Primeiro documento historiográfico
sobre o Espírito Santo

Luiz Guilherme Santos Neves

Em 1812, o bispo D. José Caetano da Silva Coutinho desembarcou no cais do Palácio do Governo, futuro cais das Colunas, depois do Imperador, na ilha de Vitória. Vinha em missão de pastoreio sacerdotal e, como lhe competia, registrava, bênção por bênção, os aspectos marcantes da viagem.

Dos integrantes da ilustre comitiva que o foram recepcionar, o prelado citou os nomes, os cargos ou funções de vários deles, dentre os quais, além do “governador novo de oito dias, Francisco Alberto Rubim”, estava “o coronel ex-governador Monjardim”.

Ignácio João Mongiardino teve duplo destaque na história do Espírito Santo, quer pelas importantes funções públicas que exerceu, quer por ser o autor do que é até agora o primeiro documento da historiografia capixaba. Mas seria exigir demais do bispo Caetano que fizesse referência à primazia historiográfica de Monjardim, muito embora sua reverendíssima, com o teor das informações sobre as duas visitas pastorais que o trouxeram ao Espírito Santo, em 1812 e 1819, também nos tivesse legado um valioso documento de caráter historiográfico.

Considera-se que as fontes informativas em que se louva a escrita da história sejam de três tipos: a testemunhal, que no caso do Brasil remonta aos primeiros cronistas e padres jesuítas; a documental, que abastece de dados e informações os pesquisadores da História; e a oral, da qual se valem os historiadores de informações dadas pelos que, por uma ou várias razões, fizeram-se sujeitos da história.

O documento historiográfico de que estamos tratando, ao qual conferimos a condição de primeiro documento com esse caráter na História do Espírito Santo devido à abrangência do conteúdo que apresenta inclusive acompanhado de mapas (vide exemplo abaixo), é conhecido como a Informação do capitão-mor Ignácio João Mongiardino ao Governador da Bahia sobre a Capitania do Espírito Santo, em 11 de julho de 1790. O encaminhamento à Bahia se explica pela então subordinação administrativa do Espírito Santo àquela autoridade.   

Bem examinada em seu amplo e variado contexto pode-se afirmar que a Informação preenche os três tipos de fontes historiográficas antes mencionadas. E é o próprio autor que nos leva a essa conclusão em mais de uma passagem.

Senão, vejamos.

Ao se referir aos “pontos” [partes] em que dividiu a Capitania, escreveu Monjardim que “procurei investigar o mais recôndito, além dos documentos a esta juntos, de que me fiz instruir...”. Reportando-se ao norte do Espírito Santo, escreveu que ele se fez “instruir dos rios e lagos, onde fui pessoalmente”. Outras informações revelam-se também fruto de sua observação pessoal como a que apresentou sobre a Vila de Vitória da qual escreveu ser terra capaz “de toda a produção, fazendo, mas os seus habitantes, frouxos e nada aferrados ao interesse”.

No mesmo embalo depreciativo referiu-se aos índios que formavam a população de Nova Almeida, “gente inteiramente preguiçosa e de nada estimam os haveres, de sorte que, possuindo com que passem alguns dias, não cuidam no futuro, e só obrigados da necessidade ou temor, trabalham”.

Quadro de indolência semelhante, captado pelas observações de Monjardim, repete-se na descrição dos moradores de Guarapari que “só trabalham para comer e vestir”, em nada diferindo do que o bispo observou em Vila Nova de Benevente: “Esta vila, ultimamente, depois da cabeça da comarca [Vitória] é a mais populosa da capitania (reticências no texto), e os seus habitantes são índios e de natureza, como dito fica, frouxos. Por meio da cultura só tiram o sustento, sendo a terra capaz de tudo.”

Depreende-se, pois, das generalizações de Monjardim que a grande maioria da população que habitava a capitania capixaba, muito ao jeito do herói sem caráter de Mário de Andrade, podia ser ilustrativamente encaixada nos versos da Filosofia, de Ascenso Ferreira, e no desenho da rede de balanço, de Carybé:

Hora de comer – comer!
Hora de dormir – dormir!
Hora de vadiar – vadiar!
Hora de trabalhar?
– Pernas pro ar
Que ninguém é de ferro!

É óbvio que a Informação de Monjardim não se restringe à avaliação do comportamento mole-molenga da gente capixaba. Diga-se até que isso é o de menos, comparando-se com o manancial de dados, quase sempre minuciosos, sobre outros aspectos da capitania, alguns dos quais chegam a contrariar a suposta aversão ao trabalho da gente capixaba.

Graças a Monjardim tem-se um somatório de informes sobre produção; comércio; rios com suas extensões, distâncias e condições de navegabilidade; conflitos entre colonos e índios resistentes ao processo civilizatório; exuberância das florestas com sua profusão de madeiras já em fase de derrubada e corte por serrarias visando à exportação; descrições das vilas da Capitania com a quantificação de habitantes livres e escravizados; as dificuldades deparadas pelos colonos nas tentativas de avançarem para além do litoral, sertão adentro, enfim, um rico e versátil painel da geografia e da história do Espírito Santo na penúltima década do século XVIII.

Em artigo publicado em maio de 1991 na Revista de História da Universidade Federal do Espírito Santo, tive a oportunidade de apontar a Informação de Inácio Monjardim como o primeiro documento da historiografia capixaba. Nesse sentido, contrariei a posição até então dominante de que tal prevalência cabia às Memórias para servir à História até o ano de 1817, da lavra de Francisco Alberto Rubim, fato que, por seu turno, fora contestado por José Honório Rodrigues in Teoria da História do Brasil (Introdução Metodológica) - Companhia Editora Nacional, S. Paulo, 1957, em favor da Informação que Francisco Manoel da Cunha deu sobre a capitania do Espírito Santo, em 1811.

Na História do Espírito Santo, José Teixeira de Oliveira, transcrevendo Alberto Lamego, registra que Inácio João Monjardim era “autoritário e vingativo, sua fama vogava por toda a Capitania”.

Esta conduta desabonadora, bem própria da maioria dos governantes da época, não tira a Monjardim, pelo menos até prova em contrário, o mérito do pioneirismo historiográfico que lhe cabe e que, por ser de direito, deve ser reconhecido.

(1)http://www.ijsn.es.gov.br/ConteudoDigital/20120815_ij00730_seriedocumentoscapixabas_v.1.pdf

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