Os serpentinos braços do Santo Ofício na capitania do Espírito Santo

Luiz Guilherme Santos Neves

Quão longo quanto o braço da Santa Igreja Católica na propagação do catolicismo em terras do Brasil Colonial foi também o sombrio e serpentino braço do Santo Ofício no alcance das heresias e outras formas de condutas consideradas anticristãs e, como tal, ferreamente reprimidas pela Igreja.

A essa atuação não ficou imune a capitania do Espírito Santo muito embora as vítimas das devassas inquisitoriais no território capixaba não tivessem sido tão numerosas quanto em outras partes da colônia brasileira, como Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro.

Nem por isso a ação dos agentes do Santo Ofício no Brasil, marcadamente nos séculos XVII e XVIII, deixou de espalhar entre os moradores do Espírito Santo as terríveis serpentes do medo.

Um quadro geral do afã inquisitorial pode ser avaliado pela leitura do excelente ensaio sob o título O Santo Ofício na Capitania do Espírito Santo, apresentado pelo professor Luiz Mott no III Encontro Regional da Associação Nacional de  História, UFES, Vitória, em dezembro de 2000, acessível na Internet.

O estudo tem por plataforma um conjunto de fontes bibliográficas, sendo muitas delas com a citação de autores ligados à historiografia capixaba, o que permitiu a Mott desdobrar metodologicamente o tema de que se ocupou em cinco partes distintas, porém integradas entre si, a saber: introdução; judeus e hereges; feitiçaria; familiares e comissários do santo ofício e conclusão.  

Na Introdução, Mott começa por aludir à escassez de estudos sobre a presença do Santo Ofício no Espírito Santo, e dá aos Excertos de várias listas de condenados pela Inquisição de Lisboa desde o ano de 1711 ao de 1767, publicado por Varnhagen em 1845, a primazia da primeira menção a tal presença. É a publicação em que o clássico historiador pátrio se refere aos processos instaurados pelo Santo Ofício contra o cristão-novo Brás Gomes de Siqueira (1726), acusado de judaísmo, e contra o índio feiticeiro Miguel Ferreira Pestana (1744).

Feitiçaria e judaísmo (este uma das formas típicas de heresia capitulada pela Inquisição), além de bigamia, sodomia e aliciamento sexual, eram pecados que entravam no alvo dos procedimentos do Santo Ofício, passíveis das mais severas punições. O rol das penas ia desde a condenação a penitências obrigatórias, prisões, torturas e degredo, até à morte na fogueira (a morte limpa, sem derramamento de sangue), para cuja execução os condenados eram “relaxados à justiça secular”.

A expressão era um eufemismo grosseiro para significar a transferência ao poder secular do encargo de queimar vivos, nos fatídicos Autos de Fé, os desgraçados condenados à morte pela Santa Inquisição.

No ensaio que apresentou, Luiz Mott deixa claro que não se valeu apenas das fontes bibliográficas que citou, mas também de dados que teve a oportunidade de localizar durante pesquisas que fez na Torre do Tombo, em Portugal, em que se deparou com “seis  processos inéditos de naturais ou moradores do Espírito Santo, vítimas da repressão  do Santo Ofício no Brasil, incluindo mais seis  processos referentes à nomeação e atuação de três  comissários, um notário  e dois familiares do Santo Ofício”.

Ao avançar em seguida para os itens Judeus e Hereges, Feitiçaria, Familiares e Comissários do Santo Ofício, Mott concentra sua atenção em vários casos de perseguidos religiosos com vivência ou passagem na capitania do Espírito Santo que se viram colhidos pela Inquisição como protagonistas das mencionadas situações. Estabelece, nesta parte do ensaio que, “salvo erro de avaliação”, as primeiras referências documentais que relacionam o Espírito Santo com a Inquisição se deram no ano de 1591, quando da instauração da mesa na Bahia sob a autoridade do visitador Heitor Furtado de Mendonça.

No desenrolar dos trabalhos investigatórios surgiram, por duas vezes, menção à capitania capixaba: uma, na voz da cristã-velha  Antônia  de Bairos, 70 anos, residente em Salvador, que delatou seu primeiro marido por crime de bigamia, tendo-a abandonado para viver na “capitania do Espírito Santo”; a segunda, na palavra da cristã-nova Antônia de Oliveira, 30 anos, que confessou ter praticado atos de judaísmo quando, já passados seis anos, tinha morado no Espírito Santo. 

Bem a propósito, lembra Mott que foi em decorrência da forte presença de cristãos-novos no Espírito Santo que se verificou o grande envolvimento deles com o Santo Ofício, muito mais do que o de quaisquer outros investigados.  Este fato, aliás, ressuma claro das obras sobre os cristãos-novos no Brasil, de autoria do historiador José Gonçalves Salvador, em especial de A capitania do Espírito Santo e seus engenhos de açúcar (1535-1700). A presença dos cristãos-novos (Vitória, UFES/DEC, 1994) que, por sinal, figura na bibliografia mencionada por Mott. A produção de açúcar e sua comercialização foram, de fato, atividades que concentraram a atenção deles na capitania capixaba.

Desta obra de Gonçalves Salvador destaco o seguinte trecho, colhido à página 26: “... a comunidade de cristãos-novos [judeus forçados a abjurarem o judaísmo e se converterem ao catolicismo] já era notável [no Espírito Santo] em fins do século XVI, quando, então, a conduzi-la espiritualmente figurava o mercador Francisco Rodrigues Navarro, em cuja moradia os congêneres costumavam reunir-se às sextas-feiras, à noite, para o culto e doutrinação”. 

A citação faz pressupor a existência de expressivo número de cristãos novos na capitania do Espírito Santo. Constituiriam, pois, verdadeiro maná para a gula do Santo Ofício, pagando caro quando sobre eles recaíam as garras inquisitoriais.

Isto porque pagavam duplamente com os bens e recursos que lhes eram espoliados para a cobertura das alegadas despesas com os processos a que eram submetidos – espoliações que engrossavam as burras da Inquisição –, além de pagarem com os terríveis sofrimentos que lhes eram impingidos, o que, para muitos, chegava à pena de morte nas chamas das fogueiras. Fogueiras – vale insistir – cujas lenhas não eram acesas pelos braços do Santo Ofício, muito embora fossem por eles atiçadas. E fogo nunca faltou para tantos.

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