Guaraparim, como se chamava então, era uma povoação de pescadores, nada mais que isso. “Quase toda a gente, que é pobríssima, me cheirava a peixe”, escreveu o bispo José Caetano da Silva Coutinho nos idos de 1812, quando por lá esteve em viagem pastoral. Além do peixe, o prelado apurou que o lugar tinha ares muito ventilados, boas águas, horizontes largos, e fama de saúde.
Em 1862, Brás da Costa Rubim anotaria, no seu Dicionário Topográfico da Província do Espírito Santo, que a vila de Guarapari ficava no lado sul do porto do seu nome, em posição elevada, pitoresca e sadia. Repetia assim a correlação feita por Brás da Costa Rubim com o lugar saudável que já então chamava a atenção de quem o conhecia.
Setenta e cinco anos se passaram desde Brás Rubim com Guarapari - já sem o m da antiga denominação - dormitando mais para vila do que para cidade em posição elevada e pitoresca.
Em 1937, num golpe de sorte do acaso, Antônio da Silva Mello, nascido em Minas Gerais, especializado em radioatividade no Instituto de Radium de Berlim, doutor em reumatologia, veio parar em Guarapari. Teria sido soprado pelos bons ares ventilados de que falou o bispo Caetano?
Tão surpreendido ficou com as praias maravilhosas que descobriu – “maravilhosas pelo mar, o clima, a paisagem e, sobretudo pelas suas areias radioativas, únicas no mundo” – que não só voltou várias vezes, como escreveu o livro Guarapari, maravilha da natureza.
A visão de Silva Melo concentrava-se, principalmente, no emprego das areias monazíticas para a cura do reumatismo. Sobre o tema, publicou artigos e fez conferências versando o poder das areias milagrosas, que atuavam a custo zero em benefício da saúde. Bastava que com elas os doentes besuntassem o corpo na praia da Areia Preta, rica em monazita e ilmenita, para combater as dores reumáticas e se sentirem renovados. Simples como um banho de sol estirado na praia, com a vantagem de se ficar em êxtase contemplativo diante do mais azul de todos os mares azuis da costa capixaba.
Está visto que Silva Mello não foi o primeiro a perceber as virtudes naturais que fariam da ex-Guaraparim a cidade saúde do Espírito Santo. Mas foi ele quem trombeteou a plenos pulmões as saudáveis qualidades com que Guarapari foi brindada pela natureza. Foi mais longe ainda ao denunciar a extração indiscriminada das areias monazíticas, exportadas com objetivos estratégicos para países estrangeiros sob a tolerância do governo brasileiro. Previu também as consequências perniciosas da especulação imobiliária que se abateria inapelavelmente sobre Guarapari devido ao crescimento do turismo provocado pelo seu mar azul e farto e por suas areias ricas de saudável terapêutica.
Essas transformações ganhariam ímpeto a partir da década de 50, com a construção da ponte sobre o canal do porto e a concessão, ao italiano Alberto Bianchi, do Rádium Hotel que o Estado havia construído na praia da Areia Preta para ser escola naval. Antes da ponte, a travessia para Muquiçaba era feita em barcos e na balsa que transportava veículos. Ah, sim, insira-se aqui um registro de memória pessoal: por essa época ainda perdurava o uso de tamancos de madeira quando os turistas iam à praia, antepassadas das sandálias bambolês.
Mas hotéis já existiam. Nenhum, porém, com os requisitos que o Rádium passou a oferecer, cuja denominação remetia às potencialidades salutares das areias monazíticas, muito embora o hotel tivesse também funcionado como cassino durante vários anos. Aliás, sobre o cassino vale invocar o depoimento do sr. Antônio Vieira, que trabalhou no Radium, e que me foi legado pelo historiador Renato Pacheco, um apaixonado por Guarapari. Eis o teor resumido da entrevista: Guarapari 28 de março de 2002. O entrevistado começou a trabalhar no Radium Hotel em outubro de 1953. A inauguração foi em 8 de dezembro de 1953, dia de Nossa Senhora da Conceição e da cidade. O prédio era do Estado que o arrendou a Alberto Biachi. Primeiro gerente: Manuel Jantzen Fom. Outros servidores: o motorista Libonati, o almoxarife Ângelo Forastieri e o chefe de cozinha Ovídio Chagas. O Cassino (clandestino) funcionou desde antes da inauguração oficial. Como a luz (da cidade) era desligada às 22 horas, os jogadores prosseguiam com lampiões. O contrato com Bianchi, de 10 anos, findos os quais as benfeitorias passariam para o Estado, foi prorrogado por Hélcio Cordeiro, por mais dez anos, em dezembro de 1961. Em dezembro de 1968, Christiano Dias Lopes, então governador, tomou o hotel na marra. Havia 18 apartamentos, 30 quartos e o sótão chamado república, sem divisões. Mais tarde ficaram 49 apartamentos, inclusive a suíte do Governo do Estado, eliminando-se os quartos. O período áureo de funcionamento do Radium estendeu-se até 1963, e o cassino funcionava de acordo com a maior ou menor complacência das autoridades. No Cassino havia bacará, campista, roleta, street flash, este um jogo violentíssimo de que participavam poucas pessoas. Os jogadores chegavam sexta-feira à tarde e saíam segunda-feira de madrugada. Silva Mello ficou duas temporadas no Radium, mas preferia um hotel mais modesto, o Guarapari. Inicialmente, além de estudar as areias pretas, ele fez um pequeno estudo sobre a longevidade de três centenárias irmãs, que moravam perto do Canal, na rua das Bonecas. Uma vez ele disse, no Hotel, que o asfalto tirava a radiotividade das ruas. Nessa época ele trouxe americanos e o padre Xavier, da PUC do Rio, que estudaram os pendores curativos das areias monazíticas. Na Semana Santa, eram dadas de 40 a 50 “cortesias” para pessoas gradas virem comer torta capixaba no Radium Hotel.
Como se vê a ligação congênita de Guarapari com o peixe permanecia íntegra, como ainda permanece atualmente apesar de todas as transformações por que a cidade passou, inclusive com sua população não mais trescalando a peixe, como antigamente.