Chove, chuva

Luiz Guilherme Santos Neves

A velha recorrência às procissões petitórias de chuva, lídima herança que chegou ao Brasil via Portugal, foi sendo gradativamente abandonada e esquecida nos grandes centros urbanos brasileiros, tornando-se tradição ultrapassada e até excêntrica.

Não sei se o desaparecido costume ainda persiste em algum rincão do interior brasileiro. Mas, em tempos idos e carcomidos, teve ele presença constante sempre que se instaurava a necessidade de se rogar aos céus e aos santos que fizessem chover a chuva bem-vinda para extinção das secas prolongadas, com suas consequências trágicas, dentre as quais se impunha a falta de alimentos de que se ressentiam as populações afligidas pela escassez das águas da fertilidade.

No Espírito Santo tem-se registro histórico de algumas dessas procissões do chove-chuva em momentos de secura pluvial. Talvez a seca de conhecimento popular mais difundido entre nós seja a de 1769, cuja superação faz parte do repertório de milagres atribuídos a Nossa Senhora da Penha quando da trasladação da sua imagem, feita em procissão do Convento em Vila Velha para o de São Francisco, em Vitória, o que provocou o temporal rogado e desejado.  

O pintor paulista Benedito Calixto (1853-1927), dentre as obras que o inspiraram sobre o lendário da Penha, deixou-nos majestoso quadro dessa trasladação. O quadro, bastante conhecido, reproduz o momento do desembarque da imagem da santa em Vitória, trazida de Vila Velha em embarcação engalanada com bandeirinhas coloridas.

O séquito é numeroso. Nele predominam sacerdotes e gente que se poderia dizer da melhor qualidade social, com trajes típicos da época.

No Poema Mariano, discutivelmente atribuído a Domingos Caldas Barbosa, o autor, referindo-se ao cortejo de 1769, parece ter composto a estrofe LXXVIII admirando a tela de Calixto:

Para o comprido cais logo se apressam
Juízes, escrivães, vereadores,
Bandeiras e pendões, cruzes e guias,
Ordens religiosas e confrarias.

Ou teria sido o pintor que se baseou no poeta?

De se observar, porém, que na estrofe seguinte, o autor do poema se distancia do quadro do pintor, ao versejar que

A turba universal com geral gosto
Em tão vasto terreno está coalhada.

Chama, porém, a atenção na tela de Calixto não só a quase nenhuma presença de mulheres, como a total ausência da “turba universal”, vez que não se pode tomar como representante do povo o humilde personagem sem camisa que aparece de costas no primeiro plano da pintura como se estivesse abismado com o que tinha diante os olhos.

Nesse sentido, o quadro contraria o tradicionalismo da participação multitudinária do povo nas procissões em que se davam os desesperados apelos às chuvas fecundantes – povo bom e piedoso que certamente não faltou ao cortejo de Nossa Senhora da Penha.

Em sua História do Espírito Santo, lembra Maria Stella de Novaes que a trasladação da imagem da padroeira dos capixabas teria sido motivada pelo perene verdor da matinha do Convento, opostamente à seca escorchante que reinava sobre Vitória. É de se presumir que, enquanto a matinha sobressaía plena de verde-vivo, as matas dos morros de Vitória se apresentavam esturricadas pela seca, num contraste agressivo com o que ocorria no morro do Convento. 

A mensagem extraível dessa comparação dava, pois, a entender que a ida da imagem de Nossa Senhora da Penha até Vitória seria a mezinha excelsa para que as chuvas bonançosas desabassem copiosas sobre a vila-sede da Capitania com as bênçãos da padroeira. 

Cabem aqui algumas reflexões oportunas: qual a necessidade de se transferir do Convento da Penha para o de São Francisco a imagem de Nossa Senhora?  Por que não realizar uma procissão rogatória restrita a Vila Velha? Ou será que os efeitos milagrosos dos poderes da santa somente resultariam eficazes com a realização de uma pomposa procissão marítima que atravessasse o canal da baía de Vitória?

Creio que as respostas para tais questões estejam no livro Anúbis e outros ensaios, do enciclopédico Luís da Câmara Cascudo. Nesta obra, no capítulo VI, Ad Pedentam Pluviam  – por sinal dedicado ao folclorista Guilherme Santos Neves –, ensina-nos o mestre potiguar: “Um dos remédios tradicionais, tão popular com Santo Antônio, é a retirada de uma imagem do seu altar e posta noutro ou mesmo noutra igreja distante. Só será restituída para o seu lugar quando atender aos pedidos.” Mais adiante, escreve Cascudo: “São invocados [para fazer chover] os oragos locais, preferencialmente São João Batista, Santana, São Benedito, São Sebastião, as várias formas de Nossa Senhora...”[grifei].

A se caminhar sobre as pegadas de Luís da Câmara Cascudo, a trasladação da imagem da Senhora da Penha para Vitória teria sido uma forma, embora solene e aparatosa, de se coagir a sua intervenção para estancar a seca de 1769.  Caso contrário – e a dedução é implicitamente clara – a imagem de Nossa Senhora da Penha estaria condenada a permanecer no convento de São Francisco, ainda que o sentido punitivo dessa constrição escapasse ao geral entendimento da gente do povo.

Dentro deste prisma vê-se que por baixo dos apelos processionais para pedir chuva – o Ad Pedentam Pluviam, de Câmara Cascudo – prevalecia um desafio encoberto dirigido ao oráculo invocado que, se fosse desconsiderado, redundaria em punição indesejável.
É o caso de se dizer, numa licença conclusiva: ainda bem que Nossa Senhora da Penha entendeu a ameaça que pairava sobre a sua imagem e fez chover a chuva que choveu em chuvarada sobre a Vila de Vitória, no ano da desgraça de 1769.

Neste verão de 2020, em que tempestades destrutivas têm desabado sobre o nosso Estado, não valeria a pena tentar uma inversão de invocação a Nossa Senhora da Penha, deslocando a sua imagem de Vila Velha para o convento de São Francisco, em Vitória, para rogar rogando em procissão a cessação dessa catástrofe bíblica? 

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