Um pedaço de história

Fernando Achiamé

A torta capixaba é capixaba. Da gema. Pois nasceu em Vitória. Aos poucos, com timidez, se expandiu para outros locais do Espírito Santo, principalmente os situados em seu litoral. Porém avançou a contragosto. Já o nome capixaba se espalhou por todo o estado e até mesmo para além de suas divisas; em Rondônia, por exemplo. Nosso prato não. É até ignorado no interior. Em Colatina faz-se mais torta de bacalhau, me conta um amigo. E outro garante: os nascidos na região do Caparaó somente conhecem essa especialidade vitoriense depois que saem de lá.

Séculos atrás, a vida na ilha era bem diferente da atual. Os sinos dos templos comandavam o dia a dia dos seus habitantes, do despertar ao descanso. A Igreja Católica monopolizava a fé, o desejo de transcendência que desde sempre distinguiu os humanos. O que fazer? Nos períodos colonial e provincial, todos estavam submetidos, de forma direta e autoritária, aos poderes da terra e do céu. Em seu presente terrestre, nossos antepassados não passavam de súditos que deviam obediência ao rei e às suas leis, muitas delas desumanas. E por quererem um futuro celeste, se constituíam em fiéis seguidores das severas leis divinas. E sujeitados a regras rigorosas – homens e mulheres, ricos e pobres, livres e escravos, todos enfim.

E o que determinavam os preceitos católicos para a vida das pessoas? Tudo, ou quase tudo. Na Quaresma, por exemplo, todos deviam se abster de carne vermelha, em especial às sextas-feiras e, mais em especial ainda, nos dias da Semana Santa. Contudo, os ilhéus (que já não comiam carne com muita regularidade) desfrutavam de um privilégio – morar num arquipélago cercado de peixes e mariscos por tudo que é lado. As águas salgadas e salobras lhes ofereciam alimento em abundância. E as mariscadas comiam soltas, ou melhor, eram comidas a torto e a direito. E a torto e a direito se consumiam peixadas, chamadas de moquecas bem depois. Muitos sabores marcaram encontros dentro dos pratos dos vitorienses. O peixe moqueado indígena, bem seco, consumido após ser hidratado e cozido com bastante cebola e tomate, a que se acrescentavam o urucum, sal, coentro e limão – a possível origem da moqueca capixaba. O peixe salgado ao gosto português – bacalhau de carregação ou garoupa daqui mesmo. O peixe fresco, comido frito ou ensopado. O peixe assado à maneira do reino. E os pirões, as abóboras, as bananas-da-terra e d’além-mar, as pimentas nativas, os cozidos e temperos africanos.

Certo que existiam épocas de escassez. Se as secas se prolongassem, se o mar não estivesse pra peixe havia fome, muita fome. De qualquer sorte, o que os vitorienses tinham ao seu alcance para se alimentarem no decorrer do ano e, sobretudo, naqueles 40 dias de privações? Os caranguejos, bem mais numerosos que os moradores da ilha. E que nos finais de verão, começos de outono se ofereciam – bastava ir aos mangues catá-los. E eram melhores nos meses com a letra erre no nome, o que excluía os friorentos – maio, junho, julho, agosto. E os diversos pescados, as ostras, siris, mexilhões, sururus – todos fartos e limpos. Frutas e verduras variadas, feijões, farinhas. Nas matas cerradas dos arredores, palmeiras tinham corações doces ou amargos – os palmitos. Que os franceses, pour cause, chamam coeur de palmier. A cada um o seu coração – a cada palmeira o seu único palmito.

No tempo quaresmal, a carne era proibida; as penitências, recomendadas. Mas se houvesse fartura, as tentações aumentavam. Podia-se comer muito e muito bem. Pobres e ricos, sobretudo estes. Para cumprir as normas prescritas, preparava-se uma peixada hoje, uma bacalhoada amanhã, depois moquecas de camarão, ensopados de mariscos com chuchu... Que em certos dias sobravam. Sem geladeiras e freezers, o jeito era cozinhar e recozinhar os alimentos para não perdê-los. E como destinar essas sobras? Empregá-las em outras misturas comestíveis. A torta capixaba é um aproveitamento, um arranjo diferente de sobejos. Receita: após dias e dias de comilanças, pegar os restos dos pratos à base de pescados e transformá-los em outra iguaria, que possui maior durabilidade e, portanto, pode ser preparada de véspera. Tudo indica que essa invenção culinária se deveu a mãos pobres, acostumadas a superar carências da vida. Mulheres escravas e libertas tinham tudo à mão para conceber a torta – panelas de barro feitas por elas mesmas, sobras das cozinhas fartas, palmitos colhidos nas matas, alguns ovos. Pouco a pouco a comida de pobre se sofisticou e – com o concurso de bons bacalhaus, bons azeites e boas azeitonas – caiu no gosto dos ricos.

Quinta-Feira Santa era o dia em que, por excelência, se consumiam as tortas em Vitória – hóstias metafóricas de simples ceia eucarística, rememorando a data em que se instituiu a original. Quem tinha condições guarnecia a comida reaproveitada e austera com o pão e o vinho tinto, substâncias arquissimbólicas. E, na Sexta-Feira Santa, mais torta. No sábado – Aleluia! – havia regozijo: a carne divina ressuscitara e, por isso, a dos animais podia integrar novamente a mesa dos abonados.

As famílias vitorienses antigas, que de início tinham a seu serviço escravas domésticas e depois domésticas escravizadas, não deixavam que na Semana Santa elas e outros serviçais se esforçassem muito, trabalhassem em certas tarefas cotidianas. Fora de suas atividades rotineiras, as pessoas mais facilmente aceitavam as fortes expressões da fé, que direcionavam a comunidade para um foco principal – o sacrifício do Homem, consumado em nome dos homens. Tais famílias provincianas, poucas e nem sempre boas, viviam num eterno Big Brother, a se vigiarem mutuamente para ver quais delas seguiam mais estritamente as recomendações religiosas. E, assim, naqueles dias de extremo recolhimento as mulheres não penteavam seus longos cabelos, os poucos espelhos eram cobertos, não se varriam os chãos das casas, nem se acendiam os fogões a lenha. Também o fogo estava de luto pela morte do seu Criador. Imagine, avivar o lume em época de sofrimento e dor... E que venham rezas! E procissões: do Senhor Morto, da Sua mãe toda em dores, e do encontro dos dois. Com choros e ranger de dentes: piedade, piedade, Ele morreu! Os estômagos roncavam assim mesmo: não sabiam que passavam por um transe sagrado. A solução era pegar fatias de torta, de prontidão no guarda-comida, e mandá-las para dentro, talvez com um pouco de arroz (quando havia) e um tanto de feijão e farinha. A torta capixaba foi o primeiro fast-food que conhecemos. Não por ser de preparo rápido, mas por estar à mão, por ser prática, um quebra-galho alimentício, uma espécie de sanduíche entre uma reza e outra – que não se perdesse tempo com coisas deste mundo. Neste mundo, dizem que a vingança é um prato que se deve comer frio. A torta capixaba também. Se a conserva de pimenta esquentasse um pouco tal criação culinária, sem problema, todos somos filhos de Deus. E que viessem mais choros, velas e lamentações.

Ressalte-se a inteligência dessa cozinha ao mesmo tempo rústica e refinada: com alimentos já processados (as sobras de frutos do mar cozidos ou assados) se concebia uma preparação diferente. E que, até certo ponto, tirava o enjoo por acrescentar aos ingredientes já apurados pelos temperos o delicado palmito, cozido ao ponto. Ele era o veículo ideal, a substância inerte à qual as sobras vinham alegremente se incorporar para formarem o recheio delicioso, por vezes retemperado. Em Portugal, com massa feita de trigo se montavam tortas “direitas”. Na falta do cereal, raro e caro então, nossas tortas eram “tortas”, por serem cobertas com ovos batidos. Pronto. Um prato novo, levado ao forno. Um prato único e com bom aporte proteico, fornecido pelas galinhas poedeiras.

O mais eram sisos. Desde o século XIX, notícias de jornal registram a presença entre nós dessa elaboração alimentar típica. Claro que ela já existia bem antes; os jornais é que apareceram por aqui naquela centúria. Bastante usual os vizinhos, parentes e famílias amigas trocarem pedaços de torta entre si – queriam saber os gostos uns dos outros. Porque uma torta capixaba jamais tem o sabor igual à outra. Como beijo na boca – um sempre difere do outro. À semelhança do Proteu mitológico, a torta é proteica, também por assumir diferentes aspectos... e paladares.

O mais eram risos. As famílias que não tivessem um forno grande mandavam assar suas tortas nas poucas padarias. Inevitáveis as brincadeiras, as enxovas e gozações. Preparava-se uma torta falsa, de tamanho semelhante àquela que um conhecido mandara assar fora. O “quitute” pronto era entregue na casa do seu dono e, quando cortado, aparecia por baixo da cobertura o “recheio” – um monte de papel amassado. Depois da surpresa, do anticlímax, lá vinha a torta verdadeira para alegria de todos. Houve casos grosseiros, em que junto com jornais velhos havia fezes... Encomenda de algum inimigo, brincadeira de muito mau gosto. Presenciei episódio engraçado – para um sobrinho adolescente que morava em Brasília, detestava bucho e passava a Semana Santa em Vitória, minha mãe mandou preparar pequena torta com todos os temperos e ingredientes tradicionais, menos um. Quando a digestão já se fizera, perguntou a ele: – E aí, gostou da torta? – Muito boa, foi a resposta. E ela anunciou rindo: – Pois é. Não foi feita com palmito, mas com bucho bem desfiado...

Então, meu amigo, na próxima vez que se deliciar com a torta capixaba, lembre-se – você também saboreia um pedaço de história.

Vitória, Dia da Proclamação da República, 2015.

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