Ao desobedecer ao Bloqueio Continental que Bonaparte havia adotado como estratégia de aniquilamento econômico para derrotar sua grande inimiga a Inglaterra, expôs-se Portugal – tradicional aliado dos ingleses – à invasão das tropas napoleônicas, em novembro de 1807.
Na maré-montante da arrancada dos franceses pelo território lusitano deu-se a vinda da corte portuguesa para o Brasil, em passagem meteórica pela Bahia e posterior fixação no Rio de Janeiro, em começos de 1808.
As profundas transformações decorrentes do estabelecimento da corte no Brasil constituem um capítulo de reviravolta revolucionária na história do nosso país que ainda vivia imerso na placenta paquidérmica do período colonial. Aos efeitos dessas transformações não ficou alheia a então pobre e desprezada capitania do Espírito Santo.
Mal saída de um atoleiro letárgico que durara mais de cem anos contemporâneo da exploração do ouro na região das Minas Gerais durante os quais o Espírito Santo se viu condenado ao abandono e à marginalização pela política lusitana de defesa da região aurífera, a capitania capixaba colheu, da administração de D. João, frutos que pontuam um cenário de mudanças antes impensáveis. A começar pelos novos padrões administrativos que foram implantados no Espírito Santo pelos governadores designados para administrá-lo.
Essa experiência inovadora levou à abertura de estradas; ao incentivo à colonização e ao povoamento de áreas desabitadas no sertão capixaba; à fixação de colonos açorianos em Viana; à construção da Santa Casa de Misericórdia, no atual bairro da Vila Rubim, em Vitória, onde se mantém até hoje; ao forçamento da ligação comercial (primeiramente fluvial, depois territorial) com Minas Gerais, além de várias outras iniciativas. Mudanças expressivas, oriundas de providências baixadas pela gestão colonial sediada no Rio de Janeiro e postas em prática pelos agentes promotores que as planejaram e as incrementaram na capitania do Espírito Santo.
Em todas elas, como traço comum, ressalta o caráter reconstrutivo e reformador de um status quo retrógrado que não tinha mais como continuar perdurando ao longo do tempo.
Todavia, dentre as decisões oficiais tomadas pela corte no Rio de Janeiro que repercutiram fortemente no Espírito Santo, uma houve a que o jornalista Laurentino Gomes, em sua obra 1808, se refere como “pitoresca”, quando foi decisão dramática e terrível, pelas implicações que iria ter. Trata-se da decretação da guerra justa contra os botocudos da região do Rio Doce que não se submetessem às imposições civilizatórias do governo português.
Tratando da questão, Laurentino cita o inglês John Mawe que, na obra Viagens ao interior do Brasil, menciona a proclamação baixada pelo príncipe regente D. João em que convidou os índios a habitar nas aldeias e a se fazerem cristãos, em troca da proteção que o estado lhes daria “se viverem em boa inteligência com os portugueses”. Mas se ignorassem o convite e persistissem “em sua vida bárbara e feroz”, os soldados do príncipe teriam ordem de lhes fazer guerra de extermínio.
Em complementação a essa informação, o autor de 1808 transcreve o comentário irônico que o jornalista Hipólito da Costa fez no jornal Correio Braziliense por eleeditado em Londres, à proclamação de D. João: “Há muito tempo não leio um documento tão célebre; e o publicarei quando receber a resposta de Sua Excelência o Secretário dos Negócios Estrangeiros e da Guerra da Nação dos Botocudos”.
Foi, portanto, dentro desse contexto em que justapôs a ironia de Hipólito da Costa, radical opositor do regente D. João, à proclamação que ameaçava de genocídio os índios botocudos que Laurentino Gomes viu o “pitoresco” de uma decisão que, ao recair sobre a cabeça dos que por ela foram atingidos, iria servir de base ao morticínio praticado de forma gradual e sistemática, durante quase cem anos, contra os botocudos do Espírito Santo.
E não foram apenas “os soldados do príncipe” que abriram guerra mortal ao atrevimento de uma nação indígena que não se curvou à opressão dominadora e à apropriação de suas terras pelos colonizadores. Foram todos aqueles que tinham interesses nessa apropriação e nesse aniquilamento como se a guerra justa, cujas raízes retrocedem ao terceiro governador geral Mem de Sá no combate à poligamia e à antropofagia dos índios do Brasil, fosse a um só tempo uma missão santificada, civilizatória e exemplar.
Claro é que não foi apenas a guerra contra os índios rebeldes à dominação colonizadora, à qual se somou como capítulo à parte a escravização em massa de contingentes indígenas, que motivou o confronto dizimador.
O mesmo Laurentino Gomes, em sua nova obra Escravidão Volume I, chama a atenção para o fato de que “com os europeus e os escravos africanos, chegaram à América moléstias até então desconhecidas entre os indígenas de todo o continente” causando entre eles mortandade espantosa.
A um simples curioso do conhecimento histórico pode parecer que a ocupação e a colonização do Rio Doce teriam ocorrido ainda que não tivesse havido a impiedosa dizimação dos botocudos em nome da guerra justa.
A questão, porém só é admissível para os diletantes da História, visto que para os historiadores não existe a utópica cogitação do que poderia ter sido diante do que efetivamente foi. Ou seja: em História não existe o se condicionante, mas o fato indubitável e irreversível, na forma como se deu e ficou comprovado – tal como no combate de morte aos botocudos do Rio Doce.