Padres, índios, pescadores e guarás

Getúlio Marcos Pereira Neves

Uma das mais antigas localidades do Espírito Santo é Guarapari, no litoral sul, plantada a meio do caminho entre o antigo e importante aldeamento indígena de Reritiba e Vitória, a cidade cabeça da capitania.

Guarapari, como outras antigas localidades do litoral capixaba, põe-se na conta dos jesuítas, empreendedores iniciais de tudo nestas plagas, independente de queiram-ou-não os hoje-em-dia. Tão essenciais no estabelecimento do antigo aldeamento que originou o povoado que a este acabou ficando para nome versão juntando padres e guarás, a ave pelecaniforme colorida que se reproduz em áreas de mangue (o Acadêmico Levy Rocha, menos afeito ao simbólico, fala em armadilha de guarás). Particularmente inclino-me a explicação menos bucólica para o nome da cidade: guaraparim é nome popular da árvore silvestre, do grupo das angiospermas, de madeira arroxeada, cujo nome científico é vantanea compacta. Que deveria ser abundante também por aqui à época, como os índios, os padres, os guarás e as armadilhas de apanhá-los.

Guarapari foi logo ficando imortalizada num auto de José de Anchieta: “Recebimento que fizeram os índios de Guaraparim ao Padre Provincial Marçal Beliarte”. A presença do provincial, máxima autoridade da Companhia de Jesus por aqui, atesta a importância da localidade à época. Graças, também, à peça do santo dramaturgo, dividida em três partes passadas no porto, na igreja e no pátio fronteiro, verifica-se que o planejamento da povoação pelos jesuítas seguia um padrão, o mesmo das aldeias de Reritiba e de Reis Magos, para ficarmos por aqui mesmo pelo Espírito Santo.

Seja como for o nosso povoado dos padres e guarás, circundando lá em cima o morro da igreja e cá embaixo espraiando-se ao longo do braço de mar foi sobrevivendo e acabou chamando a atenção do donatário Francisco Gil de Araújo, que em 1674 comprara aos herdeiros de Vasco Fernandes Coutinho a Capitania do Espírito Santo. Capitão de couraças (da arma de Cavalaria) da Guerra da Restauração de Portugal, entre as fortificações que ergueu, em Vitória e por lá mesmo, no morro que guarda a entrada da pequena baía, Gil de Araújo iniciou, em 1677, a construção da igreja de mesmo nome no local onde fundaria, em 01/01/1679, a Vila de Nossa Senhora da Conceição de Guaraparim. Passando a vila o antigo povoado, a velha igreja de Sant’ana (fundada por Anchieta nos idos de 1585 e onde se recebera o provincial), acabou tomando a invocação da Senhora da Conceição, padroeira da Casa de Bragança, que, vitoriosa na guerra contra os castelhanos, reinaria a partir de então em Portugal.

Ainda que no ano de 1812 alguém comentasse com o bispo do Rio de Janeiro, Dom José Caetano da Silva Coutinho, em visita pastoral à freguesia, que “as chapadas interiores entre os morros eram fertilíssimas para cana”, contaram-lhe também que por lá havia “muito peixe”. E assim, embora a localidade contemporânea, à vista dos ares ventilados, horizontes largos e fama de saúde, agradasse deveras a S. Ex.ª Revmª., a critério do prelado “quase toda a gente, que é pobríssima, me cheirava a peixe”. Estaria o senhor bispo sugestionado pela informação que recebera?  

Sete anos depois dessa empírica constatação Dom José Caetano voltaria a Guarapari para uma segunda visita pastoral. Da mesma maneira foi registrando suas impressões sobre as diferenças que ia constatando na povoação sua conhecida. Dessa segunda vez nada falou sobre cheiro de peixe, pelo que forçoso reconhecer-se que nada se poderá concluir a respeito. Mas como não nos preocupamos aqui com etnologia e nem com fazer História, registremos simplesmente que desde então a vila seguiu vivendo os seus dias. Se logo antes do retorno de Dom José Caetano Guarapari recebera visitas ilustres, do naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire e do príncipe alemão Maximiliano de Wied-Neuwied, no entanto somente reapareceria nos registros literários anos depois e em poucas linhas de um outro escrito famoso: o diário do Imperador Pedro II, que por lá passou em 1860, no retorno à Corte da viagem que fizera às províncias do Norte. De passagem viu do mar o povoado de Muquiçaba e adiante foi descer à terra por umas horas. Na vila visitou a matriz, a casa da Câmara e a escola, como era de seu costume em todas as povoações que visitava. A vocação marítima de Guarapari não lhe passou despercebida: “Havia uma lancha grande no único estaleiro pertencente ao Presidente da Câmara onde já se construíram 50 e tantas embarcações grandes e pequenas. 3 navios no porto”. Pouco ou nada mudara a povoação de pescadores desde a passagem por lá do bispo Dom José Caetano.

Abstraídos um ou outro registro a cargo de autoridades constituídas, a exemplo da “Descripção do Município de Guarapari em 1881”, da lavra da Câmara Municipal e reproduzido no n.º 80 da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, e ainda as notas (muito mais eclesiais que as anteriores, diga-se) referentes a uma outra visita pastoral que em 1886 lhe faria o bispo do Rio de Janeiro Dom Pedro Maria de Lacerda, Guarapari voltaria aos noticiários já no século XX por conta da sua maior riqueza natural, as areias monazíticas. Extraídas indiscriminadamente, numa história obscura que se presta a enredo de filme de espionagem, acabaram chamando a atenção do médico e Acadêmico Antônio da Silva Mello, que posteriormente descreveria no livro Guarapari: maravilha da natureza (1971) as suas várias estadas na cidade e as propriedades terapêuticas dos minerais que lá se encontram. A fama renascida, e agora extrapolados os parcos limites locais, rendeu à localidade o título de Cidade Saúde e a confirmação da vocação turística incrementada nos anos 40/50, de que são símbolos o Siribeira Clube (1947) e o Radium Hotel (1953), ambos tristemente desativados hoje em dia. Mas não sem antes terem recebido animados bailes de Carnaval, o primeiro, e servir, o segundo, de cenário ao romance inacabado Crime no Radium Hotel, da dobradinha Renato Pacheco/Luiz Guilherme Santos Neves, obra que só se lê na internet, no site Estação Capixaba.

Silva Melo, um dos responsáveis pela mudança no perfil da outrora cidade pesqueira, consta ter-se hospedado algumas vezes no Radium, mas preferia outro hotel, de onde organizava as pesquisas que vinha fazer. Tendo previsto a descaracterização da localidade como efeito funesto da especulação imobiliária, ele, o 4.º ocupante da cadeira 19 da Academia Brasileira de Letras, pode ter-se na conta de um dos mentores da cidade moderna e cada vez mais verticalizada em que vai se tornando a bucólica localidade dos guarás e das vantaneas, uma das mais antigas do Espírito Santo.     

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