“E, portanto, senhor, do que hei de falar começo e digo” – invoco Pero Vaz de Caminha na carta que escreveu ao rei de Portugal narrando o Descobrimento do Brasil.
Mas não será esta uma narrativa com revelações inéditas, apesar de, ao contrário da missiva do escrivão da frota de Cabral, tratar-se aqui de um punhado de informações que nunca é demais repetir. Até porque implica falar de realezas, como deixa explícito o título que encabeça o texto e conforme se lerá no que se segue.
Aconchegada entre montanhas no sul do Estado do Espírito Santo situa-se Muqui que, antes de ser cidade, era Arraial dos Lagartos. Pelo nome que tinha ainda não chegara ao tempo do esplendor das realezas. Foi com o advento da cultura cafeeira, a partir do século XIX, espalhando-se em torno do antigo arraial, que o lugar passou a ser Muqui, adquirindo grandeza econômica, sem perder, todavia, as características de cidade pequena, que conserva até hoje. Aliás, Muqui transformou-se num dos mais importantes sítios históricos do nosso Estado, devido principalmente ao majestoso casario ali erguido em estilo eclético, graças às grossas e boas águas da prosperidade cafeeira.
Não bastasse essa riqueza patrimonial e histórica que vem sendo preservada com orgulho e desvelo pela gente local, Muqui se fez também centro tradicional dos encontros nacionais de folias de reis que anualmente se realizam na cidade.
Portanto, do que hei de falar, já estou falando: somando-se o casario histórico com os encontros das tradicionais folias de reis num só patrimônio cultural, Muqui se fez terra de dignidade real, categorização invejável que nenhuma outra cidade detém no Estado do Espírito Santo.
Foi em louvor e homenagem a essa condição especialíssima que Humberto Capai, muquiense da gema e mestre de mão cheia da fotografia plástica, organizou e deu à publicação o livro Muqui Terra de Reis, recheado com imagens de sua lavra que são loas multicoloridas que se derramam luminosamente por 250 páginas, da capa à contracapa da obra.
No texto de apresentação, ressalta o autor, referindo-se à gente do povo que, com empolgação, dá corpo e beleza às folias de reis: “Muqui Terra de Reis é uma reverência a esses reis e rainhas destituídos dos poderes econômicos e políticos da realeza, mas constituídos de respeito e autoridade pelo que produzem e estruturam em sua cidade. São, pois, merecedores da classificação popular dada aos reis e rainhas, ao mesmo tempo em que proclamam, por sua atividade coletiva e solidária, um autêntico “abaixo à monarquia”, recusando um regime em que um soberano ordena e os súditos executam.”
Dentro da mesma toada, tive eu o privilégio de ver incluído nessa obra um texto de minha autoria do qual, para fazer companhia a Capai, valho-me de alguns trechos com o indicativo das aspas para assinalar a sua procedência.
“No folguedo das Folias de Reis, que veio de Portugal para o Brasil, três realezas se associam: a do menino-Rei, que nasceu em Belém da Judeia; a dos Magos, a que o povo concedeu envergadura real; e a realeza da gente do povo que forma as folias para homenagear os três Magos visitadores e, por extensão, o Menino visitado. E quando as folias se reúnem num espetacular encontro de cores e sons, o local que as acolhe adquire a simbologia de uma grande manjedoura, revestindo-se também de realeza para se tornar terra de reis.
Vale recordar que a Folia de Reis é um cortejo devocional de caminhantes. Representa a visitação dos Reis Magos ao menino Jesus, no presépio em que nasceu. Compõe-se geralmente de doze foliões (remissão aos apóstolos), incluindo o mestre da folia, os tocadores, o porta-estandarte (alferes) e os palhaços. Estes, com suas máscaras demonizadas em figuras aterrorizantes, simbolizam os soldados do rei Herodes. Mas sua função é animar a folia com eletrizantes danças sapateadas e intervenções versificadas.
Os palhaços carregam na mão um cajado, emblema universal dos andarilhos, passível de múltiplas significações tais como bastão de apoio, arma defensiva e insígnia de autoridade, a que não falta sequer certa conotação de cetro real.
O mestre da folia comanda o grupo com seu apito e reconhecida liderança. Os músicos tocam bumbo, tarol, surdo, pandeiro, triângulo, viola, sanfona, entoando cantorias (toadas) inspiradas nos textos do Novo Testamento.
Destaca-se, no conjunto das vozes, a que se denomina “riquita” – o agudo das cantigas –, uma provável herança, já identificada por alguns estudiosos, dos castrati presentes nos corais eclesiásticos da Europa, que se transferiu ao Brasil via Portugal.
Os foliões vestem uniformes e usam fitas coloridas e chapéus enfeitados. A insígnia do grupo é a Bandeira dos Santos Reis, estandarte que se sobrepõe aos foliões.
A caminhada das folias, durante o ciclo natalino simulando a busca do Menino Jesus, é jornada que se dá de casa em casa, onde os brincantes são recebidos e agraciados com donativos e alimentos. Às casas onde têm acesso, as folias não levam o incenso, o ouro e a mirra, a exemplo dos Magos na sua ida a Belém. Mas levam fé, devoção e honraria.”
Em Muqui, muitas dessas casas, térreas ou assobradadas, que por sinal são dezenas, são tão imponentes que, uma vez vistas, gravam-se com força indelével na memoria de quem visita a cidade. É depois de desfilarem com pompa e circunstância diante desse nobre casario que os participantes das folias concentram-se no interior da igreja matriz consagrada a São João Batista. Vão entrando uma após outra, apinhando-se lá dentro ao som emocionante do Cálix Bento.
Na igreja, porém, não entram os palhaços por ser recinto sagrado que lhes é vedado como figuras associadas ao anticristo, não obstante serem, como já ressaltamos e não sobeja enaltecê-los, os destaques das folias, com suas máscaras assustadoras, seus vibrantes sapateios e falas provocantes ou exortativas.
Um exemplo dessas falas é a que pode ser ouvida na Internet, aos 9,44 minutos na projeção do vídeo Encontro Nacional de Folia de Reis – Muqui,ES – Brasil, também da autoria de Humberto Capai e do qual foram extraídas as fotos que ilustram este texto. O declamativo, correntio e entusiasmado, apregoa o seguinte:
Sei que somente Deus
Me acompanha a vida inteira,
Me ajuda a manter viva
A cultura brasileira.
Eu venho trazer alegria
A essa gente guerreira.
Me orgulho em ser palhaço
Continua a brincadeira...
Sim, que continue a brincadeira per saecula saeculorum é o voto que lhe faço.
E antes que encerre o que me propus falar, como falado fica, informo, para quem interessar, que o autor do vídeo pode ser flagrado numa rápida aparição à Hitchcock na altura do minuto 5,06 do filme, na cena que focaliza a entrada dos foliões na igreja matriz de Muqui. A ele, muquiense ilustre, não se impediu, porém, o ingresso no recinto “onde mora o Cálix Bento e a Hóstia Consagrada”.