Marinho. Aliás, tão ingênuo que não percebeu o que fazia quando a convidou a subir ao barco, do qual era capitão e único tripulante, com a competência que recebem nos sonhos os ineptos em vigília. Fato sonhado é que a convidou, e a moça-peixe de pronto aceitou o convite, somente entendido porque Marinho, consciente de sua ignorância da língua das sereias, reforçou o chamado com gestos da mão calosa da lida do mar. Sem reservas ela se recostou na cabine, e trocaram olhares, e Marinho, presumindo a audição da jovem, falava-lhe baixo, como em segredo, e lhe dizia o que a haveria de corar, tivesse ela ouvidos e pudor. Não tinha, no entanto, e a cabine abrigou seu amor repentino, salgado, esculpido em vendavais de carícias, no fim do qual a sereia esmoreceu gravemente, descobrindo que o porquê de não poupar marujos é que, ao vê-los de perto, adquirem as sereias de Merinfal a tola paixão dos povos da superfície, e herdam a morte, junto com o amor. Foi mesmo Marinho quem a sepultou em túmulo de muitas ondas, o corpo ondulando levemente no mergulho suave para o fundo.

Assim, quem persiste em contemplar Marinho em seu sono verá surgir, mais cedo ou mais tarde, na margem do olho saudoso das águas de Merinfal, a lágrima que denuncia a perda do amor de parte da noite. Mas que se anime esse tenaz observador, Marinho é dormente por excelência, e antes que o dia o convoque a um maciço porto de tédio, ele brincará de marinheiro em outros mares, e será de outras terras o único senhor.

 

Causa mortis 

O velho não tem família, nem varanda, nem diálogos. Sua casa é uma avenida deserta, no sopé da madrugada, eivada de lembranças de muitos preâmbulos do tarde demais. Portanto, nada melhor, depois de goles expulsos da garrafa barata, que extirpar da terra seu cancro dolorido, convidando para a realidade das sombras o personagem que lhe porá fim à história ruim.

Com o ardente pedido para que se desfaça a luz, o enésimo poste à direita de quem segue desfaz sua prisão de cabos de força, gira o braço de iluminar rumos, e sacrificando a lâmpada, desfere um vigoroso golpe no velho que já se despedia, arremessando-o no esquecimento lateral da pista, onde também jaz a garrafa inspiradora.

E é por isso que, tomados de um temor supersticioso, os homens que recolhem os corpos das vítimas de atropelamento e fuga evitam olhar para a lâmpada quebrada no poste mais próximo.

 

Delenda 

Não latiu, falto de dignidade. Só o arfar esperançoso e o sacudir de cauda subserviente de adulador. Eu disse ao cachorro que se virasse, que desse seu jeito, que caçasse rumo qualquer. Ele me olhou com os costumeiros olhos de cachorro, a cauda que abanava como bússola volúvel, rastreando norte de fidelidade pouco canina. Chovia. Eu tenho um histórico de chuvas. Um prontuário de pingos ao longo da vida. A terra molhada é minha certidão de nascimento. Chove em todos os meus dias.

Levanto-me e ando. Com cajado lento torno a pontuar a areia molhada do meu deserto. Meu desejo quer profetizar, e permito. Mesmo que ele se embriague e diga o óbvio, e isso me faça rilhar os dentes. Não monto planos nem máquinas. Antes o hoje transcorre novo e se derrama em outro hoje, e a vida acontece em gotas.

Foi-se o cão, afinal. Varreu-o a sobrevivência, que eu não lhe dei nada, e era preciso esmolar diante de outro passante. Difíceis os passantes, na torrente. Correm, os que ainda não acharam abrigo. Não eu, de biografia encharcada. Não eu, que vim de Delenda.

Chovia tanto em Delenda que só se usavam moedas como dinheiro. O papel-moeda seria invadido pela chuva dentro dos bolsos, e se ficaria pobre sem ter gasto um tostão. Era de se evitar vestir o impermeável, dado o extremo calor que fazia em Delenda mesmo com chuva incansável.

Ao estrangeiro ficou, portanto, o aviso de não ir a Delenda sem forte estoque de moedas. Estrangeiro raro, é bom que se diga, pois já bem pouca coisa havia a ser vista lá miudamente que por toda parte não ocorresse às bateladas. E poucos de lá viam os poucos de lá, que a chuva lhes barrava o caminho dos olhos, obrigando ao imediato do piso a ser pisado, sob risco de pisadura em cratera, quebra de perna e orgulho.

Saúdo, portanto, Dante Calixto, homem obstinado e fatalista, dado a enlevos e sonhos messiânicos, que viajando a Delenda, já daqui saiu sob pé d’água, em camadas impermeáveis sobre o corpo vincado de inscrições. Era noite quando chegou à enlameada rua principal e, de vista barrada pelo aguaceiro, em vez de alcançar o hotel, acercou-se do Cabaré Pluvial, de convidativa tabuleta em que se lia, feito subtítulo: o hotel dos solteiros. Claro que se chegou ao balcão e pediu que lhe chovesse no copo a cicuta da terra, um tal reles destilado, bebido pelos de lá para preparar os quitutes da pele para a devoração. É que em Delenda não se sabia fornicar sem certa dose de desespero e álcool, e ficava feio para o forasteiro desmerecer o costume local, mesmo amando em coração e corpo mulher outra de terra distante, e mesmo que nem desejasse carne para a noite.

Senta-se ao lado Margarida Piano, expoente-mor da beleza local, medidas aperfeiçoadas, como se a caducidade do lugar tributasse de cada mulher moída pelo pé calçado da noite algum centavo de beleza arrancado entre tapas para daquele somatório esculpir Margarida; e de tal modo a mistura escondia a sordidez dos ingredientes que a diva resultante vestia ares e linhas de ninfa mais que humana. Pois bem, senta-se ali Margarida, e se bem que de beleza incomum, era usuária de discurso ensaiado, solícita pela bebida que algum qualquer lhe pagasse, como preâmbulo da noite de carne fruída e gemente. Recebeu seu veneno para lamber, copo deliciado e sorriso profissional, servido por ordem enviada ao gordo atoleimado atrás do balcão pelos olhos silentes do estrangeiro Dante. Terreno fugaz, no entanto, o silêncio da mulher, e tem Margarida de perguntar ao tal que fazia ali, se vinha de longe, se chegara havia pouco. E mais ainda perguntaria, quem sabe se mulher, filhos e concubina de outra terra o esperavam de volta, e se tinha visto o diabo de perto, e se já matara e já morrera. Muito mais perguntaria, se não ouvisse, no seu modo desatento de mulher-propaganda, mais querendo mostrar do que ver, a sentença de morte de Delenda:

-  Venho tatuar aqui meu destino: arrasto da vista do mundo esta cidade.

Dói na memória de Delenda a vocação para atrair lunáticos de distantes plagas, caudilhos napoleônicos, ancestrais de Deus, maníacos pélvicos, cabeceadores de paredes, canibais de fraque, ególatras loquazes e mudos, coprófagos ostensivos e os indefectíveis profetas de fim de festa. E pouco se dá ouvido a essa grei numa cidade em que nem o poder escapa da chuva invencível, onde os telhados se corrompem aos poucos como o siso dos mortais. Mas fato é que o depoimento de meia linha de Calixto soou a Margarida como frase acima da média dos doidos, talvez pela convicção desapaixonada oriunda dos lábios soturnos daquele que ameaçava. Dizia vir devastar a cidade com fleuma desusada pelos beatos ensandecidos expulsos do bordel a pontapés e cuspe. Bebia sua sina num copo qualquer e pagava com moeda surrada, sem afetação nem estorvo, nem nada que chamasse atenção para segundo olhar.

-  Não gosta daqui por quê? – indagou Piano mal disposta a pensar que aquele louco não seria para ela conversa que rendesse níqueis. Sabia, sim, que os trazedores de saraiva e fogo pouco podiam nos bolsos ou sob as calças ou entre as orelhas para alugar mulher de serviço lúbrico, a exemplo do tal que ditara em noite de amargura, naquele mesmo balcão e somente para ela, de fretados ouvidos e corpo de espera: “Quando viesse o forasteiro tendo feito do sol seu tempo na noite, Delenda desabaria sem mortos em noite de ilhas reunidas”. Pois então, Piano, mesmo sabedora de tão má aplicação do tempo, não desistiu do homem, nada conhecendo ao certo do motivo por que assim fazia, mas suspeitando nas entranhas que isso apenas se devesse a que o tal, fosse por que fosse, falava-lhe num tom acima dos demais ao coração só de mulher da noite.

-  Nenhum gosto ou desgosto, trata-se medida concatenada, engrenagem de relógio de que não se enxerga corda nem ponteiro. Sonho velho, de que me liberto esta noite – jorrou o homem, espantosamente verbal de repente, como se desprendesse de si palavras para manter-se mudo para o resto da existência. Boquiaberta a meretriz, agora sem perguntas, perdida da esperança a última imaginação de dinheiro, ganho no entanto algum ludo em ouvir outro forasteiro louco. Essa era mesmo uma noite incomum, percebia, de algo inquieto remexendo-se por trás do mundo, mas até então isso se parecera com gripe, às vezes dizimadora, às vezes fútil, ou com gole da aguardente local mal descido, e só quem habitou Delenda sabe o quanto se parecia por lá o mal-estar de um com o perecimento de todos.

Foi então que a mão do homem chafurdou no bolso mal enxergado da camisa, à luz mambembe, e emergiu de lá com relógio dourado, em forma de sol trabalhado por artífice, de ouro antigo e respeitável, enrabichado em corrente grossa de igual mérito, e pontificou, mais do que consultou, a meia-noite do lugar. E parecera tão absurdo o informe, em povoado que só conhecesse do tempo o dia e a noite, alheio à exatidão das horas, afogados todos na chuva que jamais cessava, tão estapafúrdio era ouvir a meia-noite falada, que alguns gargalharam, ou rindo da palavra imponderável, ou fechando os ouvidos para o desconhecido mundo de repente aberto. A música reles parou, só então dando a conhecer que antes era tocada. Os olhares em volta se despediram de certa nuvem de fantasia adestrada, como se a memória geral se soltasse do comezinho moderno para se pregar num tempo redescoberto, sem registro, do outro lado da vivência do mundo. Como árvores que cedessem ao sopro do vento, os mais próximos da maior porta enfiaram o olhar na noite retinta. Já nenhuma gota queria o chão, nada da torrente magna sobre os moradores, que deixavam desabridamente as casas para se descobrir na praça, sem busca de abrigo, sem charco, fato nunca antes sonhado em lugar tão padecente de chuvas corridas feito madeixas aquosas sem fim. E dando-se conta do pouco conhecimento e apego de uns pelos outros, do mistério de viver tanto tempo ocultos das águas, viram que se ocultavam também dos demais viventes no aguaceiro de si mesmos, e tiveram na estiagem lume de lhes abrir a vista, feito liberdade escrita em parede de masmorra caída que toma o condenado pela mão.

Deslumbramento tão grande e, no entanto, tão elucidativo, que alguns, tanto tempo ocultos da razão e de repente céticos para o milagre, cogitavam em ousadas teorias se não seria todo o temor da chuva aquele tempo inteiro apenas o medo de olhar atrevidamente a grotesca noite e afrontá-la como à tempestade o marinheiro, não passando a sobrenatural intempérie de medo entranhado, barreira de dentro enxergando a de fora.

E foi assim que vingou no imo de cada um o súbito desejo de se alhear do lugar molhado e só, catar os poucos amigos e compulsórios parentes, e partir para horizonte já visível sem borrasca. Na primeira manhã a emergir seca, os últimos grupelhos sulcavam a terra ainda molhada com passos de abandono, marcha esperançosa contra a muralha derrotada das bátegas d’água que quase nomeavam o lugar, sobre cujo casario hoje sem trato e sem almas, portanto sem medo, dizem que nunca mais choveu. Calixto e Margarida eram desses últimos, tendo passado o restante da noite seca se entregando ao falar das peles, ela deslumbrada com a pureza da janela aberta em noite cristalina, ele alteado pelo fado de homem ignoto a herói salvador de cidade, e abandonado pelos insistentes sonhos da sina e do heroísmo que lhe pesavam, em tal falência do nexo que por vezes é a única marca dos heróis, quem sabe até de todos. Ninguém adivinhará nunca se vivem ou morrem, se andam juntos ou também se evadiram um do outro. Preferem os mais gregários que estejam unidos pela vida afora, desde a noite de ilhas reunidas vaticinada pelo louco solitário de outrora.

Delenda acabou assim, feito brinquedo de menino que enjoa de simular, feito árvore de raiz falsa. Venho de lá, da noite estiada, da lua soerguida ao visível, e de tal forma a vitória sobre as águas transparece nas maneiras, nas falas, nos silêncios, nos olhos dos daquela terra, que chuva nenhuma é vereda de menos, nem pedaço de não trilhar, nem busca de abrigo. Sento-me nas enxurradas das vilas e fazendas, ganho o pão itinerante pelos versos de aluguel de cidade em cidade, e ao chegar a taberna ou lupanar, rua dançada ou praça mendiga, hospedaria honesta ou vil, canto o fim de Delenda, revolvo o começo de história dos moradores da cidade da chuva. O tributo que lhe presto é celebrar que se tenha diluído no tempo sem nós.

 

Entre os disformes 

Vania chegou facilmente ao país sem nome. Difícil foi acreditar que existisse um lugar assim. Prá começar, o país não tinha nome porque os habitantes não queriam ser conhecidos fora de suas fronteiras.  Eram felizes fazendo sentido para si próprios. Outro dos fatos incrédulos que chamou a atenção de Vania foi a aparência dos habitantes do país: uns tinham um olho maior do que o outro; era possível encontrar narizes do tamanho de laranjas, bocas que pendiam para a direita ou para a esquerda, braços e pernas paquidérmicas ou mirrados, torsos semelhantes a barris, umbigos espiralados, pés assimétricos, mãos de três, quatro ou seis dedos, dedos com quatro ou mais falanges, cabelos ausentes ou duros como arame.

Depois de dois anos naquela terra, Vania ainda não conhecia totalmente a cultura do bizarro povo, mas sentia-se mal com sua própria indescritível beleza, tanto creditada à caprichosa natureza quanto alimentada pelos produtos e técnicas que importava de toda parte. Decidiu, por solidariedade, que seria feia como feios eram os habitantes do país sem nome, e procurou num reino próximo um cirurgião plástico que lhe deformou o rosto e o corpo, tornando-a mesmo irreconhecível aos seus familiares, se a pudessem ver.

Assim, Vania foi expulsa do país sem nome por crime de lesa-etiqueta, ou seja, por alterar artificialmente a feiúra que os habitantes sempre viram nela, mas tiveram a delicadeza de não censurar.

 

Etiqueta da fronteira 

Não é fácil tocar um negócio na fronteira entre o Perwoio e Snentula. Muito menos um restaurante. Mas os piores problemas sempre têm no meio um fergunte. Ninguém no restaurante gosta quando chega um fergunte. É como se perdessem a refeição por um dia. Muito ruidosos, os ferguntes não têm a mínima educação, confundindo qualquer lugar com as cavernas de onde saem e afiando os enormes dentes nas paredes ásperas do restaurante, ou nas mesas.

Dois ferguntes acasalantes, certo dia, fizeram muito pior. Betjiar, um fergunte jovem, já entrou no salão esférico exibindo excessivamente as verrugas oculares às fêmeas, incomodando os clientes com seus guinchos pouco higiênicos. A última mesa da direita era a única que estava vazia, com exceção de um pequeno becduo tagarela, novo por ali, que tentava fazer amizade com os demais fregueses, enquanto pastava restos deixados nas tigelas, pois os restos são a comida mais requintada entre os becduos, a começar pelos mais ricos.

No caminho para a mesa, que ele já considerava vaga, Betjiar encontrou uma fêmea fergunte. Ela se pendurava em um lustre por apenas um dos tentáculos, pois estava muito deprimida. Guiryla era o seu nome, e Betjiar soube disso sem precisar perguntar, somente lendo o nome em um bolso do macacão daquela que tão rapidamente se tornara objeto de seu desejo. É que os ferguntes, ao conhecerem uma fêmea, são tão estúpidos que não gastam tempo nem para lhes perguntar os nomes, daí a necessidade da placa no bolso. Betjiar apanhou-a de um só golpe com seu tentáculo beta, único dos cinco que não disparava os letais venenos em gel, e levou a jovem para a última mesa, enquanto ouvia deliciado os guinchos apaixonados e barulhentos de Guiryla. Uma vez na mesa, o fergunte expulsou com um golpe tentacular o minúsculo becduo e fez a corte à fêmea como de costume, raspando os imensos dentes no tampo da mesa e esticando as verrugas oculares de modo que não restassem dúvidas da intensidade de sua paixão.

Infelizmente, para Betjiar, o becduo expulso era ninguém menos que o oitavo assessor para assuntos de imigração do Perwoio, e não demorou muito para que meu respeitável estabelecimento fosse invadido por três monoculares de couraça blindada, cada qual um pontiagudo globo coberto de terminais elétricos, que cercaram a mesa de Betjiar e Guiryla e se prepararam para eletrocutar o atrevido fergunte e sua namorada.

Prevendo o pior, Betjiar ergueu os cinco tentáculos, e parecia que se entregaria sem luta, coisa incomum entre os ferguntes. Mas no último segundo ele segurou o lustre acima da mesa com um tentáculo, com outro apanhou Guiryla, e os dois saltaram por cima dos monoculares, que quase se eletrocutaram mutuamente ao tentarem segurar o casal, mas ainda tiveram disposição para uma perseguição fora – felizmente – do meu restaurante.

Então fiz sinal com uma de minhas pálpebras dorsais para que os vermes cantores elevassem o tom da música ambiente, e às dançarinas cítricas para que pulverizassem mais perfume com seus passos rápidos, a fim de acalmar os presentes e dissuadir a polícia de Snentula de fechar pela quinta vez neste mês meu respeitável estabelecimento.

 


Nas alturas 

Gostaria de me apresentar, mas em nome da sobrevivência perdi meu nome, junto com uma batalha, há muito tempo. Fomos perdendo muita coisa, ao longo da guerra: língua, tradição, nomes, por fim perdemos até os palavrões com que ofendíamos o inimigo. Passamos a chamá-los amos. Moro no compartimento de bombas de uma imensa fortaleza voadora, peça da esquadrilha de ataque com que os amos determinam a morte de cidade após cidade. Eles me deixam ficar aqui, embora finjam, nos memorandos e comunicados à imprensa, que desconhecem minha existência. Os mecânicos da última revisão cochicharam entre si que é despojo significativo poder contar, no meio de seu aparato militar, com semelhante ser vencido, que habita entre as bombas melhor que debaixo delas, apreciando o engenho e a arte que fizeram dos amos merecedores desse nome. Como exemplo dessa tecnologia, há o curioso sistema aleatório de lançamento que impede que se saiba qual bomba será lançada em seguida. É preciso saltar rápido, em meio à adversa vibração, para evitar tornar-se pó junto com a cidade lá embaixo. Que aliás, percebo como se coisa minha jamais tivesse sido, tão jocoso me soa o destino dos de lá. Preocupo-me, sim, com a ração diária, tornada mais fácil pelo próprio sistema aleatório de lançamento que me diminuiu a família, primeiro lançando ao ar um moleque gritante, depois outro, certo dia, o caçula, outro dia a mulher. Alimento-me de restos deixados pela tripulação, se bem que convenha, para o futuro (pela disposição do alto comando – sejam sempre louvados seus feitos – de substituir o efetivo pela automação) estocar alguma comida, surrupiando-a nas paradas nas bases aéreas, nos intervalos das missões. Ouvem-me os passos nas despensas, mas esquivam divertidos os olhares, dizendo: são os ratos. Mas bem que combatem os ratos, por causa da peste que trazem. Sempre tive em mente o cuidado de não carregar nenhuma peste. Por isso sorrio um esgar de estranheza pensando nos tremores que experimento há cerca de uma semana. Finjo não ter percebido o veneno que notei tardiamente nos restos de comida deixados para este rato temporão. Se souberem que eu sei que morrerei envenenado, será meu fim prematuro. E não consigo imaginar o que seria deixar de experimentar essa indizível sensação de senhorio, agarrado às paredes do meu querido compartimento de bombas, ao ver a formidável destruição dos miseráveis tolos da cidade lá embaixo.

 

  
Gratidão 

Os laboriosos cupins que dividem o teto com Tertúlio, no mais profundo de suas trilhas, junto ao alojamento da rainha, ergueram um altar ao seu deus misterioso, a quem agradecem todas as noites pela fartura diária e por não os destruir no seu furor.

Se pedissem a algum desses cupins que explicasse a forma do seu deus, ele desenharia, com seus membros toscos e sua linguagem misteriosa de cupim, a figura de Tertúlio deitado durante a maior parte do dia e da noite, em sua cama lentamente carcomida.

 

Herança

para Klaus

Sentado na varanda, na cadeira secular que pertencera a meu pai, a meus avós e a tantos ancestrais desconhecidos, eu tinha no colo o mais novo presente do céu à linhagem modesta da família. Meu filho sugava o leite na mamadeira com uma sofreguidão que me enchia de esperança e uma certa saudade precoce. Pressa de crescer. Eu enviava o mesmo sorriso de sempre ao horizonte, para aquela mancha poeirenta que vinha pela estrada de terra em meio ao descampado, como uma miragem que caminhasse lentamente para mim.

Depositei a mamadeira vazia no assoalho da varanda, onde também firmei os pés do menino. Vi-o andando, numa competência crescente. Chutei a mamadeira para o quintal em frente à varanda, numa risada vitoriosa que tripudiava sobre os desafios à vida. Como se juventude fosse contagiosa, voltei a olhar o moleque e dei-lhe um chute moderado no traseiro, o que fez com que ele corresse atrás de mim para uma revanche. Pus diante dele a tabuada, as letras, nomeei-lhe os animais do livro e do quintal como um Adão de outros tempos. Derramei-lhe os oceanos e rios, plantei bandeiras e nomes nos países dos mapas. Já ia pelo meio-dia quando um olhar à estrada devolveu a mancha duas vezes maior que antes, uma miragem menos distante, mais real, um presságio que se cumpria, inexorável. Estendi ao menino o prato, agradecemos a Deus por todos os manjares da vida, mesmo os que ainda haveríamos de conhecer.

Após o almoço não convinha ruminar saberes nem brincar de correr. Recorri às piadas, às histórias, aos ditos populares. Perguntei-lhe muitas vezes o que é o que é. Rimos juntos, e foi então que sua voz me surpreendeu de tão grave. Instintivamente ergui os olhos para a trilha e a nuvem de pó já beirava o portão. O caminhão ora sofria os solavancos impostos pela estrada tosca, ora sacudia-se com o entusiasmo de todos os rapazes na carroceria descoberta. O motorista era acossado por todos para acelerar rumo ao destino, mas seguia devagar, consciente do rigor do caminho e da inutilidade de toda pressa. Tinha seu trajeto como inevitável. O veículo parou em frente ao portão, sem desligar o motor, e os rapazes acenaram e assobiaram ruidosamente para o menino feito homem, convidando-o sem chance de recusa para que se juntasse a eles. A nuvem de poeira era parte da sua festa, um lúdico sinal dos tempos localizado no leito daquela estrada de terra.

O jovem olhou-me. Seu olhar era definitivo. Entreguei-lhe a mochila, meio gasta pela espera, e abracei-o como se pudesse reter sua história entre os braços. Mal ele entrou e se acomodou, o caminhão recomeçou sua marcha lenta, e o rosto conhecido sumiu na poeira, no crepúsculo e na comunhão com os novos companheiros. Fechei lentamente o portão, caminhei pela varanda com os olhos cheios de memória, fechei a porta em silêncio, um silêncio sonífero alargado pela casa deserta. Acendi uma vela, esquentei o jantar e pus ambos sobre a mesa, numa atitude solene que só se consegue estando sozinho. Agradeci a Deus pela comida do dia e da vida, e mastiguei devagar, muito cansado do silêncio. Deitei-me sobre um colchão dolorido, lançando um último olhar para a penumbra indolente do quarto. Soprei lentamente a vela, que se apagou como uma promessa cumprida.

 

Nyflat 

Assim que Nyflat chegou ao jardim profundo, as mascantes voltaram-se para ele. O jovem então pôde aspirar enojado o odor de insetos nas garras das flores asquerosas. Mascantes na idade livre inibiam o apetite e mantinham eficazes as dietas à base de papercake.

– Bolo de papel – agh! Prefiro as mascantes e seus besouros cativos.

Nyflat cheirou seu relógio. Faltavam, a julgar pelo odor de pulgas, trinta momentos para o tricentral, o marco inicial para a primeira refeição. Jovem que era, Nyflat procurava engordar para atrair a atenção das misitranes, pequenas e delgadas sereias de pele diáfana e canção de monotom. Aderira a uma delas, uma vez, às escondidas do olfato intuitivo de sua madrastavó, e desde então não se cansava de atrair a mais próxima, mesmo que ainda não fosse possível ver seu núcleo brilhante, por tenra a idade.

Naquele tempo, quatro em cada cinco bisnagas de metalpasto eram obrigatoriamente consumidas por adolescentes, a fim de manter em alta o mercado de alimentos corrosivos. Ao tocar o tricentral, Nyflat grunhiu sua senha para a porta de clorofórmio e projetou os cascos para o tacho de metalpasto fumegante e ácido, sorvendo três quartas partes e lançando o resto no chão mineral, para delícia das petrárias de ventosas pretas.

Só então o totem emitiu seu sinal rigorosamente aleatório. Nyflat o desdenhou: hoje jantaria amebas pulsantes mesmo que a divindade da tribo o pusesse na caverna, pendurado pelas mucosas galantes, o que seria motivo de riso entre os outros semisseres.

Mas foi só quando os soldados empalaram seu ventre rugoso e desatento que ele se deu conta do volume da proibição desejada. Depois as petrárias comeram-lhe entre gargalhadas a carcaça.

 

O tirano 

O rei Plantifo conquistou mais um reino. Na verdade, foi o povo da cidade que lhe entregou o governo numa rebelião contra o antigo soberano, déspota sanguinário.

Como não conhece a língua do lugar, Plantifo nomeou como primeiro-ministro um nobre local, simpatizante secreto do antigo rei, e portanto ansioso por se vingar dos autores da revolta, e dos participantes, e da população insubmissa ao velho mando.

Conhecido como rei justo e bondoso em seus domínios, Plantifo goza no novo reino da fama de tirano cruel, por conta da sanha do nobre vizir, que profere as sentenças de morte no mais perfeito idioma pátrio. 

 

A visita 

Minha velha casa é inóspita a pessoas de carne e osso, que precisam respirar e carregar, como ferida viva, o coração de carne. Elas não toleram a aspereza de minhas paredes, a saliência das minúsculas gárgulas que as espreitam enquanto cruzam, de fachos acesos e medrosos, o corredor entre a sala e a cozinha. Minha casa presta-se antes às pessoas de papel, sem exigências orgânicas, sem direitos reservados à respiração. O teto sob o qual habito é de uso exclusivo dos viventes condicionados à escritura, dos personagens confusos, indistintos, dos quais só é possível ver na escuridão uma perna maltrapilha, um osso mal codificado, ou ouvir qualquer voz esganiçada que tente em vão comentar o mundo.

Foi, por isso, com estranheza, que recebi a repentina visita de estudantes da distante escola secundária, tão interessados na prospecção do modo de vida deste recluso que se arriscaram a vencer a mata de que me cerco, modesta remanescente, todavia ainda ciosa dos seus antigos segredos. Fiquei aborrecido a princípio, tanto com a ousadia dos garotos e meninas, dois de cada, quanto com a insânia dos professores que tão mal aconselham à feitura de trabalhos assim. Refeito do incômodo, no entanto – e os primeiros instantes do incômodo são os menos fáceis de tolerar – consegui perceber divertido o medo fascinado impresso nos juvenis semblantes ao adentrar a casa dita mal-assombrada pelo vulgo, provocadora para frangotes imberbes desejosos de impressionar as pequenas. Receio mesmo ter sido a visita objeto de aposta com outros grupos de heróis púberes, e que a história sobre trabalho escolar não passasse de balela para eu lhes abrir, menos contrafeito, os portões de rangentes gonzos.

A primeira pergunta (qual o meu nome) não trazia em si a tentação para que fantasiasse a resposta. Bem assim a filiação, estado civil e outras peças de frontispício. Ao indagar-me, porém, pela minha idade, o que ingiro, o que faço por diversão, um dos moleques comprimiu-me a secreta mola do sarcasmo, e daí por diante só lhes respondi por fábulas e inventos. Comia, como João Batista, mel silvestre e gafanhotos, dieta acrescida, e não por inspiração bíblica, de ratos cuidados no porão, dos quais fiz menção de servir a quem aceitasse o convite para jantar. E meu ludo se compunha das leituras ancestrais, quer de livros desaparecidos de outras bibliotecas, quer da impressão em minhas paredes, teto e umbrais das figuras e almas de visitantes ocasionais do bosque que nos rodeava. Não entenderam do que falava este velho colecionador, então lhes comecei a falar com mãos, dedos expositivos. Este pórtico, vejam bem, dizia-lhes eu com ternuras de professor nostálgico, traz as melhores e mais duradouras lembranças de Tiago Vértice, perdido num suposto vendaval há coisa de setenta anos, enquanto se punha, contra todas as ordens da lógica, a caçar com espingarda e cães na Mata dos Uivos, como se chamara outrora meu lar. Percebam seus contornos nesta superfície um pouco mais áspera, quando emitiu seu último fôlego, antes de sucumbir. Incrustam-se aqui todos os que perecem nas redondezas. Tal também foi o caso de Valentina Urbe, de contornos quase intactos, face aflita de quem entra na floresta em busca do estimado gato para de lá, aliás daqui, não mais sair. Quanto tempo desde o óbito, creio que cento e trinta anos, eram as primeiras braçadas da República de Deodoro, ou os últimos haustos do Império de Pedro.

Tais confidências, ditas aos dedicados alunos em tom displicente e cordial, muito lhes abriram as bocas e arregalaram os olhos, além de bem providencialmente lhes apressar a saída. Mas minhas abarrotadas paredes careciam de platéia, e eu havia muito perdera a pretensão de voltar aos meus afazeres com a concentração anterior à indesejada visita, de modo que enriqueci o relato com mais casos dos desafortunados de outras épocas naquelas paragens, memória felizmente preservada em minhas paredes antigas. Falei-lhes, enquanto apontava para a peculiar união entre uma parede e o teto, qual ajuste de fuselagem e asa, de Renata Égide, certamente a primeira mulher a sobrevoar o denso matagal, não lhe caísse o pioneiro monomotor no centro indevassável da mata; e de Pafúncio Rúcula, apaixonado senhor de escravos incapaz de perder passivamente a sinuosa mucama fugida para aqueles quilombos de então. Por isso diante dos olhos, a meio caminho entre o piso e a laje, como a pender entre dois mundos, aquela forma de poça em que chafurda já um braço erguido, da cabeça só visível o cocuruto. É que a areia movediça levara dos vivos o colonial nababo, diante dos requebros vingadores da negra, das cantorias dos recém-afeitos à liberdade; e não poderia me esquecer do menino sem nome, deixado pelos pais indigentes a morrer de abandono na fome e na sede, mas de existência bem-sucedida entre os símios daqueles dias. Claro que certa vez teve fim, fim mesmo de vivente selvagem, estatelado entre pedras, caído de cachoeira. Mas morto feliz, de robustos dias passados no verdor irrecuperável. Era o tal sorriso no teto da sala de estar, parecendo simular que ainda caía e cairia para sempre até os duros rochedos, fitando espavorido os olhos de quem estivesse no aposento.

Muitos mais eu contaria, mas minha assistência enregelou-se, talvez pelo frio da casa, fiel ao da mata, e deu uns passos incertos, gaguejando que já era tarde e ficava para outra vez. Nem se deram conta de que por aqui anoitece cedo, teria sido melhor esperar a aurora, ou que pelo menos houvesse lua no céu, ou que não estivesse chovendo à sua saída, a súbita chuva que sói cair nestas verdejâncias e tolda a vista, impedindo a orientação. Espero, a despeito do incômodo causado, que a estas horas estejam bem, nas próprias casas iluminadas, passando a limpo as didáticas reminiscências da visita, apesar dos quatro uniformes estudantis que se desenharam no ponto mais distante do corredor, onde, aliás, há uma goteira.

 

Os messias de Enatra 

Nem todos os messias são galileus. Os enátrios também creem num messias, que os tirará da pobreza em que vivem direto para a fartura em que cada um se bastará. O messias de Enatra ainda não veio, e os profetas que o anunciaram até hoje nunca deram pistas seguras de que ele nasceria em manjedoura ou iate, sob sombra de árvore ou montanha, em cidade ignota ou famosa. Sabem apenas que ele ainda virá, porque os sinais da profecia incluem o vôo sobre as portas da cidade santa, a renascença da vida no rio morto e o achamento de ouro na mina exaurida, feitos ainda inéditos. Por isso cada um pode, desde já, ser o próprio genial guia daquele povo, sem o saber, mas muito o suspeitando. E é grande o laconismo vaidoso de todos, porque a fala sagrada do messias de Enatra não pode ser desperdiçada com coisas comezinhas, além do que é arriscado dar-se a conhecer aos concorrentes e ser assassinado de antemão.

Os enátrios passeiam pela cidade santa com muito cuidado para que não lhes caia na cabeça algum candidato ao vôo triunfal, e atravessam o rio morto de olhos arregalados, atentos ao surgimento de qualquer minúsculo peixe vivo, e é cada vez maior o barulho de escavação que vem da mina de madrugada.

Os messias de Enatra jamais serão crucificados. Eles esperam, com a paciência inspirada pela vida nababesca, que algum estrangeiro mal nascido e imprudente os aconselhe a abandonarem aquela vida desconfiada e amarem-se uns aos outros, para inaugurarem a hospitaleira cruz.  

 

Os monocromos de Goyban 

O grande feito da expedição do professor Hilário Súbito ao Planeta Goyban, já no sistema Apleto, foi a descoberta de que os vermes também sonham. Não todos os vermes, apressa-se a dizer o próprio Súbito. Somente o monocromo hermético, abundante nas mais profundas cavernas de Goyban.

Por contar com a mais moderna tecnologia, o professor conseguiu não apenas a aferição das ondas semicerebrais dos asquerosos monocromos, mas também projetou numa tela onírica, especialmente desenhada para esse fim, o sonho dos pequenos animais. Digo o sonho, no singular, não por descuido, pois Súbito está certo da exata unanimidade da imagem onírica dos monocromos: eles sonham todos o mesmo sonho o tempo todo. Em seu sonho comum, eles passeiam pela superfície do planeta e num dado momento de sua história uma estranha nave os liberta das cavernas escuras, e todos passam a morar em cidades arejadas, repletas de prédios e carros, e chegam ao poder, exterminando os antigos moradores.

Diante do desassossego da comunidade científica e leiga com o panorama descrito, Súbito lembra a astronômica distância que separa Goyban da terra, e comenta, divertido e carismático, que até mesmo em nosso planeta os sonhos continuam sonhos e os vermes continuam vermes. Ele só não diz, talvez porque ainda não tenha percebido, que a cada noite passa mais tempo sonhando que se torna monocromo. Em torno da sua cama, no laboratório vastamente equipado, os espécimes que ele trouxe de Goyban parecem cada vez mais encará-lo e mesmo incentivá-lo a permanecer no mesmo sonho, enquanto eles próprios nunca mais dormirão.

 

Sazonais 

São nove horas e tudo está bem. Desce sobre sentenças e cabeças uma epígrafe de solidão.

Maquinurbe, rua policiada. Câmeras atentas ao gotejar de ânimo do transeunte. Praça Casual, Impulso Oeste. Cataryna e Axel se encontram sob o cartaz animado. Diz a pequena mascote, sorrindo entre lufadas de malícia: cidadãos de todas as idades, entreguem-nos suas memórias.

Cataryna enxerga em Axel pélvis, força e provisão, desconhecendo os limites de cada item. Axel a ama pelo tempo de duas miragens. Medem-se e convidam-se. Tocam-se e se deixam entorpecer. Há quartos ao alcance dos créditos.

Erguem-se pela manhã e olham pela janela. O sol ainda brilha para justos ou não. O casal se aquilata e se compreende. Precisa de alguma distância para sentir o outro necessário, aliás imprescindível. O amor já foi eterno por horas seguidas.

Urbemáquina, sombras de obeliscos. Todos os caminhos levam a Roma e a sorte sempre esteve lançada. São nove horas e tudo está bem. Cataryna sai da maternidade de braço dado com Xisto. Soube que pertenceria a ele durante a vida inteira, logo que o viu garantindo víveres, força e sorrisos. Axel passou por ela, abraçado a Zenylla. Não se reconheceram, como tinha de ser. O pequeno Maximo, gentilmente cedido na maternidade a algum ignoto casal estéril, deixa de chorar sob o olhar televisivo da mascote tagarela de mais um anúncio animado. Enfermeiras e médicos buscam uns nos outros a eternidade. 

 

Submundo

Não, eu não me arrependo de nada. Foi a tal vítima que veio a mim, e não o contrário. Afinal, quando o sujeito chegou ao banheiro eu já estava lá, em estado de graça, na liberdade sem vaidade que me coube na natureza. O indivíduo sim, é que perdeu a compostura ao me ver, mergulhou num desconforto irracional, visível à distância. E eu estava bem perto, observando-o enquanto ele abria o chuveiro e se lavava, prestando mais atenção ao que eu fazia que à própria tarefa. De dez em dez segundos abria o box para ver se eu ainda estava lá. Foi inevitável divertir-me com aquilo. E então passei a mexer as antenas, essas antenas bisbilhoteiras que as formigas talvez comam um dia, mas não tão cedo. Nous avons les reins solides. Baratas não morrem facilmente.

O medo do homem. Os olhos arregalados ao me verem com as antenas em sereno movimento. A minha escalada íngreme, rumo ao teto. O tal sujeito exibiu então um calafrio desproporcional. Puxou de leve a porta do box, apanhou a toalha e a roupa no cabide, depois o chinelo, e veio nas pontas dos pés até a porta do banheiro, tudo isso sem afastar os olhos de mim. Fiquei lisonjeada, que atributos temos senão a inspiração do medo e nojo? Mas nunca tive intenção criminosa. É claro que voei por sobre o homem e sua mão nervosa na maçaneta, com a soberba cruel de quem bombardeia uma cidade indefesa. Também é verdade que ele disparou gritando pela porta, escorregou num brinquedo do filho e caiu de cabeça no chão. Também é verdade que o chão lá é de granito.

Quem vive, morrerá, sempre me disse minha mãe, e nós, baratas, temos uma longa tradição de sobrevivência. Um pé rápido e calçado, um chinelo arremessado contra a parede, um inseticida da moda. É um passatempo nos matar. Não alimento remorsos, não foi minha culpa, mas não pude deixar de rir, triunfante. Rir e voar sobre aquela carcaça, saboreando minha segurança. Ri até a tal carcaça se erguer do granito, segurar a cabeça com as duas mãos e olhar para mim. Então abandonei o local, num êxodo solitário e urgente. Nessa solidão consiste meu único pesar, pois na semana seguinte desinsetizaram toda a casa. Um massacre. Indivíduos de tantas espécies fulminados por causa de um tombo estúpido. Se voltarei lá? Decerto que sim, adoro aquele armário da cozinha, cheio de doces e aberto todo o tempo. Mas devo passar uns dias aqui até o cenário se mostrar mais propício. E este bueiro até que não está mal. Parece até aquele em que nasci. Mas deixemos de lado a etiqueta, minhas caras, abram um pouco o círculo que eu também quero um pouco deste quindim. 

 

Tesouro 

Para curar seu filho Pólimo do medo da morte, o rei Hipério o nomeou chefe do exército e o encarregou de expandir o reino pela força. Em poucos meses de campanha, o príncipe Pólimo anexou dez reinos, e obedecendo a tradição de seus ancestrais, passou a ostentar os anéis que simbolizam cada conquista.

Pólimo está partindo para sua décima primeira campanha militar. Ele está curado do medo da morte, mas teme perder em combate suas mãos ou um só de seus dedos.

 

O atentado ao verborrotor 

Tínhamos, antes de mais nada, a palavra doendo por dentro como não podia doer uma estrela engolida. Expulsávamos sem cerimônia os nomes das vísceras. Era impossível não tingir do sangue das letras o dia mais curto, e mesmo aquele que nunca terminou.

Estávamos na contramão da vivência prática. Isso nos proscreveu. A comunicação encorajada pelo ditame social era a tátil. O corpo, advogavam os teóricos da mudez, era o mais eloqüente e inequívoco dos meios de expressão. E acima de nós o verborrotor declarava ininterruptamente as sentenças que a história deixava para trás, segundo após segundo. Todas as frases singelas e complexas, chulas e sublimes, pedidos de compra e teoremas, fragmentos de romances e de discussões suburbanas, anúncios de cadilaques e leitura de extratos bancários, tudo era expresso pelo verborrotor, o monumento oficial à obsolescência da palavra, somente celebrada como relíquia e ouvida como pretérita. Nunca posta lado a lado com o existir diário, pois “todas as coisas já foram ditas”. O verborrotor se estendia pelas cidades e pela nação, e o mundo era coberto pela sua sombra. Não havia como viver a existência pública, em sociedade, e não se calar sob a mordaça do ininterrupto mausoléu.

É um erro supor, no entanto, que o consenso habitava sob o verborrotor, junto com os mudos e erráticos passantes, com seus corpos nus ou quase que, volta e meia, em nome não só do prazer mas também da ortodoxia oficial, expressavam publicamente o desejo, ensejando a orgia instantânea e erigindo os ditos poemas de pele e mucosa. Éramos a dissidência, cuidadosamente oculta. Gente como Helena Plêiade, amante da diversidade e autoridade exilada em Engenharia Verbal; como Príapo Nomini, poeta experimentalista clandestino, para quem o vocabulário era a orgia mais completa, se é lícito falar de completude na busca insaciada. Nomini chegou a ser preso três vezes por camuflar palavras codificadas numa sinfonia de vozes em transe erótico, para audição de outros subversivos. Felizmente as senhas apreendidas nada tinham a ver com nosso projeto mais ambicioso. O ataque ao verborrotor continuava secreto; gente como Paloma Vocata, que publicou em seu clandestino Manifesto Maldito a insustentabilidade da prima ordem da Conjuntura Inequívoca: o homem inteiro e feliz sem palavras na boca e nas mãos. O manifesto fora dividido em quatro capítulos, transmitidos aos pedaços mediante interferência em programas via satélite. Foi difícil para mim pesquisar seus estudos, penetrando de madrugada em bibliotecas clandestinas ocultas nos fundos de compulsórias academias de ginástica fundadas ou geridas por simpáticos à causa, e em sítios clandestinos e temporários nas inforredes sensuais.

Explodir o verborrotor era uma antiga quimera. Nasceu junto com o projeto do aparato. Experiências locais já haviam sido levadas a efeito, mas tiveram alcance muito reduzido. Obra muito mais de vândalos e desesperados, deixaram a guarda conjuntural de orelha em pé, adiando o planejamento da MUSA, ou Malha Ubíqua de Situação Avessa. As bravatas e fumacinhas dos inconseqüentes não fizeram mais que arranhar paredes e deslocar um ou outro cabo, ou ainda desmontar, se muito, uma antena terciária ou de apoio, coisa de fácil reposição e de alcance local. Adotada como tática, seria fiasco e mar de riscos. Mas chamaram a atenção para os pontos fracos do verborrotor em escala territorial, não tão maciço na metrópole, por dificuldade de manobra de pânico. O que planejávamos, e que se tornou mais difícil depois do vandalismo gratuito, era a destruição total do ambiente verbal sufocante baseado na estrutura do verborrotor, que dispunha de um sistema assaz abrangente e por vezes mais sofisticado do que o da telefonia celular. Havia alto-falantes nas ruas, nos banheiros, nas oficinas, nos ônibus, dentro dos carros, no subsolo, nos aviões comerciais. Robôs falantes exercitavam a troante verborragia entre as ruas, gritavam impropérios, recitavam poemas comerciais, liam especificações de tratores e pontes rolantes e antigos e novos comerciais de farinha de trigo e analgésicos. A seqüência ininterrupta e imprevisível de frases mantinha os ouvidos ocupados, a mente na embriaguez ou embebida em anestesia, a fala incapaz de se impor diante de tanto verbo invasivo.

Sendo o silêncio do cidadão a norma, desafiá-lo poderia enlouquecer ainda mais do que a ele render-se. Uma vez localizada a recalcitrância, mesmo que a rebeldia da palavra fosse apenas uma explosão de desespero, o oponente não ficaria impune: tratava-se de excluí-lo sumariamente do êxtase da orgia e iniciar sua doutrinação. Capturado e posto em grades, obrigavam-no aos motes repulsivos, falas abismadas, ameaças terrificantes, tudo dito em infindável repetição. A capitulação era totalmente previsível. Raramente havia reincidentes. A palavra perdia então seus últimos focos de representação diante de todos, para a glória da Conjuntura Inequívoca.

A operação planejada pela MUSA não tinha precedentes, fazendo desabar o mausoléu do léxico chamado verborrotor como um monolito, senão no mundo todo, em pontos cruciais do globo, de modo que estruturas suplementares não pudessem a tempo suprir a falha, de modo a capturar mais uma vez a gama de satélites e fazê-los trabalhar a nosso favor, propagando a enorme ausência da avalanche frasal. Interjeições e gemidos iniciais de ouvintes pouco afeitos ao exercício da palavra seriam logo substituídos por tentativas inteligíveis de comunicação. Estrategistas da MUSA previam a partir daí uma revolta que poria fim ao Inequívoco e a toda a ordem baseada no silêncio, no corpo e no tátil. A maior dificuldade não era explodir a imensa construção, mas servir-se do efeito para tomar os pontos-chave com poucos combatentes e permitir a fuga do maior número possível de cidadãos, recém-falantes, soldados futuros. Fato era que sem palavras o exército inequívoco se entendia, acionado binariamente com elementar mas funcional linguagem zeroum. Uma palavra ou som não identificável com gemidos e gritos gozosos deflagrava a doutrinação, mas muitas frases e viventes falantes deflagravam as armas. Matar o falante na gênese, como incinerar cartilhas. Que ninguém esperasse sangue de menos.

O verborrotor era descendente direto da teletela de Orwell, pregava Paloma Vocata em torno da fogueira clandestina em que nos abrigávamos na véspera da missão. Ele se irmana com a Inquisição e o Nazismo queimadores de livros em praça pública, e onde há verborrotor se pode declarar, como, acho (as memórias ficavam flácidas com o troar da palavra inutilmente publicada), Thomas Mann, que as pessoas começam queimando livros e terminam queimando pessoas. O vasto aparelho, entretanto, não capta dos cidadãos informações, como o invento doméstico de 1984, porque seus gestores já reputam o cidadão como morto, incapaz de expressão. Movimentos ritmados de sombras de alcova, arfar de corpos, histerias engraçadas durante o jantar, misérias secretas de caráter em torno do ganho ilícito, nada disso era prospectado do passivo contribuinte, porque a banalização pública da palavra e os apelos e potenciais do corpo eram convites poderosos ao silêncio.

Helena Plêiade odiava o inimigo por outro flanco, suas palavras ditas tão agudamente no escuro como se pudessem matar com lanças de nomes e verbos todos os pensadores e impensados inequívocos. Dizia ela que tanto quanto o Khmer Vermelho raspou as cidades, privando-as de almas, e proscreveu a presença de óculos e a ausência de calos nas mãos, tanto quanto pregou a obediência ao exemplo puro das crianças puramente corrompidas, assim a Conjuntura Inequívoca deita fora a palavra alijando-a do corpo, varrendo das mentes a comunicação superior, encharcando os animalizados de prazer primitivo a fim de que não reconheçam direito a algo mais. Assim se perpetua, pois é impossível conspirar sem palavras.

Príapo Nomini desferiu então o último discurso da reunião cupular: Esparta deliberou o laconismo e fez do silêncio a muralha ideal contra a dúvida e o derrame de segredos de Estado. Aqui o laconismo, levado ao grau extremo, é desejado pelo próprio cidadão que condena ao oblívio a palavra que o pariu, com vistas a perder-se no hedonismo corporal. Esse existir aquoso, etéreo, inumano, não se sustenta quando o prazer se dilui, quando a dor se impõe sobre o véu. Tal é o êxito da nossa missão.

Tal foi o êxito. O atentado lançou mesmo no desespero a soldadesca avessa ao verbo espontâneo, que não sabia o que fazer e atirava nos nus passantes atônitos, encerrando primordiais monossílabos de pânico e perplexidade. Entretanto, se as execuções sumárias abriam lacunas nas hordas de futuros falantes, o horror à carnificina, ao sangue, a todo aquele antiprazer fez proliferarem as lacunas no domo de isolamento coletivo e as expressões minimamente verbais, tanto que o primeiro mês da revolução fez-se chamar monossílabo, assaz comemorado no calendário lexical, nunca mais concebido o calendário de meros números e fotos. Explodimos, por trás dos circuitos e programas, dos soldados e blindados, dos robôs e telas, os lendários contrafortes da certeza unilinear, fizemos cair no abissal silêncio os ouvidos órfãos dos contribuintes, tão somente soerguemos a cortina de segurança, a parede sonora que fazia da palavra o monstro vencido, nada interativo, execrado em rituais ágrafos, aprisionado por trás de intermináveis passatempos numéricos, achincalhado em pobres paródias sem sentido tatuadas em incansáveis peles forçosamente lúbricas.

Assim os libertamos, os primeiros cidadãos da Situação Avessa. Foi em longos haustos que, a partir da explosão inicial, passaram a respirar a torrente dos sentidos. No grau mais amplo da discórdia primordial, Babel instaurada, avidez aguda de ouvir e se fazer entender, alguns, efeitos colaterais inevitáveis, forçavam sua expressão sobre a dos outros, suscitando despotismos pífios, impondo silêncios pontuais, precários, no lugar da antiga grande massa opressiva oficial. Custou-se a edificar o equilíbrio minimamente saudável, e mesmo o êxito de hoje nenhum Éden representa. Mas cresceram e se multiplicaram, embora divididos. Ficaram uns nas cidades, balbuciando para os novos recrutas versos sob nuvens enluaradas ou de prometida chuva; outros nas cavernas, distantes e felizes em frases rupestres de acalanto; outros, ainda, mortos, mas sepultados sob lápides que contavam, em caracteres respeitáveis, inteligíveis, aos filhos orgulhosos e dignos, que no princípio era o verbo.

 

Exercício de misericórdia 

As batidas insistentes na porta, desespero tátil. Um pouco menos espessa a madeira e seria possível ouvir o arfar da agonia. Gritos ao fundo desorientavam a comoção do povo. Não lhe abri de imediato a sala aos passos clandestinos. Primeiro a portinhola central, que jamais se sabe se não nos roubam e matam, quando acenam com as dores da sobrevivência. Voz pequenina, mas gemente de altas convicções. Rosto sem beleza, amesquinhado pelo medo de se fazer nada num instante. Rugas desenhadas sem arte, por onde corria o suor da fuga: Piedade, senhor, guarde-me em sua casa, que eles vêm com archotes e lanças, e querem queimar a bruxa, e ainda não posso morrer agora que sou menos que lenda, menos que mito, e se eu morrer não há quem me reviva.

Reflexão de meio segundo, abri-lhe a porta, meio segundo antes de virarem a esquina os corpos que a perseguiam. Imprecações de muitos sotaques, mas a vista frustrada por não ver a velha merecedora do facho. Despistados na noite, restava-lhes ler o futuro nas mãos uns dos outros, ou ansiar por uma estrela cadente que lhes bancasse desejos. A velha se aboletava na sala, exageradamente cansada deixou-se amortecer no tapete, onde o apelo do fogo, mais do que o frio a faria rastejar vil e vencida até a lareira. Intentei no íntimo risonho que quem logra fugir à chama do ofício sacro bem poderia esconjurar o fogo doméstico, mas meu silêncio venceu, respeitoso. Quando não mais ofegava, ofereci-lhe bebida forte, seu rosto mergulhando meu humor de plantão numa máscara curiosa. Sem insistir muito, que os faltos de socorro pouco escolhem ou obstam, convenci a se sentar em local mais digno, embora ainda diante da lareira, e me alimentei de sua história, que o pão amassado aos prantos também nos põe de pé.

Mais calma, na clandestinidade da lareira quase insuspeita, ela contou que se fizera bruxa por se entortar de viver, mas quando jovem, era um rosto nas moedas com que muitos homens pagavam as bebidas. Desinventei-lhe o enredo, inquirindo se antes não roubara as moedas de algum dos bebedores, mas seus bolsos ocos me devolveram à audição dos ocorridos. Foi quando a velha disse que a perseguiam por calcarem aos pés a revelação de cada dolorida chaga do que lhes ia acontecer. Ser bruxa é um mister querido quando se dá o mel aos ouvidos doces. Muito menos cômoda a vida quando o porvir é amargo, pesaroso de comer.

Ter razão é como ter vermes por dentro, disse, antes de fazer desabarem ditos e interditos, passados e futuros engendrados da matéria livre e penosa dos viventes, um anseio de devolver ao útero do mundo tanta placenta viva lançada em sua vivência de contadora de porvires, esgotada dos saberes de épocas alheias. Talvez pelo teimoso percebimento da morte, ela já não negava o que sabia, embora tudo saísse em golfadas de verbo instantâneo, intransitivo, um aparato de dizer sem consequência. Dia feliz é dia de sono sem sonhos, porque mesmo nos sonhos é possível que tenhamos razão. Conhecemos, sem saber o quanto, mas ainda coautores culpados de nossa ousadia.

Insisti para que ela dormisse, o sono final dos perdidos, interditados de seguir além, prisioneiros da desdita definitiva, mas ela quis fruir ainda por um pouco a urgência. Contou que vivera entre os homens mais sábios, os poucos conscientes da história capazes de se cobrirem de cinza, mesmo na pujança dos haveres. Mas hoje a terra se aglomerava em pústulas, havia vulcões embebendo os homens em fogo e cinzas, e loucura para fazê-los ver roupas caras onde só havia sacos da pior fibra. Muitos dos medos de outrora encharcados na maré do tesouro reles, na correnteza do cotidiano mais ordinário da sandice dos tédios prometidos. Tudo anunciado com grandes frases incandescentes para as quais a prole numerosa de surdos e recalcitrantes viraram suas pedras e anátemas. E eram o dia e a noite já arenas de se ver morrer o infante por falta de víveres e da vivência do pai hediondo, da mãe néscia. Eram de riso demente e flácido, de lágrima obscena e turva todos os acordes trilhados na madrugada gritante, quando nenhum poderoso ou andarilho estava a salvo das chagas e alucinações.

Ela própria, a bruxa, já alucinava estertores, já desmerecia a calma com que começara o relato da desdita do povo incauto, que lhe transmitira, feito num contágio, o brilho alarmado no olhar. Ela própria era ondulatória que se estirava alto e baixo na superfície do um ânimo indócil, carregado das vidas que lhe pesavam na história extenuada. Cumpria-me silenciar sua voz fatigada. Mais bebida forte, com o acréscimo pulverulento do desígnio que me ia na alma, sedimentado no fundo do copo. Ela me olhou pela última vez, agradecida, compreendera demais o futuro e as almas para não entender minha intenção de poupá-la ao desmanche da história que a abrasava e gastava, na tortura de tantos episódios na terra dos tolos viscerais. Além do mais, já era a lenda que queria ser, não em pessoa, mas na letra que se apossava dos registros dos perseguidores, que não a conseguiram matar, muito menos lhe arrancar a retratação. A feiticeira dos augúrios nefandos era-lhes o estigma, o vago, a incômoda janela para o nada que se negavam a ser, a varanda para as chamas que os derretiam nas clareiras de tantas madrugadas. Desmenti-la seria agora sua obsessão primeira.

Sepultei-lhe o corpo no quintal acanhado, é engano de caçadores de espetáculos desejar que as bruxas se façam em nada no ar, expostas à morte. Duro e suarento foi depositá-la sob o chão. Agora que sua precisa lembrança se arruinou, agora que a imagino sob o pretexto de lembrar, tenho as vozes de perseguidor, vítima e cúmplice amalgamadas na sala das confidências. E dedicarei ao perecido personagem, mesquinhamente, como acontece aos escreventes menores, uma ou outra página dentre as muitas de sua própria autoria.

01 :: 02 :: 03 :: 04

 

Índice de livros integrais

Voltar