Os conflitos entre os botocudos do vale do Rio Doce, no Espírito Santo, e os colonizadores da região têm um passivo de séculos de História com raízes na “guerra justa” ou “guerra ofensiva” desencadeada contra aqueles indígenas desde a chegada de D. João ao Brasil e desde a fundação de Linhares.
No caso do Espírito Santo, foi a fim de sustentar o combate contra o botocudo, refratário à adaptação civilizatória, que quarteis militares foram criados no vale do Rio Doce, o que resultou no incremento dos embates com os indígenas.
Nesse choque de contrários, por muito que os colonizadores gemessem e chorassem as baixas que tiveram, foram os botocudos as grandes vítimas, pois ou tiveram de se aculturar para sobreviverem ou morreram ante a superioridade bélica dos colonizadores, sem desconsiderar o morticínio sofrido com a disseminação de doenças que lhes foram propositalmente transmitidas como estratagema de aniquilamento.
O principal objetivo desse verdadeiro genocídio, promovido conquista a conquista pelos colonizadores, era o de dominar as terras indígenas num drama que se arrastou enquanto botocudos houve no norte do Espírito Santo, ainda que desbaratados gradativamente.
Em carta que escreveu ao presidente Florentino Avidos, datada de 25 de agosto de 1927, o engenheiro Adolpho Odebrecht informava que nas cabeceiras do Rio Itaúnas existiam 25 botocudos de ambos os sexos. Desse rabicho de botocudos sobreviventes, dezesseis foram encontrados mortos, pouco acima da Pedra da Viúva. Na opinião do informante, “a morte dos pobres selvagens [foi devido] à gripe, ao tifo ou à varíola.” Ele contou ainda que nas cabeceiras do Rio Cricaré ou São Mateus foram encontrados vestígios de botocudos pouco numerosos. Tudo indicava que ainda viviam ali em estado selvagem.
Por quanto tempo teriam conseguido espichar esse saldo de vida no seio das matas que também estavam sendo dizimadas? E, por quanto tempo teriam garantido (se o lograram alcançar) uma robustez física semelhante à que se revela em botocudos aculturados, fotografados por Walter Garbo no Rio Doce?
Ou já estariam sobrevivendo aos tropeções e baqueando, tanto os adultos, quanto os curumins, atingidos pela debilitação e pela malária como aconteceu com índios ianomâmis na região amazônica como mostra a foto chocante de EL PAIS, de novembro de 2021?
Não estou defendendo aqui a tese de que o aculturamento, que muitos chamam processo civilizatório foi bom para os botocudos. Quando nada (e estou exagerando pelo mínimo um fato histórico consumado), o aculturamento permitiu que os botocudos do Rio Doce se prestassem a serem documentados em fotos que, apesar das poses elaboradas e dos ambientes pré-escolhidos, expuseram muitos aspectos culturais da sua vida de “selvagens”.
Foi, aliás, graças ao aculturamento que fotógrafos como Walter Garbe puderam realizar o seu trabalho, uma vez que seria inviável, inclusive tendo em vista o complicado manuseio das câmeras fotográficas de então, flagrar botocudos em suas condições naturais de vida.
E que aspectos culturais as fotos nos revelam?
Se considerarmos, para começo de resposta, o leque de fotos de Walter Garbe, tem-se de saída a imagem de botocudos com as rodelas de madeira introduzidas nos lábios e nas orelhas, razão da denominação que lhes foi dada. Nada parecido com os botoques que tanto impressionaram o príncipe Maximiliano Wied de Neuwied quando se defrontou com os botocudos em Vila de Viçosa, no sul da Bahia, em 1816: “A vista dos botocudos causou-nos indescritível espanto: nunca vimos antes seres tão estranhos e feios. Tinham o rosto enormemente desfigurado por grandes pedaços de paus, que atravessavam no lábio inferior e nas orelhas; destarte, o lábio inferior fica muito projetado para a frente e as orelhas de alguns pendem como asas largas sobre os ombros...”
É de se convir que os botoques das fotos de Garbe eram menos assustadores e mais fotogênicos.
Desdobram-se ainda no naipe de fotografias de Walter Garbe diversos botocudos em atos do que seria o seu cotidiano natural, tais como transportando filho nas costas, tocando flautas, armados de arcos e flechas, simulando atitudes de combate e de caçadas, etc.
É uma coletânea em que o artista, ao invés de juntar os índios em estúdios fotográficos, decorados com falsos motivos botânicos, os contrapõe ao pano de fundo do meio ambiente que estavam acostumados.
Comparando-se, por exemplo, a foto dos índios bororós, produzida em estúdio por Marc Ferrez, em 1880, com uma da coleção de Walter Garbe (de 1909) de quatro botocudos tendo a floresta por décor (vide abaixo), pode-se avaliar o quanto se distanciam os dois fotógrafos, não só no tempo em que as imagens foram produzidas, como também na própria concepção de documentação cultural que a arte fotográfica pode ter.
Mais uma vez cabe aqui outra ressalva. Na comparação entre as fotos mencionadas, não tive o propósito de estabelecer nenhum demérito para Marc Ferrez, mas sim apontar a diferença na metodologia de trabalho de dois grandes fotógrafos que tiveram a iniciativa de fazer das imagens fotográficas documentos historiográficos.
Pessoalmente, suponho até que tenha sido muito mais difícil e complicado para Ferrez levar botocudos para dentro de um estúdio, como então se fazia e como ele fez com os onze nus que fotografou num posicionamento que faz lembrar o de um time de futebol, do que foi para Walter Garbe organizar os seus modelos em poses bem posadas em ambiente natural dos fotografados. Chego também a essa conclusão porque, ao examinar as duas fotos, faz-se evidente que os índios de Garbe são os que se postam mais à vontade diante da câmera, enquanto os bororós se apresentam literalmente hirtos, à exceção do que é visto sentado, no canto direito, que até parece controlar um mal disfarçado sorriso – e claro, sorriso de bororó.
E já que desci a essa minúcia de verificação, que se trace um paralelo entre o que parece ser um furtivo sorriso do bororó, com os sorrisos, também não menos sorrateiros, dos dois botocudos que, na foto de Garbe, se apresentam em posição mais elevada segurando suas flechas.
Devo esclarecer que não cheguei ao extremo de perscrutar se, na galeria de Garber, ele utilizou mais de uma vez algum de seus modelos indígenas. Dei-me, porém, a outra constatação: ao escapulir do estúdio fotográfico para o ambiente natural, Garbe quis chamar fotograficamente a atenção para o movimento inovador que realizou.
Sou levado a essa afirmação com base na semelhança (que não me parece mera coincidência) entre as duas fotos que se seguem, não só de igual motivação, como também de duas índias botocudos com seus filhotes às costas (ambas grávidas?), a primeira delas da autoria de Ferrez, tirada no sul da Bahia, em 1875, e a outra, de Garbe, no Rio Doce:
Pelo que tentei demonstrar nestas considerações, o documento fotográfico, interrogado em suas facetas historiográficas, é capaz de proporcionar revelações de cunho histórico, ainda mesmo que os seus autores não sejam movidos por tal intenção, o que não foi o caso nem de Marc Ferrez, nem de Walter Garbe.
Foi na companhia do pai, o naturalista alemão Ernest Garbe, que Garbe, também alemão e com 27 anos, conheceu, em 1906, os botocudos do vale do Rio Doce.
Certamente, não esqueceu o que viu e o atraiu, tanto que, entre março e maio de 1909, retornou ao Rio Doce e se lançou à missão que resultou na vintena de botocudos por ele retratados. Não se pode ter a menor dúvida de que conjugou, numa só visada, historiografia e arte fotográfica.
Referências
GARBE, Walter. Botocudos do Rio Doce. In EHRENREICH, Paul. Índios Botocudos no Espírito Santo no século XIX. Organização e notas Julio Bentivoglio, Vitória, APEE, Coleção Canaã, Volume 21, 2014. in https://ape.es.gov.br/Media/ape/PDF
NEUWIEDE, Maximiliano Wied de. Viagem ao Brasil. São Paulo : Companhia Editora Nacional, 1940
TACCA, Fernando. O índio na fotografia brasileira – Incursões sobre a imagem e o meio in https://www.ifch.unicamp.brpdf
WANDERLEY, Andrea C. T. Os índios sob as lentes de Walter Garbe, em 1909. in Portal Brasiliana Fotográfica, https://brasilianafotografica.bn.gov.br/?p=8567
EL PAIS https://www.google.com/search?q=yanomanis+contamiandos+por+malaria+&tbm=isch&ved=2ahUKEwi