François Biard, primeiro
caricaturista do Espírito Santo

Luiz Guilherme Santos Neves

De 1858 a 1860, o pintor francês Auguste François Biard percorreu várias partes do Brasil. Dessa visita resultaria a publicação do livro Deux Annés au Brésil, no qual Biard descreve suas impressões de viagem, recheadas com croquis de sua lavra, ilustrados por Édouard Riou, renomado ilustrador daquela época. 

As impressões são destituídas de qualquer compromisso com a informação descritiva e histórica, diferentemente do que fizeram vários outros viajantes que estiveram no Brasil e no Espírito Santo, no século XIX.

Desta forma, a indiferença de Biard para com a informação historiográfica marca toda a sua narrativa, na qual ele pontifica como protagonista principal, denominador comum das peripécias e aventuras em que se meteu. Importava-lhe, como regra geral, aquilo que lhe tocava individualmente afetando o seu trabalho ou repercutindo sobre o seu temperamento inequivocamente egocêntrico.

É dentro desse enfoque que ele dedica ao Espírito Santo os capítulos III e IV do seu livro, cobrindo o período de 2 de novembro de 1858 a 12 de maio de 1859.

Publicados pela Cultural-ES, deram origem ao livro Viagem à Província do Espírito Santo, que inclui os trinta e nove desenhos em preto e branco com que o pintor documentou sua passagem pela terra capixaba. 
Biard era um pintor com notória fama de retratista cuja ascensão na Europa se verificou no governo do rei Luís Felipe I, a quem pintou mais de uma vez. Para alguns historiadores, sua vinda ao Brasil se deu para pintar retratos da família imperial. Mas ainda que tenha desempenhado essa missão, a visita à terra brasileira foi motivada, realmente, pelo seu confessado interesse em conhecer regiões exóticas, onde desenvolvia sua arte e a mania de colecionar espécimes de animais que dissecava para a realização de pesquisas naturalistas.

A viagem ao Espírito Santo prendeu-se ao interesse de Biard em pintar os índios da então província, razão pela qual, com tintas e pincéis e enfrentando os maiores obstáculos e desconfortos, acabou se embrenhando nas selvas de Santa Cruz para levar avante o seu objetivo. 

Do total das gravuras que fixam as cenas por ele colhidas, dezessete são intencional e visivelmente humorísticas. Isso faz dele o precursor da caricatura no Espírito Santo, ainda que se trate de um estrangeiro.

Aliás, o traço divertido das gravuras se coaduna com o estilo humorístico e irônico que predomina em toda a sua narrativa, constituindo marca pessoal do autor, inclinação natural por ele reconhecida expressamente em seu livro. Tanto que, ao se deparar com a pujante mata atlântica de Santa Cruz, escreveu que “o lado ridículo” do que tinha visto até então “dava lugar a pensamentos graves, a um recolhimento quase religioso”, o que representou uma ruptura no andamento sempre risível de sua narração.  

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Os croquis caricaturistas de Biard sobre o Espírito Santo começam com a sua chegada à baía de Vitória. O primeiro deles tem por motivo a bandeira imperial - onde não falta sequer o emblema da Coroa -, aberta ao vento numa extensão tal que quase se iguala ao tamanho do forte de São Francisco Xavier da Barra, o que Biard atribuiu a uma “ilusão de ótica”; a última caricatura mostra o pintor com o semblante estupefato diante do seu chapéu de abas largas onde uma galinha se aninhou e pôs um ovo.

E os outros croquis?  

Versando os ataques mortificantes que sofreu dos enxames de mosquitos e maruins enquanto pintava suas telas no meio da mata, nada menos do que quatro caricaturas mostram os frustrados meios de defesa a que Biard inutilmente recorreu contra os terríveis insetos.

Na primeira gravura, ele se desenha sentado numa cadeira de armar com a tela da pintura apoiada nos joelhos, tendo ao lado uma fogueira, na vã tentativa de espantar a nuvem de mosquitos que o atormentavam e que também resistiam à fumaça do charutão que tinha na boca. Duas outras caricaturas da mesma série de combate aos mosquitos reproduzem hilariantemente o uso de um cortinado improvisado que Biard inventou para poder pintar em paz.  Numa delas, ele está dentro do cortinado, armado sobre quatro estacas, dando a impressão de se encontrar preso numa jaula de onde, nem assim, escapa à sanha dos agressivos atacantes; no outro desenho, mais divertido ainda, o cortinado protetor cai das abas do chapéu do pintor até o chão, cobrindo inteiramente o seu corpo como um véu de noiva. “No lugar dos olhos fiz dois buracos cercados com uma fita de arame para colocar os óculos; acrescentei a esse aparato duas velhas saias que me desciam até bem abaixo dos pés e que eu podia dobrar”, descreve Biard seu novo baluarte de artista. 

A quarta caricatura, da mesma série, mostra o desespero do pintor caído de costas no chão, a perna esquerda erguida para o alto, o chapéu voando da cabeça depois de haver dado um tapa num maringuim que se introduzira entre seus óculos e o olho esquerdo, acabando por motivar a sua queda.

Em outra passagem do livro, ao mencionar os males causados pelo bicho de pé, tão comum no Brasil, Biard esboça uma caricatura em que ele é atendido por uma jovem que, toda encurvada e à luz de uma vela, cata “com um alfinete e um canivete” os ovos do pulex penetrans depositados sob as unhas dos pés do pintor. Ao mesmo tempo em que é socorrido pela improvisada enfermeira, o desenho apresenta Biard se defendendo a braçadas contra um bando de mosquitos que o ataca na choça em que vai passar a noite.

Vê-se assim o quanto foi recorrente em suas caricaturas o tema do combate à praga dos insetos nocivos mediante expressivos flashes de um Espírito Santo ainda selvagem e germinal.

Mas não só de insetos se alimentou o acervo de caricaturas de Biard. Sapos, caranguejos, lagartos, onças, perus, cobras, formigas devastadoras, quase todos em traços exagerados frequentaram os seus croquis, haja vista que num deles um caranguejo, que Biard suspende no ar preso a um cipó, vai do seu joelho até a altura do seu peito!

E dos índios que veio pintar no Espírito Santo, como aparecem em suas gravuras?

Em relação a eles, o desenhista cede lugar ao retratista que abranda o tracejado irônico na reprodução dos modelos copiados. São ao todo sete retratados: cinco homens e duas mulheres, apresentados da cintura para cima.

A leveza e quase pureza com que os bustos das índias são delineados chega a ser romântica. Uma delas exibe seios de escultura grega, o que denota uma singular condescendência estética de Biard quando a desenhou. Até onde estaria sendo fidedigno? 

Fica no ar a pergunta à espera de uma resposta. 

 

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