Existe na geografia do Estado do Espírito Santo um rio chamado Manguinhos. A rigor, nem chega a ser rio, mas apenas um riacho de águas cor de cobre que languidamente se esvaem para o mar.
Não satisfeito com a cor excepcional de que se reveste, e da pacatez do seu curso desacelerado e manso, o rio (que seja assim respeitosamente chamado) dá-se ao luxo de desaguar em meio a um tapetão de negros arrecifes que enobrecem a sua foz.
Diga-se, ademais, que o rio Manguinhos goza de outra peculiaridade: pouca gente conhece o broto de onde brotam as suas águas como se nascessem de um lugar incerto e não sabido. Por isso mesmo, um lugar que se poderia dizer encantado.
Dito o que dito está, resta por explicar o nome que dá nome ao rio.
Eia, pois, que a explicação reside no próprio nome manguinhos. Vale dizer: a denominação veio dos mangues de verdejante folhagem que se fazem sobremodo evidentes quando vistos à beira da barrinha do rio.
Há algo, porém, que precisa ser acrescentado sobre o rio Manguinhos. É que à margem direita dele, tendo ao norte a sua foz e a leste a imensidão azul do Atlântico Oceano, situa-se um recanto de mundo que outro nome não poderia ter senão... Manguinhos.
E desde quando tendes vós (que seja assim respeitosamente tratado) a originalíssima denominação que vos foi atribuída? Desde quando se instalou em vossos arredores um morador anônimo que pioneiramente ali cravou moradia e, desde então, cara a cara com o mar infindo, lançou rede às ondas oceânicas para sobreviver da pesca numa tradição que varou os séculos? Sim, desde quando?
Façamos uma elucubração histórica para tentar responder à pergunta.
Sabe-se que na jornada exploradora que fez pelo Espírito Santo em 1818, o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire mencionou, na obra que escreveu sobre a viagem, a existência da Ponta dos Fachos. Leiam-se suas palavras: “Depois de cinco léguas [ele partira de Vitória] detive-me em uma cabana construída em uma colina que domina o mar e que se chama Ponta dos Fachos.” Veja-se que o francês referiu-se especificamente ao nome da colina e não à praia Ponta dos Fachos (grifei).
Cento e trinta e cinco anos depois de Saint-Hilaire, o engenheiro Ceciliano Abel de Almeida adquiriu ao Estado do Espírito Santo uma área de 1.175.000 m² onde, em parte dela, foi implantado o Loteamento Balneário de Atapoã, em Manguinhos. Nessa ocasião permanecia em vigor a denominação Ponta dos Fachos para a área adquirida.
Faço a afirmativa com base em contrato particular de promessa de compra e venda assinado em 15 de abril de 1957, pelo qual comprei os lotes 16, 17 e 34 no citado loteamento. O contrato – registrado no Cartório de Imóveis de Vitória, no Livro 3-AM, sob o número 18745 de ordem – informa ainda que dos 1.175.000 m² foi desmembrada “a planta do Loteamento Balneário Atapoã, organizado pelo topógrafo Oswaldo Bueno” cujo projeto foi aprovado em 9 de maio de 1953, pelo decreto número 86, da Prefeitura Municipal da Serra.
Temos, pois, que a denominação Ponta dos Fachos, à qual se referiu Saint-Hilaire no longínquo ano de 1818, dizia respeito à mesma vastíssima área que manteve sua denominação secular, não obstante ter acabado por se restringir a uma das praias de Manguinhos. Denominação que, seguramente, proveio dos archotes de palha seca com que, desde sempre, se fizeram e se fazem as pescas noturnas das lagostas nas grutas dos arrecifes que a praia dos Fachos tem.
Por sua vez, é de se crer que seja também de recuada antiguidade o nome Manguinhos que tanto batiza o rio, quanto a vila que o rio banha, e da qual fazia parte a porção territorial da Ponta dos Fachos.
Muito bem, portanto, procedeu Ceciliano Abel de Almeida ao dar o nome de Auguste de Saint-Hilaire à avenida principal do Balneário Atapoã, primeiro loteamento planejado instituído em Manguinhos e que se fez passo importante para fazer do lugar o que o lugar é: recanto que é um convite para múltiplas aquarelas da Arte Naïf.
Por último, cumpre lembrar que o termo Atapoã remete explicitamente a Itapoã que, em língua tupi, significava ponta de pedra, como é a Ponta dos Fachos, uma verdadeira crosta de arrecifes na “arenosa Manguinhos”, sugestiva expressão que não me pertence, mas ao romance A ceia dominicana, que se passa em Manguinhos. (*)
E que romance é esse que serve aos seus leitores, desde o começo da leitura, uma lauta ceia literária tendo a arenosa Manguinhos por cenário?
Aos possíveis interessados, não darei explicações. Restrinjo-me a bancar o mordomo que os convida para o banquete. Ajuntem-se, abanquem-se, sirvam-se à vontade e saboreiem a leitura a gosto e a contento com direito a repetir do que gostarem. Destarte, informações sobre a Ceia eu as darei, nada mais, nada menos, do que à própria arenosa Manguinhos.
Porque vós, oh arenosa, é que deveis saber o que pretendo dizer. Pois ao serdes vós eleita cenário de um banquete inusitado, merecestes o privilégio de serdes convertida numa rapsódia literária tanto pelo que na obra se contém, quanto porque, a cada capítulo foi dado o título rapsódia numa honrosa remissão... sabeis a quê?
A vós indago e a vós respondo: numa remissão à Odisseia, de Homero, minha Manguinhos arenosa. E só por aí, pelo estreitamento que se perfaz numa marcha à ré de milênios, tendes vós a primeira deixa dos encantamentos literários de que fostes revestida.
Mas não para aí esse mergulho em nobres fontes do passado porque todo o cerne da livre criação ficcional a que servistes de cena está umbilicalmente ligado ao Satyricon, de Petrônio.
O velho Satyricon, cujo conteúdo se passa na Roma Antiga abarcando o final da vida do imperador Augusto, a ascensão de Tibério ao poder, e espichando-se até os anos finais de Nero, foi o modelo em que a Ceia se fez romance neolatino no estilo narrativo marcado pela ironia e por passagens rocambolescas nas quais vós fostes consagrada literariamente. Trata-se, portanto, de outra grande marcha à ré no tempo literário que só tende a vos engrandecer e orgulhar. Tudo isso – notai bem o que vou dizer –, tudo isso numa conjunção de tempo atemporal porque junta, a um só tempo, tudo o que viestes a ser ao longo do tempo.
Se eu fiz jogo de palavras sem me tornar inteligível baixo explicações e cito transcrições exemplificativas.
Em razão do que vos digo, oh arenosa Manguinhos, que a Ceia tanto saca para a sua mesa o “córrego de águas turvas” que vos dá nome ou “a vasta área toda exasperada de pedras metálicas cor de púrpura” dos vossos arrecifes praianos, quanto o que do vosso passado se fez reminiscências memoráveis.
Nesse precioso reavivar de idos (mas não findos) luzem, nas malhas do romance, referências à pesca das manjubas no arrastão das redes lançadas da praia ao mar que se completava com a salga do pescado no trabalho noturno das mulheres embaladas por cantigas de reis “que elas cantavam fora de época feito canto de trabalho” sob os telheiros chamados quitungos, erguidos à beira da praia; e também referência às milhares de manjubas que, no dia seguinte ao da salga, ficavam espalhadas sobre o gramado da vila até a praia formando um tapetão “como se as estrelas tivessem descido do céu pra passar o dia ali”; e ainda referência às dolorosas incelências, cantigas de velório tiradas por vozes femininas ao lado do caixão do morto em casas que eram “pobres e simples, o chão de terra batida, as paredes de estuque”, habitadas pelos pescadores no centro da vila; e por último, mas não por derradeiro, referência ao desfile da banda de congo com seus componentes “em número de uns dez dos quais dois ou três tocavam casacas, o reco-reco de cabeça esculpida que marca o tempo da música com chiados constantes, enquanto os demais com largas palmas soavam compridos tambores rusticanos”.
São lastros esparsos de História numa obra literária, podereis dizer, oh arenosa Manguinhos, ao que vos respondo confirmativamente, permitindo-me, porém lembrar que sem vós, como sois hoje e como fostes no passado, não existiria a Ceia Dominicana tão rica de si mesma e tão completa e irretorquível que abduz o leitor do começo ao fim da narrativa.
(*) O texto a seguir foi acrescentado ao originalmente publicado na Agenda Manguinhos 2022. O acréscimo visou à divulgação no site Tertúlia Capixaba.