Vida bocejada, a de Vitória?

Luiz Guilherme Santos Neves

Escreveu o poeta no Livro do desassossego: “Acordei hoje muito cedo, num repente embrulhado, e ergui-me logo da cama sob o estrangulamento de um tédio incompreensível. Nenhum sonho o havia causado; nenhuma realidade o poderia ter feito. Era um tédio absoluto e completo, mas fundado em qualquer coisa.”

Esse tédio absoluto, fundado em qualquer coisa, o que equivale a dizer, afundado em coisa nenhuma, um vazio d’alma sufocante e indefinível que acometeu Fernando Pessoa, “uma náusea física da vida inteira” que nasceu com o despertar matinal do poeta, não é o mesmo tipo de tédio a que se referiram José Carlos Oliveira e Luiz Edmundo Appel em relação à cidade de Vitória, entre 1950 e 1952.

O tédio que os acometeu não tinha raízes no enfado de viver, mas sim na falta do que fazer como se essa carência proviesse da alma da cidade de Vitória.

Mas antes de irmos adiante cabe, primeiramente, registrar que as observações de Luiz Edmundo dizem respeito ao ano de 1950, e as de José Carlos Oliveira, ao período entre 1951 e 1952, o que as tornam contemporâneas entre si. Em segundo lugar, importa assinalar que o meu propósito neste texto é o de confrontar as observações dos dois informantes na tentativa de verificar a procedência ou não, àquela época, de uma conjuntura de vida tediosa em Vitória. No caso de José Carlos, baseado em crônicas que foram reunidas no livro O rebelde precoce (1); e no de Luiz Edmundo Appel, com apoio no diário que ele escreveu quando, vindo de Porto Alegre, realizou trabalhos de levantamentos geológicos no Espírito Santo. (2) 

José Carlos tinha então 17 para 18 anos e se iniciava precocemente na vida jornalística (não foi à toa que ganhou em Vitória o apelido de Precoce), e Appel era engenheiro com 26 anos de idade. 

De José Carlos temos a palavra de um capixaba nascido em Vitória, que aqui se fez cronista e, cronista se fazendo, versou sua cidade natal com amor e ironia, em muitas crônicas publicadas principalmente no jornal A Tribuna. Seu testemunho tem a força de um depoimento de quem era filho da terra. 

De Luiz Edmundo Appel, recolhe-se a impressão de quem veio ao Espírito Santo a trabalho e a trabalho percorreu diversas cidades do Estado solavancando por estradas muitas vezes quase intransitáveis num jeep modelo Segunda Guerra Mundial.  E não foram poucas vezes em que o jeep truculento teve de ser submetido a reparos mecânicos que implicaram interrupção nos levantamentos geológicos que Appel fazia com a colaboração dos seus assistentes técnicos.

Foi devido a uma dessas paradas forçadas que Luiz Edmundo permaneceu em Vitória durante vários dias no mês de junho de 1950, hospedado no Hotel Tabajara. Uma permanência da qual resultaram as observações sobre Vitória, no Diário que escreveu acerca de sua passagem pelo Espírito Santo.

E em que pontos os olhares de Carlinhos Oliveira e de Luiz Edmundo coincidiram em relação à cidade que ambos consideraram tediosa?

Faça-se a comparação.

Escreveu Appel, em 10/6/50, um sábado: “À tarde descansei para variar, lendo um pouco também. Passou-se, monótono e triste, mais este dia. À noite andei pelo centro da cidade, fui até o clube Almirante Saldanha da Gama onde assisti a um fraquíssimo show. Voltei às tantas da madrugada (1h30’) de domingo.”

Com a observação que fez, Appel antecipou-se, em estilo brando, ao que José Carlos Oliveira veio a escrever incisivamente na crônica “Cidade chata”: “Vitória é uma cidade sem novidades. Os bondes daqui nunca saem da linha, os desiludidos do amor nunca se suicidam, não desabam tempestades ou pragas sobre os homens e as coisas, nada acontece que seja digno de nota. (...) tudo é calmo, melancolicamente calmo, enervantemente calmo. (...) Eta cidade chata!” P. 126.

Em outro registro, feito no domingo, 11/6/50, informou Appel: “Às 9 levantei-me. Fui ao culto da 1ª Igreja Batista e  comunguei. Voltei ao hotel para o almoço. Depois, uma bela sesta... Li um pouco. Passou-se a tarde, uma notável tarde de outono, perdida... Após a janta, para variar de programa, fui até a praça Costa Pereira.”

Ou seja: do Hotel Tabajara, em curta caminhada pela avenida Jeronimo Monteiro, Appel chegou ao então coração de Vitória do qual escreveu Carlinhos Oliveira, na crônica “Nossos bairros” (p.165): “As mulheres que passam, os estudantes que passam, as comerciárias que passam, os malandros que passam, todos que passam têm um fim: a praça. A Praça da Independência, que não é da Independência, é Costa Pereira... Vitória não passa dessa praça. O resto é subúrbio.”

Teria Appel concordado com o deboche de José Carlos se dele tivesse tomado conhecimento?

O certo é que foi nos domingos e feriados que Luiz Edmundo mais sofridamente se sentiu encalhado na calmaria do nada a fazer em Vitória. Leia-se a propósito: “18/6/50 (domingo) Triste domingo cinzento. Chuva contínua alagou as ruas de Vitória, hoje. De manhã, assisti ao culto na 1º Igreja Batista. À tarde, fiquei no hotel, observando a... chuva. À noite, pensava em dormir cedo. Fui convidado a ver Casbah no cine Carlos Gomes. E terminei indo mesmo.”

O “terminei indo mesmo” com que Appel ponto-finaliza a anotação tem a vibração de um suspiro de alívio de quem achou o que fazer antes de monotonamente cair na cama.

Da segunda-feira que se seguiu ao domingo de Casbah, o dia de Appel foi um pouco mais variado: “Hoje, feriado estadual capixaba (dia de Domingos Martins). Passeei pela praia do Canto, de manhã. À tarde assisti à matinê no cine Trianon, em Jucutuquara. Após a janta, à noite, caminhei mais um pouco, bebi o clássico guaraná e...toca a dormir.” 

E que nos diz Precoce de um domingo em Vitória?: “Tarde ensolarada de domingo. Pessoas vindo da matinê, pessoas indo para a Exposição [agropecuária que se realizava em Itacibá], pessoas indo não sei para onde. Vitrinas abertas e comércio fechado. (...) Eis um domingo como qualquer outro: pela manhã, missa e praia; galinha e macarrão no almoço, provavelmente cerveja; à tarde, matinê, rádio e futebol: à noite, passeios na praça.” Mais adiante, prossegue o cronista: “Eis um domingo comum numa farmácia comum: crianças com coqueluche, homens gripados, cronistas desocupados comprando escova de dente. Eis um domingo comum, numa cidade comum, numa farmácia comum. Eis um domingo comum”. (Crônica “Aconteceu no domingo”, 23/9/51)

Quase um ano antes, em 19/6/50, uma segunda-feira, Luiz Edmundo já havia escrito: “Em Vitória, sem programa ainda. De manhã, fiz compras (...) À tarde, permaneci no hotel. Descansei e...descansei. À noite, sempre no hotel, em ‘minha’ cadeira, na calçada. Antes de deitar, um guaraná no Sagres.”

Cabe ou não cabe aqui, corroborando o sentimento de vazio do engenheiro gaúcho, a tirada ferina de Zé Carlos Oliveira: “Vida bocejada, essa de Vitória!” (Crônica “Cidade chata”).

E deve ter sido entre um bocejo e outro que Appel escreveu na segunda-feira, 26/6/50: “De manhã, terminei o meu trabalho de cálculo. Fiz algumas compras também. À tarde, caminhei um pouco pensando me despedir de Vitória (pois pensamos partir amanhã para não voltarmos jamais, provavelmente). À noite, descansar para dormir. Num impulso, fui ao Carlos Gomes, ver um filme de bichos...”

Reconheça-se que ver um filme de bichos era preencher a falta do que fazer às vésperas de deixar Vitória com a esperança de não voltar jamais!

Chamo agora a atenção para um fato intrigante: das observações feitas por Appel, a que ele não fez sobre o Parque Moscoso sempre me chamou a atenção. Até porque é absolutamente inexplicável que se Appel tivesse pisado no Parque, meticuloso como ele era, não deixaria de registrar em seu diário. E note-se que Appel foi duas vezes à Primeira Igreja Batista que ficava então na esquina da Rua General Osório com a Rua Cleto Nunes, quase na barra da saia do Parque Moscoso. No mínimo, deve ter avistado o Parque ao entrar na igreja ou ao sair dela – e eis a minha estranheza –, nem assim se sentiu impelido a conhecê-lo?   

Duvido, porém que Appel tivesse cometido tão grave e imperdoável descaso. Porque, se efetivamente não deu uma beliscada visual no Parque deixou escapar a oportunidade excepcional de visitar a Ilha dos Amores com suas colunas gregas e pontes imitando troncos de árvores cruzando sobre as águas verdejantes do lago que cerca a ilha; ou de contemplar, embevecido, os sapinhos de cimento armado que, dentro do lago, sopravam água para o ar; ou de ser fotografado por um dos lambe-lambes com suas antigas máquinas caixotes montadas em tripés; ou de visitar o Orchidário com arquibancadas de madeira sobrecarregadas de plantas e de orquídeas; ou de fotografar o coretinho fotogênico de gradeado lateral caprichosamente trabalhado; ou de admirar o  chafariz do Parque, com seu parisiense estilo belle époque; ou ainda – Deus meu, quanta beleza disponível aos olhos e ao coração! – de se assentar em um dos bancos de concreto sem encosto para, do mesmo modo como se punha à vontade em “sua” cadeira na calçada do Hotel Tabajara, apreciar, com o voyeurismo cândido dos românticos, a alegria da criançada dando pãozinho aos peixes no lago do Parque; ou...

Por todos esses ous e de tantos outros que não entraram neste texto, por certo eu não incorro em erro ao afirmar que, se Luiz Edmundo Appel tivesse ido ao Parque Moscoso, teria desfrutado do prazer bonançoso de conhecer um dos mais inesquecíveis e icônicos recantos de Vitória, descabidamente afrontado pela qualificação de subúrbio, no dizer de José Carlos Oliveira. Porque uma cidade que tem o Parque Moscoso não pode ser considerada a urbe do bocejo. Nunca, jamais!

Ou será que alguém discorda do meu entendimento? Ou vão querer chamá-lo de ponto de vista bairrista, fantasioso e risível?  Ou vão criar memes à minha custa para virilizar pela internet?

Não, não creio que isso venha a acontecer.

Portanto, junte-se a mim e ergamos um hip hurra alto e sonoro ao Parque Moscoso de Vitória.

Adendo

Conheci José Carlos Oliveira, de vista, em sua fase de iniciação como cronista nos jornais de Vitória. Não tive o mesmo prazer de conhecer Luiz Edmundo Appel. Mas, décadas depois, conheci seu filho, Luiz Carlos Seara Appel, ou simplesmente Caco Appel, como ele preferia ser chamado e que veio morar em Vitória. Juntos - e ao lado de vários outros companheiros - nos encontrávamos religiosamente aos sábados na Livraria Logos, no Shopping de Jardim da Penha. Dessa convivência semanal, a que Renato Pacheco denominou “Sabalogos”, nasceu a amizade de mão dupla entre mim e Caco. Os Sabalogos acabaram deixando um grande vazio entre os que davam presença e voz à essência semanal desses encontros. Recentemente, em 13 de junho de 2023, foi a voz de Caco, escritor e crítico literário de agudo descortino, que se calou criando um vácuo profundo entre os seus amigos, muito embora fixando entre todos nós a memória da sua presença inesquecível. Na epígrafe que escreveu para o livro de seu pai, 1950, Diário de um engenheiro no Espírito Santo, que eu tive o privilégio de prefaciar, Caco fez uma citação de Goethe. Pois a ela recorro para sussurrar em voz de prece: “Vá até onde puder ver; e quando lá chegar poderá ver ainda mais longe”, meu amigo Caco Appel.   

Referências      

(1) OLIVEIRA, José Carlos. O rebelde precoce. Gráfica Espírito Santo: Vitória , 2003.

(2) APPEL, Luiz Edmundo. 1950, Diário de um engenheiro no Espírito Santo, IHGES, Vitória, 2016.

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