Bilros que fazem arte

Luiz Guilherme Santos Neves

Esta almofada me mata,
estes bilros me consomem;
os alfinetes me espetam,
a renda me tira a fome.

São apenas quatro versos, tirados do cancioneiro de trovas populares do Espírito Santo. No entanto, definem com eloquência versificada a sina das antigas rendeiras capixabas no tec-tec diário dos bilros de madeira do seu delicado e exaustivo ofício artesanal, herança que veio de Portugal.

Pelo que me consta, essas rendeiras tradicionais constituem espécie de artesãs na borda da extinção, conquanto, à custa de esforço pessoal e persistente dedicação, algumas sobrevivam heroicamente em raras localidades do Estado.

É o caso das rendeiras da colmeia cultural que é a Barra do Jucu, em Vila Velha. Dessas tomei conhecimento graças a um artigo (1) que me enviou o artista Kleber Galvêas sobre o seu querido reduto barrense. Marilena Soneghet, artesã literária que faz literatura com a sensibilidade de quem tece os bilros das suas crônicas com incomparável mestria, e que também se naturalizou barrense, confirma Galvêas: “Aqui na Barra, a Regina Ruschi fundou há alguns anos o Museu Vivo, que resgata tradições locais. Uma delas, a renda de bilro. Nas décadas de 40, 50, a Barra era um polo de rendeiras. Dessa turma só vivem duas, ambas com idade muito avançada”. De lambuja ainda cita, num segundo e-mail, os nomes de Enedina França de Paiva – “exímia rendeira, muito idosa, vive reclusa, extremamente tímida” – e Rosa Leão Malta.

No vídeo As rendeiras e o resgate da cultura na Barra do Jucu, da autoria de Marcel Carone, facilmente visitável na Internet, passo também a conhecer dona Julia Ferreira, da qual reproduzo close-up de suas habilidosas mãos em pleno manuseio dos bilros:

É incontestável que as velhas rendeiras do Espírito Santo, incansáveis Ariadnes na criação de rendilhados caprichosos e labirínticos, resistiram, enquanto puderam, ao embate com a tecelagem industrial que decretou, junto com o desinteresse das novas gerações pela prática do ofício, o fim de uma tradição manual que se fez muito para além de centenária, na zona litorânea do Estado.

Mas se por acaso ainda sobreviverem rendeiras em terras capixabas tecendo rendas com seus bilros lustrosos pelo constante manuseio diante de gordas almofadas com forro de palhas de bananeira, proclamo – e com satisfação o faço – a falha do meu conhecimento.   

Pessoalmente, vi rendeiras infatigáveis pautando a vida pela guia das rendas nas praias de Nova Almeida, Manguinhos, Guarapari (especialmente em Meaípe) e Anchieta. Muito mais, conheceu-as meu pai, Guilherme Santos Neves, apaixonado pelas coisas do folclore capixaba que as estudou à larga e documentou a fundo, como demonstra a foto que tirou em 1952 de uma rendeira de Guarapari. 


O ofício se revestia de características especiais: trabalho manual, tipicamente feminino e doméstico, transmitido através de gerações de mãe para filha, dentro de um mesmo grupo familiar.  Favorecia sua difusão a abundância de algodoeiros no Espírito Santo, pois, na forma tradicional, a própria rendeira fiava o algodão de que ia necessitar em sua atividade artística.

O resultado era infalivelmente primoroso: toalhas, panos, paninhos e babados de renda de vários tipos, todos de extrema brancura e leveza, utilitários e ornamentais, vendidos em feiras ou nas casas das próprias artesãs.

Infalível também era o reconhecimento dessas casas, fosse pela fama das rendeiras, que corria terras, fosse porque, a uma simples visada no cômodo de entrada dos seus casebres, normalmente pobres e modestos, ali se viam as rendeiras entregues ao paciente manuseio dos bilros de madeira, ou, quando ausentes, lá estava o almofadão em que as rendas eram tecidas, posto num canto com o respeito devido a um paxá.

Só não ficavam à mostra, porque guardadas como tesouros pessoais de cada artesã, as guias de papelão pelas quais teciam seus arabescos rendados como navegantes conduzidas por secretos portulanos ciumentamente protegidos nos esconderijos domésticos.

Voltemos no tempo.

Diversos são os registros documentais que repicam do século XIX até nós focalizando as rendeiras do Espírito Santo.

Um deles, da autoria da norte-americana Júlia Louisa Keyes, data de 1867, e tem como localização a cidade de Vitória.

Júlia veio com a família para o Espírito Santo em busca de melhores condições de vida, depois do revés que os confederados do sul sofreram com a Guerra de Secessão de 1862 a 1865 nos Estados Unidos.

No diário sobre seus tempos de Brasil, registrou que, ao passar com a família por Vitória, a caminho do rio Doce, “alguns foram atraídos ao verem mulheres fazerem renda, sobre almofadas, o que era feito com grande destreza, usando inúmeros alfinetes e bilros. Esses bordados e pontos eram realmente belos e as senhoras usavam-nos para adornar seus vestidos. Suas fronhas são abertas em cada ponta, com um laço na borda da bainha. Garotinhas de todos os tamanhos têm conhecimento dessa arte e usam os alfinetes e bilros de forma tão ágil quanto suas mães, e as classes mais pobres fazem-na e a usam em grande quantidade. Descobrimos o artesanato como uma característica do sexo frágil, e nos surpreendemos com a beleza de seu trabalho com a agulha, em casas completamente desprovidas de luxo e escassas em conforto.” (2)
Bilros07

Seis anos antes da “descoberta” que encantou Júlia Keyes, o pintor francês François Biard registrou em seu livro Dois anos no Brasil que, ao passar por Vitória, entrou em várias choupanas onde moravam índios que o informante considerou bastante civilizados, tendo deparado, em quase todas, com mulheres que faziam rendas de bilro.

Por sua vez, o ilustre naturalista Augusto de Saint-Hilaire, quarenta anos antes de Biard, dá notícia, na obra em que trata da sua viagem ao Brasil, de que as mulheres do Espírito Santo (sempre elas) dedicavam-se à tecelagem do algodão, sendo que a maioria fazia rendas.

Diante de tais testemunhos, não é descabido supor que os três informantes tivessem até ouvido os versos da quadrinha das rendeiras, entoados, talvez, com o coro das “garotinhas de todos os tamanhos”, durante as entorpecidas horas do “tectecqueante” trabalho a que se dedicavam dedilhando bilros fio a fio, na fieira dos seus dias de artesãs infatigáveis.    

(1) “Cultura barrense: pequeno inventário”.

(2) KEYES, Julia Louisa. Nossa Vida no Brasil: imigração norte-americana no Espírito Santo 1867-1870. Vitória : Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.

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