Grande prazer sinto por me achar no meio de vós

Luiz Guilherme Santos Neves

Ao se tornar imperador do Brasil em 1842, em decorrência do chamado golpe da maioridade que pôs fim ao período regencial (1831-1840), Dom Pedro II se via com a incumbência de governar um país que ainda urgia pela completa pacificação nacional. Isso, quando ele tinha apenas 15 anos de idade, o que permite dizer que o golpe da maioridade tanto foi golpe para o Brasil, como para o jovem e inexperiente imperador.

        

Caracterizado por uma série de insurreições político-sociais que pipocaram de norte a sul do território brasileiro, o turbulento período regencial ainda legou aos primórdios do governo de Dom Pedro II o rabicho insurrecional da Guerra dos Farrapos (1835-1845). “Com grande mágoa vejo continuar a guerra civil que há tanto tempo aflige a província de S. Pedro do Rio Grande do Sul”, pronunciou-se o jovem governante na fala do trono de 3 de maio de 1841, ao abrir os trabalhos legislativos daquele ano. (*)

Era, pois, fundamental que o imperador assumisse desde a coroação o papel de unificador de uma pátria que estivera à beira da ruptura territorial pelos mais diferentes motivos. Um papel que somente passo a passo foi sendo conscientemente levado a efeito, o que não é de estanhar em face da menoridade com que o imperador assumiu a maioridade imperial.

De sorte que, quando Dom Pedro II veio ao Espírito Santo em 1860, em viagem que incluiu também outras províncias situadas ao norte do Rio de Janeiro, sede da corte imperial, não se deve desconsiderar que acalentasse a intenção de reforçar a integração nacional nas províncias onde essa integração se fazia necessária.

Aliás, foi o próprio imperador que, no encerramento da fala do trono de 11 de setembro de 1860 fez o registro da longa peregrinação realizada durante quatro meses ininterruptos ao norte do Brasil. Eis o que ele disse: “Para melhor conhecer as províncias do meu Império, cujos melhoramentos morais e materiais são o alvo de meus constantes desejos, e dos esforços do meu governo, decidi visitar as que ficam ao norte do Rio de Janeiro. Sentido que a estreiteza do tempo que medeia entre as sessões legislativas me obrigue a percorrer somente as províncias do Espirito Santo, Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco e Paraíba reservando a visita a outras para mais tarde.”

A alegação apresentada, ou seja, a necessidade de conhecer as províncias do Império cujos melhoramentos morais e materiais preocupavam o imperador, obviamente não encerrava toda a explicação para a missão a que ele se propusera. Em alguns casos (hipótese não aplicável ao Espírito Santo), problemas resultantes de divergências políticas locais motivaram a presença apaziguadora de Dom Pedro, lembrando que quem ia conhecer esses locais, reciprocamente se fazia reconhecido.  

Todavia, no que disse respeito ao Espírito Santo, a vinda de Dom Pedro tinha realmente o propósito de permitir o efetivo conhecimento da província capixaba nos quinze dias que se estenderam de 26 de janeiro a 9 de fevereiro de 1860. 

Esta quinzena não representou para Dom Pedro um tempo de “estreiteza” no cômputo geral de sua permanência nas províncias que visitou. De uma província para outra, houve variações de dias tanto que, na Bahia e em Pernambuco, a visita durou um pouco mais de um mês, enquanto na Paraíba, menos de uma semana. E, apesar de movido pela pressa, Dom Pedro pôde levar a cabo um roteiro que, em terras capixabas, incluiu sequencialmente Vitória, Vila Velha, Santa Leopoldina, Santa Isabel, Serra, Santa Cruz, Linhares, Guarapari, Rio Novo do Sul, Benevente (antes Reritiba, hoje Anchieta), para terminar em Itapemirim. Por sinal, foi em Itapemirim que se deu o retorno direto para o Rio de Janeiro, encerrando o périplo pelo norte do país.

É de lembrar ainda que era a cavalo ou em canoa que o imperador realizava seus deslocamentos pelos recantos das  províncias visitadas. Bastava que a distância fosse um pouco mais longa ou mais acidentada para que Dom Pedro não dispensasse uma boa montaria.

No Espírito Santo não foi diferente, exceto, talvez, em Vila Velha, onde tudo estava nos alvores e aonde, com rápidas passadas, se ia de um ponto a outro sem a menor dificuldade. Dir-se-ia que um grito dado na Prainha era, com vento favorável, ouvido na igreja de Nossa Senhora do Rosário.

Mas não foi no sítio histórico de Vila Velha que a visita de Dom Pedro começou no Espírito Santo. Ela teve início no cais das Colunas, em Vitória, nome logo mudado para cais do Imperador.

Vale mencionar que ao viajar para o norte do Brasil, não era a primeira vez que Dom Pedro se afastava da corte no Rio de Janeiro para ir a outra parte do país. Ele já tinha ido antes a São Paulo (Santos), e a Santa Catarina, por exemplo. Mas era a primeira vez em que realizou viagem tão demorada.

Para aqueles que nessa ocasião viram o imperador pela primeira vez, quer no Espírito Santo, quer nas demais províncias visitadas, perante eles não estava apenas um governante até então revestido de impessoalidade simbólica, mas alguém que o povo podia aclamar e beijar a mão, em solene ato de submissão e respeito. É até admissível que o próprio Dom Pedro tenha percebido que as homenagens calorosas que por toda parte recebeu – “testemunhos de amor e de fidelidade” como as definiu na fala do trono de 11 de maio de 1860 – foram dirigidas a quem se podia apontar e dizer com afável simpatia: ecce homo, imperador do Brasil.

Com 34 anos completados em 2 de dezembro de 1859, portanto pouco antes de chegar a Vitória, Dom Pedro juntava o título proeminente de augusto imperador e defensor perpétuo do Brasil ao porte garboso de homem alto, de cabelos e barba ruivos e olhos azuis, numa herança genética advinda da linhagem dos Braganças e Habsburgos. Era, pois, um indivíduo cuja figura humana reforçava a majestade do cargo que exercia.

Não sem razão, lê-se na magnífica obra de Levy Rocha, Viagem de Dom Pedro II ao Espírito Santo, prefaciada pela reconhecida competência do historiador Fernando Achiamé que, ao ir de Viana para colônia de Santa Isabel, Dom Pedro foi enfaticamente saudado por uma mulher que assim se expressou: “É o deus da nossa terra.”

Ao ouvir tais palavras ensopadas de emoção, bem poderia Dom Pedro ter repetido a frase com que abriu a fala do trono de 3 de maio de 1841: “grande prazer sinto por me achar no meio de vós.” Frase que, parodiada com o mesmo sentido de penhorado agradecimento, comportaria ser assim repetida pelo povo em cada província onde Dom Pedro esteve: grande prazer sentimos por vos achardes no meio de nós.

É claro que a agradecida saudação ao imperador não abrangeu a solução de problemas e dificuldades que as províncias brasileiras enfrentavam, cada uma delas com suas peculiaridades regionais. Até mesmo se agradecimentos couberam quando o célebre bolsinho imperial foi acionado, não chegaram a constituir motivo para euforias grandiloquentes.  

Há, porém, outro gênero de agradecimento a ser creditado a Dom Pedro II por historiadores da envergadura de Levy Rocha e de Fernando Achiamé, para ficarmos apenas no caso do Espírito Santo. Trata-se de reconhecer e proclamar a importância historiográfica do manancial de informações contidas no diário de viagem que o imperador escreveu.

É por meio do diário que se pode apreender, por exemplo, o interesse de Dom Pedro em conhecer as interioranas localidades que ele visitou no Espírito Santo, as gentes que as habitavam, seus costumes e tradições, além das condições materiais, quase todas embrionárias, em que as localidades se encontravam. Pode-se ainda identificar o valor iconográfico do diário pela comparação com diversas outras fontes históricas (gravuras, pinturas, fotografias) que retrataram o Espírito Santo no período monárquico. Ademais, a existência do diário permite conhecer aspectos particulares da personalidade do imperador, da forma como ele tratava as pessoas, do olhar irônico que deixou transparecer em muitas observações, bem como dá ainda ciência da atenção que ele dispensava às populações dos lugares que visitava, em especial em relação aos povos indígenas e seus idiomas, dos quais até vocabulários chegou a organizar.

Não bastasse toda essa carga informativa há, no diário de Dom Pedro, registros a serem enfatizados sob o aspecto do conhecimento histórico.

É o caso, por exemplo, da informação sobre a “casa de vivenda e senzalas” (e se havia senzalas, havia negros escravizados) que integravam a fazenda Boa União, que Dom Pedro conheceu em Linhares como sucessora da fazenda Bom Jardim, de João Felipe Dupin de Almeida Calmon.

Foi Felipe Calmon quem fundou em 1809 a primeira fazenda no rio Doce em cuja margem direita ele se estabeleceu vindo do sul do Espírito Santo, acompanhado da família e de trabalhadores escravizados. Sem essa mão de obra teria sido impossível desbravar produtivamente a região de Mata Atlântica ainda inexplorada. Este fato marca, de acréscimo, o advento do escravismo negro no baixo rio Doce, uma força de trabalho que foi gradativamente aumentada com a subsequente chegada de mais colonizadores. 

Outra contribuição de Dom Pedro para o conhecimento dos princípios de Linhares é o desenho da vila em estilo de croquis, bem característico do modo de desenhar do imperador, por ele várias vezes empregado na reprodução, à mão livre, de figuras e de paisagens nas páginas do diário.

Aos esboços que fazia, Dom Pedro costumava acrescentar referências complementares, escritas com letras miúdas, mas legíveis. No caso do desenho de Linhares, escreveu Dom Pedro: “5 de fevereiro de 1860, Linhares vista da parte superior subindo pela margem esquerda.”

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O desenho deixa claro que em 1860 – portanto, cerca de cinquenta anos depois de fundada – a vila de Linhares, quando nada na perspectiva captada por Dom Pedro, mantinha-se relativamente anêmica em seu desenvolvimento, reduzida a algumas casas em torno de uma igreja, situadas no alto de um barranco à beira do rio Doce.  

Graças a registros como este é possível se aquilatar a importância historiográfica do diário de Dom Pedro, em relação à viagem ao Espírito Santo. Por conseguinte, não seria pedir muito que também os historiadores capixabas engrossassem o coro dos agradecimentos ao imperador pela prodigalidade de informações históricas contidas no seu diário, dirigindo ao autor uma aclamação mais do que merecida: Ave, Dom Pedro II!

(*) Falas do Trono, Senado Federal, Brasília, 2019, volume 269, https://www2.senado.leg.br/bdsf.pdf

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