Gastronomia atualmente é moda. Alta cozinha, como a alta costura, é produto de luxo e trunfo do mercado de turismo. As escolas de culinária se multiplicam, os grandes chefs tornam-se ídolos pop, e é assim em toda parte. Pelos mais eruditos as regiões geográficas e as comunidades populacionais são associadas ao “prato típico”: acarajé, tacacá, churrasco, tutu, torta e moqueca capixaba.
Mas é óbvio que os capixabas, por exemplo, não comemos só as excelentes torta e moqueca capixaba. E que nem todo mundo por aqui come polenta diariamente, por conta do nosso “perfil de colonização italiana”.
Se a culinária é parte da “cultura” (muitíssimo em moda essa expressão) de um povo, das comidas cotidianas do povo deveria também se ocupar a Antropologia e a Etnografia. Deveria com mais afinco, digo, porque a culinária, no rol dos costumes do povo é, sim, objeto de cogitação das duas matérias. Inclusive no campo dos estudos folclóricos.
Citem-se, sem maiores esforços de memória, a História da alimentação no Brasil, de Luís da Câmara Cascudo e Açúcar, de Gilberto Freyre, e os menos avisados pensariam que teríamos esgotado o assunto. Não é assim. E se, a propósito, nos deixarmos ficar por essa vertente mais saborosa e menos rigorosa dos estudos folclóricos, então é forçoso que aqui no Espírito Santo nos debrucemos sobre a obra de Guilherme Santos Neves.
Pesquisador curioso e de grande capacidade de trabalho, Mestre Guilherme (como o chamava o discípulo Renato Pacheco), mesmo não tendo formação acadêmica nas áreas de Antropologia e Etnografia, investigou várias espécies de manifestações folclóricas: danças, dramatizações, folguedos, artefatos, parlendas, culinária... colocou-nos no mapa dos estudos do folclore brasileiro, numa época em que a sabedoria popular contava mais que a chamada “opinião pública”.
A consulta a sua obra está grandemente facilitada pela publicação, em 2008, dos dois volumes da Coletânea de estudos e registros do folclore capixaba: 1944 – 1982, organizada por Reinaldo Santos Neves. Na quarta parte do primeiro volume é que podemos nos regalar com textos sobre comidas típicas daquela época e que (algumas) persistem. Curiosidade maior: a tanajura! Sabia o leitor que aqui em Vitória era costume comer-se a "protuberância calipígia" da tanajura, torrada e com farinha? Meu pai, vitoriense da gema, me ensinou a cantar “cai, cai, tanajura/ na panela de gordura”, mesma parlenda recolhida por Mestre Guilherme e que dá título a um dos textos da coletânea. E eu, menino em Colatina, corri muito atrás de enxames voadores, a ver se algumas caíam no chão atendendo à nossa arenga. Meio como que descrito por Saint-Hilaire, na sua Segunda viagem ao interior do Brasil, depois de falar da destruição causada pelos insetos: “Toda a população do Espírito Santo não se aflige, contudo, com a abundância das grandes formigas. Logo que, munidas de asas, venham a mostrar-se, os negros e as crianças apanham e comem-nas”.
No meu caso, caíam mesmo. Mas, asseguro, nunca provei as bichinhas torradas, e assim não desafiava o epíteto com que os da vila de Campos dos Goitacazes, “em estado de rivalidade contínua com os da vila da Vitória”, chamavam na época de Saint-Hilaire os locais: papa-tanajuras!
Prosseguindo o passeio pelas páginas de Mestre Guilherme, as menções ao muxá e ao munguzá, delícias de milho que podemos associar às atuais canjica e papa, da mesma maneira nos recordam passagens da meninice, e tão presentes entre nós que o primeiro dá nome a uma personagem destacada de Renato Pacheco no seu A oferta e o altar.
Aliás, e falando em A oferta e o altar, o autor refere em suas páginas outro sabor e a que vale a pena fazer menção: o caju, e digo vale a pena fazer menção porque escrevo, nesta tarde sufocante, tendo ao lado um copo do refresco abençoado do pedúnculo do cajueiro.
Nas páginas de Pacheco, Duca Eleotério, o “decano dos areenses”, faz uma apologia ao cajueiro: - “Do cajueiro tudo é útil ao homem”, diz; e segue daí desfiando as utilidades da árvore, do caju e da castanha – esta, sim, o fruto do cajueiro. Aliás, e para os apreciadores, recomendo a leitura de O cajueiro nordestino, de Mauro Mota (1982), monografia com que o autor se candidatou, em 1954, ao concurso de Geografia do Brasil no Instituto de Educação de Pernambuco, e referido por Mestre Guilherme num de seus textos. Adquiri meu exemplar no Recife, na excelente livraria de assuntos pernambucanos existente na Casa da Cultura, na antiga prisão em que foi executado Frei Caneca.
No meu Memória repartida, a certa altura o narrador encontra Eustáquio, o forasteiro que protagoniza os acontecimentos, e mais a namorada, pescando na beira do rio. E para surpresa dele, narrador, a namorada capitaneia o ritual do caju amigo - devidamente descrito por Luiz Guilherme Santos Neves e Renato Pacheco no Índice do Folclore Capixaba, e que consiste no mastigar fatias de caju, extraindo-lhe o sumo, enquanto se bebe por cima uma dose de pinga.
Conversando com velhos moradores recordei-me que na Praia da Costa de antes da urbanização havia grande incidência da árvore no areal que se estendia desde a praia. Como acontecia, da recordação de Mota, na região de Boa Viagem, no Recife. Lá com a revogação, no tempo, de um decreto de Maurício de Nassau que proibia a derrubada, a marcha da urbanização acabou por destruir os verdadeiros bosques de cajueiros encontradiços em várias regiões da capital pernambucana. Por aqui, sem um Maurício de Nassau para coibir, a dizimação das plantas nativas se fez em um curto espaço de tempo.
Para o caju amigo, refiro por último à cachaça, que tecnicamente não é a mesma aguardente por conta de diferenças na concentração alcoólica do líquido. Já pouco sabe a população, atualmente (isto devido, talvez, ao progresso), do processo de fabricação da bebida: moagem, decantação, a preparação do mosto na adição da dose certa de água ao caldo já “respirado”, a fermentação em barris após a adição da levedura e fermento, e por último a destilação em alambique, quando se deve desprezar a “cabeça” e a “cauda” do destilado. Em que pese ao fato de produzirmos aqui mesmo cachaças de excelente qualidade, inclusive para exportação.
Enfim, o que se produz hoje de maneira artesanal, cada vez em maior quantidade, é a cerveja, e o que se consome hoje, cada vez em maior quantidade, é o vinho. Tempos em que a alta gastronomia, digamos assim, se tornou mais acessível. Mas ainda assim, sem o condão de apagar da lembrança alguns sabores capixabas de sempre, que tentei brevemente recordar aqui.