Cena inaugural – O que os olhos veem o batom espanta
Odete pôs Natanael na alça de mira enquanto ele ia de ônibus para o trabalho. Ele lia um livro, distraído, num assento perto da janela, nos fundos do veículo, mas levantou os olhos e olhou à esquerda bem a tempo de ver Odete na caminhada matinal, a bordo de uma malha de ginástica vermelha, chamativa, e acompanhou-lhe a marcha até que a distância não mais permitiu. Chamaram sua atenção, sobretudo, os exageros da maquiagem da mulher, o batom excessivamente rubro, com a óbvia intenção de destacar a boca, mas destacando-se a si próprio, como uma moldura que de tão larga escondesse o quadro. No entanto, mais tarde, no salão da Olga, Odete diria que foi paixão à primeira vista, estava escrito nas estrelas, acabara de arrumar seu namorado e marido.
Odete, cá prá nós, bem que estava precisando resolver aquele detalhe da vida. O dia-a-dia de solteirona vinha lhe dando nos nervos, aquela solidão doméstica sussurrava, sem falhar um só dia, uma melancolia que ela tentava abafar, ouvindo os beijos e abraços de que o rádio e a tevê falavam, na voz de um ou outro ídolo de aluguel, e ela era só silêncio, o silêncio sempre tão vasto que dava para contar os pingos da chuva, lá fora. Não era à toa que qualquer flerte na rua logo trazia às esperanças de plantão a velha e amarrotada fantasia do véu e da grinalda. Foi-se mais um dia de sonho, e Odete suspirou e fez planos, também dormiu mais tarde e acordou atrasada, e isso quase estraga a operação.
Pois Odete logo tratou de pôr cerco à presa, como de tantas outras vezes, e na mesma hora e local da primeira aparição de Natanael, ela caminhava um passo meio frouxo, um compasso de espera, a postos, de tocaia, nem de longe a rígida cadência que usava para enxotar celulite, mas com a mesma malha vermelho-neon de antes, porque sempre lhe disseram que vermelho é a cor do desejo. Quando o ônibus apontou na curva, ela percorreu as janelas em busca da vítima, e ao vê-la, disparou pela rua até o ponto, esgoelando-se e socando a lateral do coletivo, onde um anúncio de creme capilar prometia a sedução fácil do ator de novelas. O motorista, ao ver sua careta de desespero e apesar daquela maquiagem de fantasma, deixou-a entrar.
Ela sentou-se ao lado do alvo, digo, do príncipe encantado, apesar de quase todos os lugares estarem vagos. Olhou para todos os lados, menos para o rapaz, para não dar pista, como ela sempre dizia, em palestra a suas amigas menos experientes. Alisava os cabelos, a fim de exibi-los, enquanto vasculhava a cabeça ansiosa em busca de corda para puxar assunto.
Segunda cena – Em que a língua chicoteia o coração
Todo dia que Odete vinha fazer unha ou cabelo era a mesma ladainha nos ouvidos de Olga. Tudo escrito nas estrelas, coisa de novela, e isto e aquilo. Tudo bem, até que com a conversa repetitiva ela já se acostumara, que cabeleireira serve para isso mesmo, para ouvir desabafo de freguês, fantasia de freguês, choradeira de freguês. Ainda mais que Odete era freguesa antiga, desde que abrira o salão ela estava por ali. Quem sabe até fora a primeira freguesa, sentada no meio-fio, enquanto a pintura das paredes secava, esperando a hora de entrar para fazer um alisamento. Aquela lengalenga já estava no roteiro.
O que incomodava mesmo Olga era a perguntinha que Odete fazia ao final da narrativa de cada devaneio. E você, Olga, não vai arrumar um namorado não, é? Como se o namorado dela já fosse uma realidade, e não um delírio daquela maluca. Como se alguém fosse se interessar por um tribufu daqueles, segredava Olga para si mesma, nos dias mais amargos. Bom, tribufu, também não, voltava atrás nos dias amenos. A danada era até meio bonitinha, se cuidava, fazia exercícios, estava com tudo em cima, apesar de não ser exatamente uma adolescente.
Mas vá, então casamento era tudo que importa na vida da mulher, é? Não para ela, dizia à outra, que se sustentava, que não dependia de homem para nada, que tinha o próprio dinheiro, o próprio espaço, a própria vida. A própria solidão. Ela dava a mão à palmatória, de si para si, entre as paredes de si mesma, dentro das quais a vestimenta de força e independência descia pelo ralo, dilacerada, fibra sem trama. Só em segredo assumia a convicção de que alguém fazia falta. Para encher a casa de suspiro e de susto, de palavrão e de cuidados, para dividir o dia e a noite, o sofá e a cama. Marido não era tudo, mas tinha seu lugar.
As freguesas pareciam contribuir, sem querer, para sua tristeza. Não é que não tivessem outro assunto a não ser homem, mas não havia uma sequer que até hoje não lhe tenha contado uma ou outra aventura, conjugal ou extra, ou pré, ou anti, ou a cor das meias do fulano, a promoção que beltrano recebera no serviço, a cara do sicrano quando ouviu que ia ser pai. Todas, num certo momento, pareciam necessitar de uma demonstração de que eram fêmeas, assinalavam-se como esposas, amantes, namoradas, num comprovante para elas próprias, mas com direito a ouvinte. Odete não se ressentia delas, também era mulher, gostava de conversa, até de fofoca, mesmo não passando adiante, que isso era de lei: ouvir e guardar.
O que Olga não perdoava era o exibicionismo cruel de algumas clientes, porque desde cedo descobrira que as pessoas falavam de si mesmas ou para ficarem mais leves, ou para ficarem mais pesadas, maciças, para massacrarem os iguais numa bigorna verbal. Odete era assim. Seu charme era uma ilusão e seu magnetismo, o mesmo de um espantalho, porque tamanha era a sede de companhia que ela nunca conseguia estar sutilmente diante de alguém, mas impunha a presença da forma mais urgente e anunciada, afrontando ou fazendo rir o público, que se mantinha sempre a uma distância segura. E no entanto, ela vivia construindo na fumaça, fazendo das fantasias o imediato futuro, enquanto media e calculava em Olga uma posição de eterna coadjuvante, habitante do segundo plano, no inesgotável fôlego de sobrepor-se aos demais. Jamais poupou a cabeleireira da pergunta pontiaguda e incômoda como um espinho, só para ouvir, deliciada, a resposta desinteressada que havia muito soava sem sal.
Assim nasceu em Olga o desafio de fazer Odete engolir a propaganda fácil, a pose de Afrodite suburbana, de noivinha de araque, como dizia a avó da cabeleireira. Sua repentina nobre causa: tomar o tal namorado da outra, antes que ele tivesse a chance de abandoná-la, como sempre fizeram todos os outros. Depois dispensar a posse, que também não queria ficar com nada de ninguém. Só mesmo para calar a tal perguntinha no final do discurso, como uma cobrança a lhe doer no brio.
Terceira cena – Porta de saída, tábua de salvação
Natanael nem era chegado à leitura, não. Normalmente ele vinha dormindo no ônibus, e só não perdia o ponto porque o cobrador era seu amigo e o avisava, salvando-lhe o emprego. Mas na véspera do dia em que vira Odete de malha vermelha, chamativa, ele havia completado trinta e três anos. “Idade de Cristo”, disse a filha beata da vizinha beata, amiga da mãe beata de Natanael. Disse, e presenteou-lhe com um exemplar da vida de um santo cujo nome agora me falha na memória, ricamente encadernado e ilustrado, com pouco mais de duzentas páginas e um mártir na capa, de longos cabelos louros, como os dele, Natanael. Ele ficou meio decepcionado, a embalagem prometia, sei lá, uma coleção de discos, uma caixa de cuecas, religião nunca foi muito o seu forte. Mas agradeceu o presente, sorriu seu sorriso cosmético em que se abrigava, como numa barricada, no meio do tiroteio retórico de todo mundo de todos os dias, e começou a ler o livro, um pouco por dia, como opção para a paisagem do caminho para o trabalho, conhecida de cor. Leria pelo menos até que o sono de costume chegasse e o emprego ficasse novamente por conta do cobrador.
Estava no começo do princípio do início do livro, quando a lerdeza matutina o obrigou a fechá-lo, mais ou menos após a primeira flagelação do tal mártir. Foi então que olhou pela janela, para assegurar-se de que ainda faltava muito para chegar à empresa, e deu com aquela mulher a olhá-lo, secando-o como quem lhe contasse os poros do rosto. Não era inteiramente feia, nem razoavelmente bonita, mas um tanto vulgar, naquela malha de ginástica vermelha demais, visível até contra a vontade, e aquela maquiagem ridícula contribuía para que a figura pudesse ser lembrada entre as dez mais bizarras que ele já vira, incluída na relação a carranca desleixada do tio Olavo, que de vaidade só tinha mesmo uma peruca meio rota, que ele não sabia pentear e que por isso lhe dava ares de débil mental.
Natanael não deu maiores atenções à dama de vermelho, mudou de lugar na condução, chegou-se mais para frente a fim de evitar os baques dos quebra-molas, sempre maiores na parte traseira do ônibus, que poderiam lhe render alguns sustos. Mas susto mesmo ele teve no dia seguinte, quando a mulher tomou o ônibus de assalto e atirou-se, senão no seu colo, ao menos no assento ao lado, do modo mais violento e preciso possível, sugerindo a casualidade de um franco-atirador. Ela girava os olhos, como se fruísse uma convulsão, e movia os dedos nervosamente como se tocasse em piano imaginário uma sinfonia frenética, enquanto ele podia ouvi-la balbuciar uns princípios de conversa. Natanael conseguiu segurar uma gargalhada descortês e arriscou, tentando controlar a conversa que se apresentava inevitável, você não pega esse ônibus todo dia, não é, e ela não, não pegava, normalmente ia a pé, ela dizia, sem tirar os olhos vidrados de Natanael, que desviou os seus, embaraçado. Dia bonito, ele voltou ao ringue, ocultando-se no clichê de transeunte, para evitar que ela fizesse perguntas, uma boia para manter o corpo na superfície, impedir que lhe mergulhasse na intimidade. Sua própria timidez não contribuía para o desenvolvimento de nenhuma conversa, mesmo as desejadas. Uma timidez que se envergonhava até de se reconhecer como tal, e exigia mais do portador que a covardia declarada. Ele não se encolhia nos cantos diante das situações novas da vida, antes tentava até o fim aparentar algum controle, mesmo que precário, mesmo que a brisa gelada se infiltrasse em seu núcleo nesses momentos e subisse em intensidade, até se tornar uma tormenta de suores e tremedeiras. Fora pessoa sem brilho, meio turva ao longo da vida. Jamais tivera bom emprego, nunca namorara a garota bonita, nem de longe lhe passou pela cabeça ser o orador da turma. Nem se achava, pensando bem, no direito de rir da mulher maluca ao lado, ou de repudiar o óbvio e desajeitado assédio. Apenas estava tão pouco à vontade que o impulso que o inspirava era, naquele momento, saltar no próximo ponto e sumir das vistas dela. O que o continha era a empáfia simulada diante do adverso.
- Bonito, mesmo – Ela ia se soltando, devagar, assumindo uma segurança que contrastava em muito com o desconforto de Natanael. – Eu caminho todo dia, de manhã. Depois que eu passei a caminhar, minha forma melhorou muito – Ela dizia, oferecida, estendendo as vistas para o próprio corpo, enquanto Natanael conduzia sem jeito olhares para as declaradas sinuosidades de Odete, para o decote, para dentro de si mesmo, a fim de encontrar um sujeito sem sabor e sem direito a nada daquilo. Estar exposto assim a uma mulher que se exibia claramente para ele o fazia suar frio, como se dele zombassem, segundo a lembrança distante, lá do ginásio, em que os garotos da turma inventaram, só para se divertirem às suas custas, que a garota mais linda da turma estava interessada nele, e deram-lhe ultimato para que a peitasse, caso contrário a fama de frouxo, de maricas, correria por toda a escola. Sem remédio, foi à garota, gaguejou alguma coisa semelhante a uma proposta, ouviu a esperada recusa, o divertimento encabulado da adolescente, como num ritual, sofreu as gargalhadas dos colegas. Escapou da fama de maricas, mas jamais angariou reputação expressiva entre as mulheres. Agora, sob o franco assédio daquela mulher tão esquisita, tão imprópria ao meio quanto ele mesmo, mal reprimiu um sorriso irônico, depois de tanto tempo e tantas outras presepadas, lá estava ele querendo fugir, quase mudando de lugar novamente, para evitar o confronto que parecia invencível. Mas conseguiu respirar fundo e dar tempo ao tempo, quem sabe ela se cansasse e fosse embora.
Não se arrependeu. Outra mulher materializou-se no banco à frente, virou-se para trás e disparou um colóquio ininterrupto com a maluca de vermelho, um assunto recheado de bases e cremes, permanentes e escovas, a recém-chegada crivando a outra de perguntas e elogios, enviesando olhares, frustrando definitivamente a tentativa de prosseguir com a conversa. Aproximando-se o ponto, Natanael levantou-se, num salto, bendizendo a salvação pelo gongo, enquanto a mulher da malha vermelha contemplava seu afastamento, no desespero impotente de quem perdeu a última chance.
Quarta cena – Uma jarra na mão e uma ideia na cabeça
- Que diabo Olga foi fazer lá? - Odete não tinha outro pensamento, enquanto atendia os fregueses da lanchonete na qual trabalhava. Ela nem mesmo mora naquele bairro, ela insistia, vasculhando a lógica em busca de uma explicação. Além do mais, era cedo demais para ela visitar alguém, e aquela desculpa de sono perdido não convencia nem criança de seis anos, ela refletia, enquanto despejava quase toda a jarra de suco de laranja no punho da camisa de um freguês, que saiu xingando. Ela pediu mil perdões, mas o homem já ia na calçada, atravessando a rua sem olhar para os lados, grunhindo o punhado fecundo de impurezas que assustou uma mulher que empurrava carrinho de bebê. Nem houve tempo de tapar os ouvidos do pimpolho.
- A não ser, voltava Odete, que ela estivesse lá para espioná-la. Era bem capaz, depois daquela cara de inveja que notara na cabeleireira, ao falar do novo namorado. Mas o que ela, Odete, podia fazer? O “carinha” estava na dela, era só estalar os dedos, estava no papo. É verdade que ela não tivera muito sucesso da primeira vez, exatamente por causa da invejosa. Mas da próxima vez não perderia ponto para aquela queimadora de cabelo. Farinha pouca, meu bem, meu pirão primeiro. Está escrito nas estrelas.
Quinta cena – A mentira tem perna curta e língua comprida
- Gracinha, ele, ein, Odete? Como se chama?
- Rodrigo, querida. Você veja só, estava caminhando por ali, vi meu gato no ônibus, fui lá bater um papinho.
- Mas vocês namoram sempre assim, no ônibus?
- Imagine, meu bem, ontem mesmo, à noite, ele me apanhou para um cineminha, depois fomos a um barzinho ali perto, tomamos umas geladinhas, ele me deixou em casa. – Mentiu Odete, com a cara mais lavada.
- Só?
- Também não vou contar tudo em detalhes, não é? Eita menina indiscreta – Odete acrescentou, dando uma batidinha marota no ombro de Olga, querendo aguçar ainda mais a curiosidade e a inveja da outra.
- Uma noite linda como a de ontem, aquela lua cheia... – Odete dizia, como que para ninguém, de olhos perdidos no teto do salão. Em parte fantasiava seu romance dali para frente, mas sem perder de vista o impacto daquilo em Olga, como se já fosse realidade.
- Mas a lua está minguante, Odete – Olga disse, derrubando a outra do devaneio e quase que da cadeira, também, de susto. Fora apanhada na própria rede. Será?
- Ah, com ele toda lua é cheia, sua boba – Riu escandalosamente, para disfarçar, mas a outra também não se deu por vencida.
- Que filme vocês foram ver mesmo?
- Um tal de... Nem sei, a gente não repara muito em filme quando está apaixonada, sabe Olga? Ah, esqueci, você não sabe o que é isso há muito tempo, mesmo. Quanto tempo, Olga? Dez anos, muito mais ou um pouco menos?
Olga sentiu subir a conhecida bola de fogo pela garganta, mas segurou a calma no nível mais crítico, luzes vermelhas, incandescentes, no painel, enquanto respondia à cliente as mesmas frases sem convicção, que preferia assim, que era livre, que tinha seu espaço, parará pororô. Nada em que ela própria houvesse acreditado por mais de uma semana.
Sexta cena – Sansão não batia cartão
Tanto lugar para arrumar emprego e ele tinha de vir parar com um patrão que detestava cabelo longo. Coisa mais antiga, essa implicância. E ele, que tentava adquirir algum charme com o penteado da moda. Mas o homem atrás da mesa foi taxativo: ou corta o cabelo ou não trabalha mais aqui. Com outro funcionário ele não falaria naquele tom, nem mesmo com o Seu Aquino, o varredor, o empregado mais humilde do escritório, mas com cabelo nas ventas o bastante para empertigar a vassoura e dizer, em alto e bom tom, certa vez, que o Doutor Bandeira estava esclerosado, pior que ele, Aquino, que tinha muito mais idade. Tudo por causa do sumiço de uns papéis e a cisma do patrão de que o varredor mexera na gaveta. No final das contas, Doutor Bandeira encontrou os benditos papéis, deu risada da pose ofendida do Seu Aquino, pediu desculpas e, pasmem, o varredor ainda teve aumento de salário. Mas com ele, Natanael, era diferente. O patrão sabia, desde o primeiro dia em que lhe pusera os olhos, que aquele não tinha sangue, que era um fraco, sem coragem de altear a voz ou pedir aumento. Dele podia exigir que cortasse o cabelo, que raspasse a cabeça, que desfilasse de baiana no escritório. Há, Há, ria o Bandeira a bandeiras despregadas.
Líquido e certo para Natanael era que a cultivada juba tinha de ser aparada naquele mesmo dia, pois aquele emprego de auxiliar de escritório, tão duramente garimpado pelo tio Olavo, não era a oitava maravilha do seu mundo, nem a décima oitava, mas era sustento, e ele não queria depender dos pais àquela altura da vida. O antigo e secreto sonho de ser repórter, é bom que se diga, estava indefinidamente adiado, com a timidez que o punha à distância de gente anônima, quanto mais de celebridades e câmeras.
E já que estava barrado na firma até que cortasse o cabelo, começou a procurar ali por perto um salão onde sacrificar as madeixas com alguma dignidade. Entrou em dois ou três que lhe prometiam insatisfação garantida sem dinheiro de volta, afastou-se o mais que pôde, e transpôs a fronteira entre os bairros em busca de algum estabelecimento decente.
Sétima cena – Dois preços, duas medidas
- Tchau, querida.
- Tchau, Odete. Procure não molhar o cabelo por umas duas horas, viu?
- Fique tranquila.
Olga respirou fundo, após a saída de Odete, para tentar se refazer do desgaste que a cliente antiga lhe causava. Consolava-a ter cobrado o dobro do preço. Mas Odete pagava pela alegria de humilhar a outra. Sabia do ágio todo o tempo em que afrontara a cabeleireira, mas fingia não saber. Havia um acordo tácito entre as duas. Uma pagava para ter a quem espezinhar. A outra, conformada, cobrava pela afronta. E, contando tudo, saíra bem barato para aquela faroleira, pensava Olga, entre as costumeiras lágrimas ocultas. Agora, com o salão vazio, ela aproveitava para sentar e descansar, mas levantou-se de um pulo ao ver, atravessando a rua, em direção à porta fumê do seu Salão Hollywood, o tal Rodrigo, o namorado da Odete, com a cabeleira longa e loura de astro. Olga voltou a sentar-se, subitamente casual, e estava lixando displicentemente as unhas quando Rodrigo, digo, Natanael, entrou, medindo o estabelecimento, um tanto sem jeito, e perguntou, sem ver a tabela na parede, nem lembrar-se de Olga no ônibus, pelo preço do corte masculino.
Oitava cena – Há mais coisas entre a cachorra e a minissaia...
- Você tinha que estar lá para ver a cara dela, Pinque. Pinque é a vira-lata peluda de estimação que Odete jura que é poodle. Presente da patroa, que precisava se livrar da cachorrada do filho de sete anos, depois do ultimato do síndico. Difícil foi para Odete trazê-lo no trem lotado. Ainda mais quando, na metade do caminho, a dádiva se soltou da corrente e deu duas dentadas no moleque do banco de trás, que a provocava desde que a viu. Um dia a gente também conta essa história.
- O nome saltou na hora: Rodrigo. Combina com o tipo de homem que ele é. Rodrigo de quê? Santana. Rodrigo Santana. Não, com dois enes fica melhor. Rodrigo Santanna. Nome chique, soa bonito. Aquela queimadora de cabelo quer me passar para trás, não é? Pior para ela. Contra esperteza, esperteza e meia.
Nesse momento, pela janela, uma adolescente de minissaia cruzava a rua numa diagonal ostensiva, e Odete gastou um pouco mais de tempo observando as pernas lisas e brilhantes da jovem, a silhueta ainda impávida diante dos anos, os seios determinados como numa figura de proa de navio antigo, como Odete já vira em comercial de xampu, numa das revistas do salão da Olga. Odete fechou a janela rapidamente, certa angústia súbita a percorreu, como a uma bruxa vaidosa que percebe a definitiva transformação em basilisco, e redescobre o desesperado anseio pelos ingredientes para o malefício que a conservará mulher por, pelo menos, mais um ano.
Nona cena – Manobras espe(ta)culares
- O seu cabelo fica bem melhor comprido, sabia? – Olga esticava-se em audácia, driblando a timidez e insinuando-se em olhares pelo espelho, que faziam Natanael corar, de dentro da própria concha. Ele até evitava olhar para o espelho porque depois de um tempo percebeu que Olga estaria lá, enorme diante dele, mais desejável e desejosa dele do que ele seria capaz de suportar, no miserável suporte de si mesmo. Não sabia que a cabeleireira desfiava-se de ansiedade a fim de seduzi-lo, desviando os olhos quando a tensão a queria engolir. Ele limitou-se a responder, num tom profissional, de locutor de comercial:
- O meu patrão não admite funcionário de cabelo comprido. Hoje só entro na firma se cortar o cabelo.
- Deve ser inveja, seu bobo. Aposto que ele é careca, não é?
Natanael riu, descarregando um pouco do nervosismo, voltando a encarar o espelho e comunicando-se nervosamente com os olhos dela. De repente, sem saber de onde vinha tanta coragem, demorou mais naquele olhar, expressando algo que podia ser um aviso, uma desculpa, um pedido de socorro, uma mensagem que Olga não pareceu compreender muito bem e interpretou como flerte, o retorno da paciente tentativa de travar com aquele estranho algo entre a vingança contra Odete e a libertação das unhas da solidão, travestida de independência. Ela não sabia, mas a língua corrosiva da mulher que tanto a fustigara seria o instrumento escolhido para manipular alguma alegria em sua direção. Sentindo que havia aberto a trilha na floresta, ela prosseguiu, pé ante pé, oferecendo segurança que ela própria não conhecia, mas da qual sabia, por instinto, que o homem do outro lado do espelho precisava para cumprir sua parte no pacto. E aliás, o patrão era careca, sim.
- Aceite um conselho, não corte muito curto. Seu patrão vai achar que você exagerou, de tanto medo dele. Corte só o bastante para continuar no emprego e continuar fazendo jus ao rosto. Também é bom fazer um tratamento, seu cabelo anda meio quebradiço nas pontas, tenho um gel que resolve esse problema. Mas você tem que aplicar toda semana, senão não adianta. Se não souber, venha aqui que eu aplico para você – e como se percebesse, subitamente, que estava indo rápido demais, acrescentou: - Tenho muitos clientes que precisam desse tratamento. Quase todo dia tem alguém aqui, fazendo.
- Não fica caro?
- Se você vier toda semana, existe um desconto, que o próprio fabricante banca. E tem outra coisa, Rodrigo. Cá pra nós, a Odete adora homem que se cuida, e vocês namorando, ela vai insistir para que você valorize o visual. Olga sabia que estava invadindo a vida alheia de um modo nunca antes tentado, mas precisava saber em que ponto o romance da maluca caminhava. Estava pensando no próximo passo que daria, quando o olhar normalmente distante do cliente somou-se a frases estranhas, eu não sei quem é Odete, meu nome é Natanael, eu não tenho namorada. Olga estranhou tudo aquilo, mas não deixou de notar alguma doçura no olhar de boi no pasto do rapaz.
- Ué, você não é o Rodrigo, o namorado da Odete?
- Nem conheço – entre risos, com medo de ofender.
- Mas eu vi vocês no ônibus ontem, vocês estavam conversando quando eu entrei. Ora, menino, a Odete, aquela com a malha vermelha, que corre de manhã.
- Eu me lembro agora, mas não sou namorado dela. Nem conheço, estava começando a conversar com ela, mas logo você entrou, vocês começaram a falar, eu saltei, fui trabalhar... e meu nome é Natanael, não Rodrigo.
Olga tomou todas as precauções para não gargalhar diante dele, e não deixá-lo saber dos blefes de Odete, do namoro “escrito nas estrelas”, porque agora parecia que ela própria era feita de vidro, que seu conteúdo estava exposto ao mais míope dos homens, e com uma precipitação meio represada até aquele momento, ela assumiu diante dele o compromisso de trazê-lo para si, para seu refúgio, e torná-lo forte e poderoso nos domínios que ela, pacientemente, construíra durante os minutos que sucederam à entrada do rapaz no Salão Hollywood.
- Até a semana que vem – ela disse, segura do assentimento dele.
- Até lá – ele disse, com insuspeitada segurança, que parecia ter emergido do outro lado daquele espelho, como uma árvore frondosa que brotasse subitamente de um solo milagroso.
Cena derradeira – Em que finalmente nem tudo se resolve
Odete estranhou nunca mais ter visto o namorado escrito nas estrelas. Talvez não trabalhasse mais por ali. Talvez não tivesse gostado dela. Quem sabe, se tivesse usado outra roupa, se não estivesse tão suada naquele primeiro dia, se isso, se aquilo...
O fato é que Natanael passara a ir mais cedo para o trabalho, para evitar o assédio de Odete, e aproveitava o tempo livre no escritório, já que chegava antes do horário, para ler um pouco. Acabara por pegar gosto pela leitura. Depois da vida do tal santo, a vizinha de Natanael dera-lhe Senhora, de José de Alencar, Werther, de Göethe, Romeu e Julieta. De uns tempos para cá, encurtara as saias, soltara o cabelo, vivia visitando a mãe do rapaz, mas só quando ele estava em casa.
O que Odete não suportava mais era ouvir Olga falando do seu caso, um tal de Natanael, com certeza um jeca dentuço e barrigudo, o tipo a combinar com a rival. Parece que iam se casar, e a curiosidade de Odete para conhecer o tal sujeito esbarrava sempre naquele sorrisinho insuportável da cabeleireira, toda vez que falava no assunto. Por fim, Odete deixou-se vencer pela felicidade da outra, movendo para outros lados a lente maldosa com que captava os movimentos alheios.
Mas quando recebeu o convite para o casório, arregalou os olhos e contou os dias, engasgando-se com o café. Na igreja, escancarou a boca e babou sem disfarce, ao ver a cara do noivo. Rodrigo, ela gritaria, se não perdesse a fala no auge do desvario, e sem remédio ela acabou se contendo, enquanto Olga desfilava em direção ao altar. Por fim, a expressão de Odete era tão desconsolada quanto a da vizinha de Natanael, aquela dos livros, que sem saber o que fazer do próximo volume comprado, deu-o ao casal, como presente de casamento. Uma coletânea de poemas eróticos. Eu, ein.
O califa vivia entediado. Ninguém conseguia alegrá-lo. Nem as odaliscas, com formas e danças; nem os magos, com sumiços e aparições; nem os circenses, engolindo fogos, espadas e um cachê milionário. Ninguém conseguia remover da autoridade aquela expressão desolada de quem já havia visto o melhor da vida.
Foi aí que chegou o mercador, farejando uma oportunidade de ouro para afastar o ventre da pindaíba, para usar uma expressão de lá. O mercador já era um antigo conhecido do califa, graças aos velhos chavões de vendedor, saídos de algum pergaminho de autoajuda da moda, e ao seu irremovível sorriso de plástica mal feita. Algumas intrigas palacianas dão conta de que o tédio do califa teve início com a primeira visita do tal mercador., ó grande rei.
O califa nem mesmo moveu as pupilas, acostumado aos últimos lançamentos aerotêxteis que lhe chegavam todas as semanas. Nem mesmo experimentava os tapetes que chegavam pelo correio. Ficava tudo com os serviçais do palácio. Só o vizir já tinha uma frota. Mas o outro não se deixou contaminar pelo enfado. Oportunidades assim são imperdíveis, dizia.
- Esta lâmpada mágica tem regulagem para dezoito tipos diferentes de gênio, scanner para setenta modulações de desejos e trava contra esfrega acidental.
O califa respirou fundo, olhou longamente para o distante teto do altíssimo palácio, tentando se lembrar de para onde havia mandado a última lâmpada que lhe venderam. O mascate, com a máscara sorridente soldada no rosto, insistiu:
O olhar do califa mudou e voltou-se, já com uma ideia sombria, na direção do mercador, que teve a revelação súbita do próprio desempenho, da disposição do cliente e do perigo da mercadoria, promovendo o simpático bota-fora dele mesmo. Correu tão desesperadamente pelo palácio, procurando a saída, que atropelou duas odaliscas e quase espetou firmemente uma espada do engolidor no traseiro de um mágico. Tão logo conseguiu parar de rir, o califa enviou mensageiros atrás do mascate, com um muito sério contrato para comediante, mas nunca mais o acharam, porque oportunidades assim são imperdíveis.
Seu dia estava chegando. Sua mãe sempre dizia. O dia em que não se pode estar triste. Criança que apanha no dia do aniversário não cresce. No bolo na mesa da sala cabiam cinco velas, seis, sete, depois tantas de se perder a conta. Depois de um tempo, ela profetizava, cheia de frases: aniversário não é para contar anos, é para ter festa. Menos frases depois que a mãe morreu.
Menos frases e amigos. Sozinha no barraco alugado. A dona tinha uns rompantes de vir cobrar o aluguel com um canivete no bolso. Sei lá, dizia a dona da casa, com essa gente meio lerda, todo cuidado é pouco. Sempre recebeu em dia até os centavos e o melhor sorriso meio desdentado que a moça aluada conseguia dar.
Memória de saltos. Em algum lugar do tempo de menina havia um latido, mas não se via cão. A mãe estendendo no varal a pele curtida do sol a sol de muitos dias. Terra ensolarada. Como não se lembrava do cão, ela resolveu que qualquer cão servia. A dona do barraco não quis conversa. Cão ali de jeito nenhum. Explicou sua saudade o melhor que pôde, apesar de sua dificuldade de lembrar as palavras. Afinal, para que havia tantas? A mulher já dava as costas. Nem gato? Nem. Papagaio pode? Silêncio da matrona, um pouco parecida com a mãe pelas costas, as espáduas grossas de pelejar com o varal e com o resto da vida. No mais, sozinha como ela própria. Filhos sumidos no mundo, esquecidos de como voltar. No outro dia a moça saiu para procurar o papagaio. Quem deve ter é o turco do fim do bairro, perto do ponto final do ônibus. Turco não, libanês, se chamar de turco ele não vende e pronto.
Seu Libanês...
Faruk, seu criado. Não faltava sorriso de vendedor, mas o nome é Faruk. Melhor não esquecer. Papagaio, seu Faruk, o senhor tem? Falando e contando, Faruk tem um, trinta reais, mas deixa por vinte e cinco para menina. Ela tinha, tomava conta do neném da dona Vera. Negócio fechado, e tome papagaio pela rua aprendendo a falar de tudo, só não nome feio, que é feio. A falar e a cantar, papagaio tem de saber cantar. Principalmente parabéns pra você.
Papagaio chega em casa – bem-vindo ao novo lar – com a cantoria ensaiada. Nesta data querida a dona do imóvel estaca de cara feia, na porta da sala. Pagamento atrasou, dona Eugênia? Dona Eugênia prefere lembrar que já botou papagaio pra fora com dono e tudo por causa de palavrão. Pode deixar, dona Eugênia, palavrão aqui só inconstitucionalissimamente. Uma lágrima besta de repente. A mãe ensinava a falar brincando.
Dona Eugênia recuou, sem uma palavra. Nem brincando nem séria. Olhos mortos olhando a menina. Silêncio deixava a moça confusa. Todo dia triste era silencioso. Toca a atiçar o papagaio para cantar. Depois de muitos minutos de ensaio, a ave aprendeu até a se aplaudir. Viva o louro, mexia a cabeça ao dizer, olhando em volta e sacudindo a cabeça, saudando o respeitável público.
Bem-vinda, noite. A noite é visita e fica feio deixar a visita esperando. Bolo na mesa e papagaio cantando parabéns pra você. A moça cantando junto, pra fazer coro. Viva ela. Não é que a canção foi ouvida pela dona Eugênia? Gente sozinha dorme tarde. Bateu na porta. Alguma coisa na mão. Ai, meu Deus, o canivete? Até que não. Isso é pra você, minha filha. Estendeu um embrulhinho. Dentro, um vestido. Os olhos vermelhos. Despediu-se. Até que o papagaio canta bem, ela disse.
Na rua ela ficou sendo a menina do papagaio. Via tevê com mamãe Eugênia quando voltava da escola. No fim do mês, ao chegar da escola, era ela quem ia cobrar o aluguel. Sem canivete, claro. Coisa mais feia...
- Maria, me dá uma bala de hortelã.
- Toma.
- Essa é legal, mais gostosa de chupar, mais fácil de roar.
- Roer, você quer dizer.
- Roar. Roer é pra quem tem boca pequena.
- Roar não existe.
- Existe, sim, Maria.
- Vou falar com a professora que você anda inventando de novo.
- É como se alimentam os gueldozes de Batafuthlam. Roam toda a comida.
- Quem é essa gente?
- Eles têm a boca tão grande e são tão gulosos que mordem e mastigam com a boca toda.
- Isso é roer, seu bobo.
- Roer é pra roedor, que rói só com aqueles dentinhos da frente. Os gueldozes roam com a boca toda. Abrem tanto a boca que já não é roer, é roar.
- E depois?
- Depois, o quê?
- Depois de comer, o que eles fazem?
- Depois eles sentem muito sono. Mas não podem dormir todos de uma vez.
- E por que não?
- Eles acreditam que se ninguém estiver de olho aberto, o mundo deles acaba. Agora mesmo, está quase no fim.
- Por quê? Dormiram todos?
- Não, a bala está acabando. E a professora está vindo para cá.
Cenário: Quarto às escuras. A única luz vem de fora, de um luar que se concentra na mesa sob a janela.
Cíntia: O que você tanto fica escrevendo aí de madrugada, Juvenal?
Juvenal: Não é nada, Cíntia. Pode ir dormir que eu já vou, minha flor.
Cíntia: Já vem nada. Toda noite é essa mesma coisa, você fica aí com essa janela aberta, em tempo de pegar um resfriado, e só vem dormir quando eu já estou dormindo. Afinal, o que você está escrevendo?
Juvenal: É um livro. Um romance.
Cíntia: Ah, e você agora é escritor?
Juvenal: É, tenho cá minhas ambições...
Cíntia se levanta bruscamente, e chega bem ligeira perto do Juvenal, antes que ele possa cobrir seus escritos.
Cíntia: Impropérios ao luar... Isso é o título?
Juvenal faz com a cabeça que sim
Cíntia: Que título estranho... o que é impropério?
Juvenal: é insulto, ultraje...
Cíntia: Xingando sob a lua? É isso? Como “Cantando na chuva”?
Juvenal: Não exatamente. O impropério quebrando o lirismo previsível do luar, entende? É como um contraste irônico, um deboche, uma desconstrução cômica dos estereótipos, o luar dos românticos e sonhadores ferido pela prosaica e chula torrente dos insultos.
Cíntia: Credo, Juvenal, que mau gosto. O que o luar te fez, afinal? (ela olha para a imensa lua nova em frente à janela). Você não lembra como era no começo? (fala toda melosa, e toca maciamente o braço de Juvenal). Você me levava para o terraço, ali mesmo a gente se beijava, se queria, se...
Juvenal: Lá vem você com essa pieguice de mulher. Você não sabe como me cansa esse clichê batido de lua pra cá, coração pra lá, e amor da minha vida, e eu nasci pra ser sua... o tempo passou, o que ficou foram as contas pra pagar todo mês, um tanque cheio de roupas para lavar, um carro cheio de marcas femininas.
Cíntia: Alto lá, seu Juvenal. Primeiro, contas a pagar de que o senhor não dá conta. Aliás, não dá conta de mais coisas, desde quando começou esse livreco. Segundo, roupas minhas e suas, que eu lavo toda noite, além de ralar naquele balcão de loja oito, dez horas por dia. E terceiro, é só você ir buscar o Tiago na escola que eu não saio com o carro, porque o bonzão aqui não bate nunca.
Juvenal: Aí, tá vendo como é só jogar um pouco de realidade que a fala engrossa?
Cíntia: Besteira das besteiras, Juvenal. Você queria era alguém pra servir de desculpa. Casando, logo tinha pretexto pra se livrar da sua família. Daquele seu pai pinguço, da sua mãe aluada...
Juvenal: Não me tira do sério, Cíntia. Não bota a minha família no meio. Eu, pelo menos, tive uma. Não fui um rejeitado, não dependi de orfanato.
Cíntia: Seu cachorro, você prometeu que nunca ia me jogar isso na cara.
Juvenal: Então não te mete comigo. Eu tava no meu canto, escrevendo meu livro.
Cíntia: Prêmio Nobel da Mediocridade, você só escreve porcaria, livrinho mixo que ninguém lê. Impropérios ao luar. Coisa mais sem pé nem cabeça. Você tem que escrever sobre xingamento, mesmo, tem mais a ver com você, seu grosso.
Juvenal: Melhor que ser a última da turma. Melhor que tentar seis vezes uma carteira de motorista. E assim mesmo...
Cíntia: Canalha. Eu vou embora daqui. Vou te deixar com seus livrinhos fuleiros. Vamos sumir daqui, eu e o Tiago.
Juvenal: O Tiago? Você não é louca de tentar me tirar o meu filho.
Uma voz: Vocês me chamaram?
Cíntia: Tiago! Você está acordado desde quando?
Tiago: Perdi o sono pensando na Vandinha...
Juvenal: Tá muito novo pra namorar, rapaz.
Tiago: Aí eu abri a janela e fiquei olhando a lua e pensando na Vandinha...
Juvenal: E aí deu uma saudade...
Cíntia: E uma vontade de telefonar...
Juvenal: E um medo de não ver nunca mais...
Cíntia: E um medo de ele não gostar mais da gente...
Agora os três estão olhando pela janela, a lua se ergue linda, enorme, brilhante.
Juvenal: Vai dormir, Tiago.
Cíntia: É, vai dormir, menino, que amanhã você tem aula.
Tiago: Mas eu estudo de tarde.
Cíntia e Juvenal: Vai, Tiago (entreolhando-se demoradamente)
Tiago sai suspirando numa direção. Cíntia e Juvenal saem abraçados em outra. A janela continua aberta, um vento entra por ela. Várias folhas em branco ocultam as anotações de Impropérios ao luar.
Conheci o professor Eleutério por não vê-lo passar. Eu olhava para trás, para as formas bem-sucedidas de uma transeunte. Ele lia absortamente um livro de terras distantes. Ambos distraídos, a trombada foi inevitável. O livro, muito antigo, caiu no chão, abrindo folhas na calçada. Uma delas, particularmente, chamou minha atenção pelo desenho que continha, a figura de dois ômegas cruzados.
A curiosidade quanto à estranha figura, mais do que o desejo de ajudar, levou-me a apanhar do chão os papéis caídos, e chegando mais perto pude ver, além da identificação do proprietário na primeira folha do livro, várias folhas em que se depositavam caracteres desconhecidos.
- O amigo é cientista? – de acordo com a dúvida perguntei, enquanto levantava do cimento as garatujas do homem.
- Estudo, disse ele, certa disciplina que a ciência míope relegou ao plano da invencionice, mas que se revela um autêntico método de conhecimento, que procuro difundir e popularizar.
Mantive a palavra em recesso, silêncio é melhor para lidar com o desconhecido. O homem estava prestes a anunciar seu mister.
- Trata-se de nada menos que a determinação exata – exata, não aproximada – do centro de gravidade da vida.
- E o que vem a ser isso?
- Certamente você já ouviu falar do centro de gravidade dos corpos, certo?
- Sim, em Física, na escola, aprendi algo a respeito, e até mesmo consegui calculá-lo em algumas figuras mais simples...
- Mesmo o cálculo em sólidos complexos não apresenta a complexidade do cálculo do CG vital. Os corpos são predominantemente espaciais, ao contrário da vida, que é predominantemente temporal. Mas o tempo é substância, e como tal também tem seu centro de gravidade, só que simbólico em relação ao espacial.
- E para que serve esse cálculo?
- Equilíbrio, meu amigo – disse o professor em tom professoral. As pessoas gastam fortunas em sessões de terapia, ocultistas de toda espécie, métodos os mais diversos de meditação, religiões cada vez mais incomuns, quando o que elas buscam depende apenas de um dado, a determinação de seu centro vital de gravidade, o ponto de onde pendem suas vidas. Uma vida é um todo temporal, que não pode ser visto pelo próprio vivente, por estar este no meio daquela. E se não pode vê-la, não pode controlá-la, delimitá-la qualitativamente. Pode aniquilá-la antes do momento, o que é um desperdício e um roubo, ou tentar melhorá-la, o que é muito difícil, sem o alcance geral. O sujeito pode desgraçar sua vida, tentando mudá-la para melhor. Mas se conhecer o centro, pode antecipar satisfações, adiar infortúnios, pode mesmo prolongar a própria existência.
- O que seria exatamente esse centro? – perguntei, tentando ganhar tempo, enquanto bolava uma maneira educada de sair daquela autêntica roubada, estando a cada frase mais clara para mim a insanidade do tal estudioso.
- Todos querem ser cientistas, médicos, engenheiros, advogados, celebridades, mas o que realmente realiza o indivíduo é a execução de um exato projeto, que pode ser a limpeza de uma rua ou a descoberta de um novo vírus. Já reparou que existem indivíduos felizes, apesar de sua pouca ou nenhuma importância social? Outros, no entanto, são padeiros, e querem ser historiadores. Riquíssimos atletas viciados em drogas, modelos lindas e sozinhas, intelectuais sem expressão, tudo por não conhecerem aquilo para que foram chamados ao espetáculo da vida.
- Então é só isso, um jogo de adivinhação? Puxa, você pelo menos poderia ter sido mais original. Até as baratas tentam adivinhar o futuro, hoje em dia. – O fato é que eu já não conseguia mais falar seriamente com o sujeito.
- Barata, aí está - matar uma barata talvez seja o único ato que falte para que a sua vida ou a minha termine. Matar uma exata barata para que ela não suba no microfone em que falará certa autoridade que salvará a raça humana da extinção. Depois desse ato a vida pode terminar abruptamente ou daí a dez, vinte anos, mas desde então é desequilibrada e desnecessária. Muitas pessoas sofrem porque procuram prolongar a vida a partir desse ponto. Sofrem à toa quando a simples revelação de que viveram seu apogeu pode tranqüilizar sua consciência, fazendo com que encontrem repouso na aniquilação voluntária. Como pode ver, meu amigo, trata-se tanto do passado quanto do futuro.
- A essa altura dei-me conta de meu filete de baba escorrendo, sem cerimônia, pelo canto da boca. O sujeito preconizava, com ares de catedrático, o suicídio de quem achar que já deu o que tinha que dar. Minha vontade de rir cessou, quando eu subitamente pressenti o pior.
- Você oferece consultas, não é? Quero dizer, você precisa atender a pessoas, no intuito de divulgar sua...hã... teoria...
- Claro que sim, e não cobramos consultas, sabe? Se você estiver interessado, eu mesmo posso...
- Cobramos. Quantos vocês são ao todo?
- Ao redor do mundo, creio que... uns sete ou oito mil.
- Oito mil conselheiros da morte, oito mil sujeitos que, dependendo do tal centro de gravidade, convencem pessoas deprimidas de que chegou a hora delas.
- É preciso parar de sofrer, quando chega a hora – Ele tinha um sorriso benevolente nos lábios. Pior que os argumentos ainda era a expressão de satisfação garantida no rosto do infeliz.
- E se o sofredor preferir continuar no vale de lágrimas? – Perguntei, encarando-o nos olhos.
- Cabe a nós tomar a decisão por ele. Afinal, na natureza, nada se perde. Somos os guardiões dessa ordem. Seres com centros de gravidade vencidos são como células mortas na pele. Sua função é apenas envelhecê-la. É preciso sanear a terra dos dados inúteis. E a pessoa não precisa nem mesmo nos consultar. Um certo número de informações permite calcular o centro de gravidade de sua vida, a distância. Você, por exemplo, pode já ter tido seu cálculo elaborado por um dos nossos técnicos. E já que, segundo noto, você resiste tanto à idéia da auto-subtração, precisa ou precisará, como muitos, de impulso auxiliar.
- Você está inteiramente... – Nem consegui expressar o óbvio.
- Convicto? Sim, estou.
- Agora entendo...
- Entende o quê? – Eleutério parecia esperar outra pergunta técnica, sempre com seu sorriso professoral e generoso.
- Entendo o que aquele cara faz lá em cima daquele prédio. Ele tem uma arma e mira sua cabeça.
- O que você está dizendo? Não há ninguém lá em cima – o professor olhou, intrigado, ainda sem entender.
- Parece que já calcularam seu centro de gravidade, meu amigo. Parece que ele já passou.
- Vo-você está brincando, não está? – quero, quero dizer, se for mesmo o momento, não vejo problema algum, mas... é que... ainda tenho tantas palestras a dar... tantos livros a escrever... um tema fascinante – e ele viu, e eu vi os seus olhos quando viu. E seu sorriso foi varrido de vez como desenhos de giz na enxurrada.
- Meu Deus! É verdade, é verdade, está lá, vai me matar – Eleutério gritava, desviava-se dos futuros tiros, começou a correr, empurrou uma dona-de-casa, desviou para o lado um carrinho de bebê. Correu para a rua, fui atrás dele, gritei que era brincadeira minha, que ninguém estava no alto do prédio, ninguém atiraria nele, que ele via coisas e inventava teorias porque tinha medo da morte como tanta gente tinha, mas ele não me ouvia por causa do pânico e das buzinas.
- Afaste-se de mim! Foi você, foi você que planejou! – a histeria alçou vôo por cima do saber, o livro havia ficado pelo caminho, pisoteado ou trilhado por rodas de carros. Súbito, a freada seguida do baque, ele se estatelou no chão. Jazia aos pés do caminhão, muito sangue e já nenhum movimento. Estava morto. O motorista desceu do caminhão, conferiu o resultado, a perícia dos guardas de trânsito o inocentou, e foi somente quando voltou à cabine que eu notei na porta o mesmo desenho que vira no caderno de Eleutério, os mesmos ômegas cruzados. De volta à cabine, o motorista retomou a direção, olhou fixamente à frente com olhos que eu, de repente, tive medo de olhar.