A vitória do Espírito Santo, no Espírito Santo

Luiz Guilherme Santos Neves

É óbvio que existe um duplo sentido no título deste texto. Sua explicação recua às festividades pelos seis meses de governo do Marquês de Montalvão, em 1641, quando o padre Antônio Vieira – um dos mais notáveis oradores sacros do Brasil – proferiu o sermão do dia de Reis, no Colégio da Bahia.

Estava-se vivendo, então, a segunda arremetida dos holandeses para se apossar da área produtora de açúcar no Brasil, sob o patrocínio comercial da Companhia das Índias Ocidentais.

Na esteira dessa tentativa de dominação, a capitania do Espírito Santo não ficou imune devido aos engenhos açucareiros que aqui havia. Num intervalo de quinze anos, a capitania foi invadida pelos holandeses, tanto em 1625, quanto em 1640.

Pode-se dizer que foram invasões de raspão, duas cotoveladas holandesas, visto que o objetivo maior da dominação flamenga se concentrou na Bahia (1624–1625) e, depois, no nordeste brasileiro (1630 -1654).

Na primeira invasão ao Espírito Santo, junto com a heroica resistência oferecida pelos habitantes da vila de Vitória, avultou-se, beirando os debruns da lenda, a figura de Maria Ortiz; na segunda, valeu contra o inimigo numeroso e superior em armas a bravura da gente da terra que, superando sua fragilidade defensiva, impediu que Vitória, e depois Vila Velha, caíssem em poder dos agressores.

Ressalte-se que a segunda tentativa foi mais temerária do que a primeira quer pelo maior tempo de duração, quer pela superioridade bélica dos holandeses.

Com efeito, foram onze os navios que formavam a frota sob o comando do almirante Koin, da qual desceram setecentos homens de tropa que, em um patacho, uma polaca e nove lanchões desembarcaram “no porto de Roças Velhas, que depois se chamou Porto dos Padres”, no dizer de Basílio Daemon, na História da Província do Espírito Santo, para se ramificar por diferentes pontos da ilha.

Antiga foto da vila de Vitória, possivelmente do final do século XIX com o Penedo sobressaindo ao fundo, mostra o braço de mar que existiu durante muito tempo (antes de ser aterrado bem mais tarde), entrando na direção de onde é hoje o Parque Moscoso até a atual rua Cais de São Francisco (denominação que remete à  memória dessa época, situada na base do convento homônimo). 

Pelo braço de mar devem ter singrado alguns lanchões com parte dos invasores holandeses até a atual ladeira Caramuru que, devido aos combates ali travados, recebeu o nome rua do Fogo, denominação que predominou durante séculos.

Teriam os holandeses, nesta segunda invasão, arriscado também investir pela ladeira do Pelourinho, onde em 1625 assombrou-os Maria Ortiz com sua fervente e inusitada resistência? A História não responde a essa pergunta, nem elucida por que, na segunda invasão, inexiste qualquer referência à participação da heroína. Na sua ausência, coube ao capitão-mor João Dias Guedes reunir às pressas a desamparada gente da terra a fim de, com duas peças, trinta espingardas e índios armados com arcos e flechas (ainda segundo Daemon), barrarem as pretensões dos holandeses nos duros combates que se travaram de parte a parte.

À simples visão da foto de Vitória, a despeito de ter sido tirada séculos depois da invasão holandesa, dá para se perceber a modéstia de que se revestia a vila, onde sua população, diminuta e pacífica, vivia (e vivia mal) uma existência melancólica e vazia quando se viu convocada pelo capitão-mor a enfrentar o inimigo.

É de espantar, portanto, que dentro dessas condições desfavoráveis a vila de Vitória tivesse conseguido sobrepujar as forças holandesas que a pretenderam dominar em 1640.

Desse espanto, porém, não partilhou o padre Antônio Vieira. São várias as passagens do sermão do dia de Reis que se reportam ao ataque dos holandeses à capitania do Espírito Santo e à espantosa vitória alcançada sobre o inimigo superiormente armado. Em todas elas prevalece a explicação da vitória pela visão do maravilhoso sagrado em que, se não fora o socorro divino em favor das armas católicas contra as dos hereges protestantes, como considerava Vieira aos holandeses, vitória não haveria nem na vila da Vitória, nem em Vila Velha.

De se acentuar que o recurso ao maravilhoso sagrado permitia a Vieira lançar-se em eloquências inflamadas que muitas vezes chegavam a desafiar o poder de Deus em favor de causas que o orador considerava justas à defesa, preservação e propagação do catolicismo mundo afora. E os seus sermões, sempre prévia e habilmente elaborados, eram o meio pelo qual o padre vocalizava suas invocações discursivas em arroubos de eloquência que absorviam e dominavam a plateia dos fiéis. 

No caso do sermão do dia de Reis a argumentação de Vieira foi estruturada para mostrar aos que o ouviam que a derrota dos holandeses na capitania do Espírito Santo decorreu da prodigiosa intercessão de Deus em favor das armas católicas. Um Deus que, idealizado por Vieira como tomado de afã guerreiro contra o flagelo protestante, me transporta à representação pictórica que dele nos dá Miguel Ângelo num detalhe do portentoso teto da Capela Sistina do Vaticano, que não resisto em evocar:

Em reforço do que já escrevi, transcreva-se o trecho que se segue do sermão eloquente de Vieira: “Porque estando os nossos na batalha com tão poucas armas de fogo, como sabemos, e muitos com as espadas e capas com que passeavam na praça, que entendimento ou que experiência humana havia de presumir que poderiam sair vencedores de tanto número de holandeses, soldados velhos, costumados a vencer, e tão bem providos de armas? Mas como o invisível braço de Deus governava a guerra, e nos impossíveis da nossa fraqueza queria justificar os méritos de sua glória, antes de se cerrarem as quatro horas contínuas  daquela desigual batalha, estavam tão trocadas as mãos que já os alfanjes holandeses  pelejavam da nossa parte e as clavinas que eles carregaram contra nós, nós as descarregávamos neles venturosamente. Ora, pelejai, pelejai poucos, mas valerosos portugueses; pelejai, e vencei animosamente, que ainda Deus é por nós.  Não peçais socorro de armas à Bahia, não peçais ao Rio de Janeiro, que um e outro há de chegar tarde; pedi o socorro ao  céu, pedi as armas de Deus...”

Finalmente, Vieira concluiria, em sua ardente e incisiva oratória: “Esta foi a vitória do Espírito Santo (que sempre fora do Espírito Santo em qualquer outro lugar que sucedera), uma das mais notáveis que hão tido no Brasil as armas católicas...”

Palavras de quem sabia o que dizia.

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