- Eita, que diabo!
Foi de repente. Papai, que instantes antes estava debruçado sobre mim dando orientações sobre aproximação de pouso, voltou de imediato para a sua poltrona traseira. Em fração de segundo golpeou o manche do avião para o lado esquerdo, levantou a asa direita e vimos a chaminé da Fábrica de Bombons Garoto passando a poucos centímetros da ponta da asa do monomotor do Aeroclube do Espírito Santo.
Foi, segundo ele disse depois, quando já estávamos pousados na pista do Aeroclube, que ficava no bairro da Glória, em Vila Velha, um golpe de vento de través. Era uma aproximação serena, tranquila, em um Piper J-3 que servia para instrução de voo. O avião entrou na reta final e eu, que estava na poltrona da frente, disse ao “comandante” Nelson para fazer o pouso. Não se sentia à vontade nesse caso. Foi então que ele se debruçou para a frente no intuito de mostrar que a manobra era fácil e, numa fração de segundos, fomos pegos pela rajada de vento que vinha da esquerda para a direita.
Explico: naquela época a aproximação de pouso no Aeroclube, quando era feita por cima do bairro da Glória e atravessando a Rodovia Carlos Lindenberg antes de alcançar a pista, fazia o avião passar próximo da chaminé principal da Garoto. Não tão próximo que desse para assustar. Não tão distante que pudesse deixar o piloto totalmente relaxado. Mas meu pai ficou. Tanto que resolveu dar uma última instrução antes de assumir o comando e, voltado para frente, soltou o seu manche (que é o volante do avião) por um segundo. Apenas o tempo suficiente para a orientação. E eu prestava atenção. Então, vinda do nada, a rajada de vento nos pegou e jogou o J-3 em direção à chaminé.
Foi por uma fração de segundos que o pequeno monomotor não atingiu em cheio a construção de tijolos. Com o golpe no manche para a esquerda, o velho Nelson trouxe o seu avião de volta ao curso, mas não sem passar “lambendo” a chaminé. Se houvesse o choque ele teria morrido juntamente comigo, seu filho na época com 15 anos. Possivelmente a gente mataria mais alguma pessoa, pois o aparelho desabaria contra o solo numa região que já era então muito povoada. Mas nada disso aconteceu.
Quando a gente pousou – e parece que ninguém viu o aperto que passamos – e taxiamos em direção ao ponto de estacionamento, recordo-me de que papai estava um pouco lívido. Ele havia cometido a imprudência de soltar o manche numa manobra de pouso de um avião que não era automático em coisa alguma. Descemos, fomos até a lanchonete tomar um refrigerante, conversar com pilotos amigos que estavam no aeroclube e entregar o J-3 para sua finalidade específica de instrução de voo a alunos de curso de piloto privado.
Depois de algumas horas, quando estávamos na lanchonete do aeroclube, vi papai colocando o braço sobre meu ombro e dizendo: “Não comente o que houve”. Fiz isso. Algum tempo depois, quando pegamos o carro para voltar ao Centro de Vitória, pois estávamos na casa de minha avó materna localizada na Rua Francisco Araújo, novamente o velho Nelson olhou para mim, sorriu e disse: “Não conte para sua mãe!”
Para quem não conhece, nos idos de 1960, 1970, os aviões mais usados em instrução de voo nos aeroclubes do Brasil eram o Pipe J-3, o PA-18 ou então o CAP-4, esse último montado no nosso país e que voou por décadas. Altamente confiável, era e é conhecido pelo nome de Paulistinha. Hoje nenhum desses modelos é mais “homologado” pela ANAC, o que significa dizer que recebe atestado de grau de confiança e atende aos requisitos estabelecidos em regulamentos internacionais de aviação. Tecnologicamente ultrapassados, eles são classificados como “ultraleves”, ou aviões para “aviação esportiva” e que ostentam na cabine, bem ao lado da poltrona do passageiro, uma placa com os dizeres: “Avião experimental. Voe por sua conta e risco”.
Muita coisa mudou desde então. Hoje, no Aeroclube do Espírito Santo, e que também é chamado como Aeroclube da Barra do Jucu, ainda existe um Paulistinha. Voando! Um dos J-3, que virou peça de museu depois de formar centenas ou talvez milhares de pilotos, está aposentado na sala de memória construída para lembrar os muitos anos de vida da instituição fundada em 1939 e que já teve sede no Aeroporto de Vitória e na Glória. O velho PP-TKR (seu nome é papa-papa-tango-kilo-romeo) espera os visitantes todos os dias no mesmo lugar.
Os modelos usados para instrução de voo são modernos, dotados de alguns instrumentos digitais e poltronas lado-a-lado. O aluno fica junto ao instrutor e não à frente ou atrás dele, como era antes. Assim ele aprende no curso de piloto privado, que corresponde a motorista amador. Se quiser seguir em frente, pode fazer curso de piloto comercial, que corresponde a motorista profissional, mas aí já em bimotores e com custo bastante elevado.
Muita gente acha que em aeroclubes existem apenas milionários que possuem aviões de pequeno ou médio porte. Nada mais errado. Os milionários são a minoria nesse universo. A maioria é constituída por pessoas de classe média ou classe média alta e que são apaixonadas por aviões. Muitos gastam boa parte de sua renda para sustentar a paixão que nasce, vive e morre com eles. Nunca o abandona e nem o inverso.
No Aeroclube do Espírito Santo de hoje a estrutura montada ao longo dos anos – a nova sede foi comprada em 1984 – permite que o associado tenha todo o conforto. Há um hangar de manutenção que originariamente era o único, vários outros para guarda de aviões que estão sediados no lugar – um deles serve apenas a aeronaves do clube – e ainda dez hangares individuais para donos de aviões que os puderam comprar e montar. Comprar é maneira de dizer, porque esses espaços continuam pertencendo à instituição e seus ocupantes pagam mensalidade para permanecer lá. Só têm o direito de negociar a posse com outra pessoa caso queiram abrir mão do seu espaço.
Voar é tudo o que os amantes dessa prática querem. Para os aviadores, existem os aviões de asa fixa e os de asa rotativa. Esses últimos são os helicópteros. Alguns dos pilotos também são adeptos do paraquedismo, como é o caso do promotor público Clóvis Figueira. Ele, que conheceu a esposa saltando, até hoje eventualmente pratica “queda livre, o que adora fazer, mesmo já tendo passado da faixa dos 70 anos.
Isso não é pouco em termos de quem frequenta regularmente o “campo de aviação”, mas é pouco em relação a Alfredo Silva, o Chevrolet, que ainda vai quase todo final de semana ao encontro de sua “cachaça”, isso aos 88 anos de idade. Não pode mais renovar seu brevet em função desse fato, mas não consegue se afastar do lugar onde passou sua vida.
Um dia, por exemplo, ele decolou com um avião do Aeroclube e, de repente, a fixação do montante se soltou. Montante é aquela haste que sai na parte de baixo do monomotor de pequeno porte e sobe até a asa, ajudando na fixação desta ao corpo da aeronave, além de transportar os cabos que vão movimentar flaps e ailerons. A soltura do montante, que até hoje Chevrolet considera como tendo sido um ato criminoso, deixou o pequeno avião em vias de desabar sem controle contra o solo. O piloto conseguiu manter a asa mais ou menos afixada à aeronave, perdeu altura e conseguiu chegar ao solo em condições de salvar a própria vida. “O perito da FAB que examinou o que sobrou do J-3 no chão me disse que eu sou um bom piloto, mas que também tenho muita sorte...”
Clóvis, por sinal, também não pode reclamar da sorte. Seu ultraleve teve um apagamento de motor numa decolagem, ele tentou voltar à pista com vento de proa, como deve ser, mas tocou a ponta da asa no chão na última curva. O resultado foi quebrá-lo todo, por sorte sem danos físicos. Sobrou ele o Barão Vermelho, réplica do caça com o qual o conde Von Richtofen lutou na primeira guerra mundial, e que ele construiu em seu hangar individual do Aeroclube e com o qual voa de vez em quando.
O amor por modelos antigos também é comum em aviadores. No Centro de Memória do aeroclube está intocado o PP-TKR, já descrito. O último remanescente dos primeiros oito aparelhos que a instituição recebeu em 1942, quando herdou no Aeroporto de Vitória. Terminal antigo, o hangar que havia pertencido à empresa aérea alemã Condor Sindikat. Com a declaração de guerra do Brasil contra as potências do Eixo Berlim-Roma-Tóquio, em 1942, houve o confisco dos bens da Condor. E graças a isso o Aeroclube começou a formar seus próprios pilotos no mesmo ano.
Wilson Freitas Coutinho foi um deles. Isso quando o clube ainda ocupava as instalações do aeroporto de Goiabeiras e os aviões de instruções, os primeiros que vieram, ficavam no antigo hangar que havia sido do Sindicato Condor. Wilson era brevetado juntamente com os primeiros formandos. Um grupo grande e do qual resta hoje uma única foto de recordação na sala de embarques da sede da Barra do Jucu.
Quando o meu velho pai se formou a guerra havia terminado fazia pouco tempo. E ele dizia que os pilotos civis eram orientados a voar nas proximidades da costa para olhar bem o mar. Temia-se naquela época que algum submarino alemão que ainda não houvesse se rendido estivesse em águas territoriais do Brasil, um país inimigo. Perguntei então a ele: “Certo, vocês não acharam nada. E se tivessem achado com aviões que na época nem rádio tinham, o que iriam fazer?” Ele respondeu com um riso mais do que maroto: “Sairíamos correndo de volta ao aeroporto para reportar o fato.”
A aviação dos dias atuais é muito diferente da que pautou a vida dos primeiros pilotos formados pelo ACES. O avião moderno tornou o desastre aéreo, sobretudo nas grandes empresas de transporte de cargas e passageiros, quase tão improvável quanto um acerto de seis números na Mega Sena. Além de extremamente seguro, o avião moderno que atravessa os oceanos aos milhares todos os dias há muito tempo é a única opção de transporte de longa distância se houver mar entre a origem e o destino da viagem. O tempo dos navios de transporte de passageiros está perdido no passado.
Sou neto de um imigrante português que chegou ao Brasil em 1906 vindo de Lisboa. E vindo num “vapor”! Em 1939 ele voltou a Portugal para ver a mãe pela última vez e também teve que fazer a viagem de ida e volta com navios O tempo de duração dependia então da velocidade daquelas velhas máquinas movidas por motores de caldeiras de carvão, mas durava em torno de 14 dias. 14 para ir e mais outro tanto para retornar. Em 1939 já havia navios com motores a óleo diesel, mas esses o velho português José Maria não chegou a conhecer.
Meu avô, precisou acumular três períodos de férias para poder gastar um mês em viagem e ficar mais dois na “terrinha” acariciando a mãe que morreria em 1942, durante a segunda guerra mundial. Ele levou dois anos para saber disso, porque em tempos de conflito armado mundial uma carta raramente chegava ao seu destino.
Hoje o velho José Maria levaria cerca de 10 horas de voo entre o Rio de Janeiro e Lisboa. Com todo o conforto num aparelho todo digital, automático e que voa por satélite. O avião, quer a gente goste ou não, quer a gente tenha ou não medo – o que é irracional –, é o meio de viagens que une povos e nações. Que faz o mundo progredir, que faz com que o conceito de distância dos tempos atuais seja infinitamente menor do que era no passado. E o avião, dos meios de transportes que o homem usa, é o mais recente. Tem apenas pouco mais de um século de existência.
Sejam bem-vindos a bordo!