Pessanha Póvoa, Du Guay-Trouain
e o Forte de Piratininga

Getúlio Neves

Sem o devido cuidado, estudos para escrita de material acadêmico podem resvalar para qualquer lado. Aliás, pelo senso comum, quanto mais amplo o tema, pior para estudar e escrever. Mas com método e um pouco de sorte a necessidade de pesquisar largos períodos temporais revela “achados” inusitados. Pesquisando a estrutura de defesa militar do século XVIII (uma rede formada da conjugação de esforços locais das capitanias para fazer frente a ameaças de saques e invasões estrangeiras) deparei-me no jornal A Província do Espírito Santo, edição de 16 de setembro de 1885, com uma informação surpreendente. Vamos dar a palavra ao noticiante, o jornalista e professor José Joaquim Pessanha Póvoa, hoje conhecido (ou se o deveria conhecer) pela autoria da letra do hino do Estado do Espírito Santo. No artigo falava nosso letrista sobre D. Pedro II de Portugal, cognominado “O Pacífico”:

Ligou-se ao archi-duque Carlos d’Áustria contra a França, a qual (sempre esperta!) a pretexto de vingar a morte de Duclerc, mandou uma esquadra contra o Rio de Janeiro, e foi essa que entrou aqui em 1711 e bombardeou o Fortim de São Francisco Xavier (Piratininga) e o de S. João, para tomar uma vindicta, como o fez - arrazando o que encontrou no dia 12 de setembro de 1711. 

Ora, pensei eu, que informação é essa de que nunca tomei conhecimento? A esquadra do famoso Du Guay-Trouain, corsário do rei de França e saqueador do Rio de Janeiro, adentrou a baía de Vitória e bombardeou nossas fortalezas, “de passagem” para aquela aventura funesta?

Comentei na reunião seguinte do Instituto Histórico e Geográfico e não se sabia a respeito. Fiz então o que se faz nessas ocasiões: puxei da estante o meu Basílio Daemon e o meu José Teixeira de Oliveira (ambos, referências seguras para os fatos históricos do Espírito Santo, podem ser acessados no site do Arquivo Público Estadual) e nada. Ora, de fato parece não ter ficado registro local da alegada incursão. Bom, procure-se então a versão do autor do presumível feito, o corsário René Du Guay-Trouain, deixando que se explique e se justifique sobre o ato de explícita hostilidade contra esta terra. E nada também: nos seus escritos não há menção ao Espírito Santo naquela quadra.

Neste ponto é melhor esclarecermos de que se trata. Corsários eram marinheiros profissionais que recebiam dos governos licença para agir em seu nome. Atacavam navios de nações inimigas, enfraquecendo-lhes o comércio e as forças navais. Se aprisionados, a carta de corso, instrumento legal de sua “contratação”, possibilitava-lhes tratamento diverso do dispensado aos piratas, que agiam ilegalmente e por conta própria e cujo fim nesse caso era geralmente a forca.

Em 1710 Jean-François Duclerc, corsário francês, armou na França uma esquadra de cinco navios de guerra e veio atacar o Rio de Janeiro, porto por onde escoava o ouro das Minas Gerais. À frente de um contingente de aproximadamente 1200 homens, tentou a invasão e acabou rechaçado pelas forças cariocas, sendo feito prisioneiro com inúmeros de seus homens (FRAGOSO, p. 91, 97). O problema é que Duclerc foi assassinado por mascarados na noite de 11 (ou 18) de março de 1711, em circunstâncias até hoje não esclarecidas. Ora, sendo ele um “funcionário” francês, o crime fatalmente atrairia atenção, o que de fato aconteceu: René Du Guay-Trouain, comandante experimentado, com livre acesso ao rei, armou poderosa expedição, que a 12 de setembro do mesmo ano forçava a entrada na baía de Guanabara. O desenlace é bem conhecido: a expedição francesa tomou a cidade, de onde só se retirou mediante polpudo resgate, dias antes da chegada do numeroso e bem armado exército que por terra viera acudi-la (COSTA, p. 257-260).

Em 1740, já com problemas de saúde, Du Guay-Trouain dedicou-se a escrever suas memórias. Nas referências ao ano de 1711 narra como teve a ideia de atacar o Rio de Janeiro, que providências tomou para armar a expedição e os acontecidos durante a viagem. No dia 27 de agosto, na altura da Baía de Todos os Santos, diz ele terem se reunido em conselho os comandantes de todos os navios da esquadra, propondo-se o combate e a queima de quantas embarcações inimigas encontrassem pelo caminho. Mas dispondo de pouca água a bordo, decidiram, afinal, seguir direto ao destino (DU GUAY-TROUAIN, p. 139). Ou seja, não consta do relato ter a expedição adentrado a baía de Vitória nem terem dado combate a navio ou fortaleza durante a rota. O que, sendo relevante em termos de proeza, por certo teria sido relatado pelo comandante.

O que se pode presumir então do artigo de Pessanha Póvoa? Naqueles anos de agitação na Europa os apuros locais, como de resto em toda a costa brasileira, eram muitos. A leitura de Basílio Daemon, que teve acesso a documentação coeva da Câmara de Vitória, adverte para o fato de que em 1710 as incursões estrangeiras determinaram providências por parte dos governadores. Entre estas, manter-se a população do Espírito Santo bem apetrechada de armas e meios outros de resistir a hostilidades; por exemplo, auxiliar na manutenção de trincheiras e estacadas. A ameaça era real, via-se da aventura de Duclerc, e foi, por isso mesmo, um ano de muitos trabalhos por aqui. Para pôr mais lenha na fogueira, a invasão de Du Guay-Trouain em 1711 demandaria providências a nível governamental, trazendo ao Espírito Santo um alto comandante militar para organizar a defesa e assim participar de operações para a reconquista do Rio de Janeiro. Com esse propósito foram despachados de Salvador para cá equipagem e farta munição (DH, vol. LXX, p. 108-114).  No final, e ante o desfecho da expedição de Du Guay-Trouain, a operação militar de reconquista acabou não se fazendo necessária. No entanto o estado de alerta geral persistia, e ainda em maio de 1712 o capitão-mor do Espírito Santo prevenia o povo e o mandava aprestar-se contra os franceses, que “andavam correndo a costa desta capitania, praticando roubos e fazendo insultos”, inclusive estacionados por algum tempo na Ilha dos Franceses, entre Itapemirim e Piúma (DAEMON, p. 203-204).

Foi aquele início do século XVIII um tempo de cuidados constantes para os capixabas. Assolados desde ao menos 1704 pela escassez de mantimentos, resultado do movimento migratório em direção às minas recém-descobertas, ficava proibido exportar para fora da capitania qualquer gênero alimentício (DAEMON, p. 192); ainda em 1707 obrigavam-se os lavradores a abastecer a vila de farinha de mandioca (DAEMON, p. 196). Em 1710 um bando (aviso) do capitão-mor coibia a traficância de mantimentos pelos lados de Jacaraípe (DAEMON, p. 198). Ou seja, o flagelo da população naqueles anos era considerável, e grandemente incrementado pelas ameaças de corsários e piratas. A notícia das duas invasões do Rio de Janeiro deve ter calado fundo nos ânimos.

Foi em meio a esse estado de coisas que o forte de São Francisco Xavier da Barra de Piratininga (mandado erguer em 1702 pelo governador e capitão-general do Estado do Brasil, D. Rodrigo da Costa, e cujas obras se arrastaram alguns anos) foi atacado em 1705 por piratas de uma nau inglesa cujo nome não se guardou. Socorreu-o o capitão do forte de São João, Manoel Correia Lemos, que resistiu ao ataque e mandou consertar a fortificação de Piratininga a expensas próprias, sendo por esse feito nomeado capitão-mor do Espírito Santo (DAEMON, p. 201). Reinava então em Portugal, até 1706, D. Pedro II, a quem, aliás, Pessanha Póvoa se referia no artigo.

Imagino eu que, naquela conjuntura adversa, as dificuldades devem ter impressionado vivamente os moradores a ponto de virarem tradição oral sobrevivida quase duzentos anos na boca do povo. E que, como não é raro acontecer, os fatos acabaram se confundindo, e assim confusos chegaram ao conhecimento de Pessanha Póvoa. Aparentemente tal tradição fazia parte do rol de “fábulas, contradições e absurdos” a que se referiu Brás da Costa Rubim nas suas memórias “históricas e documentadas” sobre a Província do Espírito Santo (RUBIM, p.171), em que procurava expurgar nossa história de imprecisões recorrendo a fontes documentais.

Em suma, e seja como for, que naqueles anos houve ao menos um ataque pirata ao forte de Piratininga parece fora de dúvida. Ataque este a que parece ter-se referido Pessanha Póvoa no artigo da Província do Espírito Santo como polemista, não como historiador. Mesmo que se tenha tratado aí de um engano do articulista, é bom que se esclareçam devidamente os fatos.  

Referências

BRASIL. Biblioteca Nacional. Documentos históricos, vol. LXX. Rio de Janeiro: Tipografia Batista de Souza, 1945.

COSTA, Sérgio Paulo Muniz. Cinco séculos de História Militar do Brasil: espaço, cultura, sociedade e nação. Rio de Janeiro: Wallprint, 2021.

DAEMON, Basílio Carvalho. Província do Espírito Santo: sua descoberta, história cronológica, sinopse e estatística. 2.ª ed. Vitória: Secult, APEES, 2010.

DUGUAY-TROUAIN, René. O Corsário: Uma invasão francesa ao Rio de Janeiro: diário de bordo. Trad. Carlos André Nougué. Rio de Janeiro: Bomtempo, 2002.

FRAGOSO, Augusto Tasso. Os franceses no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Bibliex, 2004.

PÓVOA, José Joaquim Pessanha. Cartas a Eduardo Coelho, IV. A Província do Espírito Santo, Vitória, 16 set. 1885, p. 3-4.

RUBIM, Brás da Costa. Memórias históricas e documentadas da Província do Espírito Santo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, Tomo XXIV, p. 171-351, primeiro trimestre, 1861.  

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