A capixabíssima muma de siri

Fernando Achiamé

A palavra “muma” e a expressão “muma de siri” não constam dos dicionários. Nem do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa – o VOLP, elaborado e mantido pela Academia Brasileira de Letras. Tal realidade se constitui em mais um indício de que essa palavra tem circulação restrita a certas regiões do Estado do Espírito Santo. Esperamos que um dia o vocábulo “muma” esteja dicionarizado. No entanto, os capixabas do litoral, ao menos os que saboreiam as receitas típicas da nossa culinária, sabem muito bem o que significa muma de siri – um delicioso prato. Feito à base de fruto do mar, seu consumo no tempo da Quaresma é mais corriqueiro.

Qual a origem dessa preparação? Ninguém sabe ao certo. Para as pessoas, uma das condições essenciais de vida é possuir imaginação criadora. Sem ela seríamos todos robôs. Para quem pesquisa o passado, a imaginação é instrumento fundamental. Vamos então fazer um esforço para identificar e montar as peças desse quebra-cabeça histórico. Os povos indígenas que habitavam o que hoje são terras brasileiras domesticaram mais de cem plantas. De uma delas, a mandioca brava, que tem esse nome por ser venenosa, eles souberam extrair a farinha e o polvilho por um método que acabava com a substância tóxica. Assim, temos o primeiro componente indispensável da muma.

Em quase todo o litoral que agora chamamos de brasileiro, o siri estava disponível. Bem mais do que em nossos dias, caracterizados pela poluição e pelos avanços demográficos sobre as zonas costeiras. Foram os indígenas, nossos antepassados, que deram ao bicho o nome de “siri”, que significa segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss “correr, deslizar, andar para trás”, justamente como ele se desloca. Existem muitas subespécies de siri, mas a preferência para consumo recai no siri-açu, de maior tamanho como o nome indica, ou no siri-mole, aquele que acabou de trocar a carapaça. Pegar siris não era muito difícil para os indígenas. Eles sabiam tecer, e faziam pequenas redes, os puçás e os jererés, aliás nomes também de origem tupi, e, com auxílio de iscas, capturavam os crustáceos. Ou pescavam com peneiras, a depender da habilidade das pessoas e da abundância de siris no local. Temos então o segundo componente indispensável da muma.

Nossos povos nativos também cultivavam o urucum e, com frequência, o utilizavam para fazer belas pinturas corporais que, ao mesmo tempo, serviam como repelente de insetos. Também empregavam a tintura obtida da semente dessa planta nas suas elaborações culinárias. Nas mumas de siri indígenas eram utilizados poucos temperos, alguns que nós desconhecemos, mas o urucum e a pimenta estavam sempre em destaque. Como sabemos, os índios confeccionavam panelas de barro para cozinhar seus alimentos, inclusive a muma. Eles não usavam o sal em sua alimentação, mas, no caso, os siris já vinham com um pouco desse mineral, pois eram retirados de águas salgadas ou salobras.

Se os primeiros habitantes da nossa terra muito ensinaram aos portugueses, também com eles aprenderam bastante. Os colonizadores logo notaram que os índios do litoral consumiam siris, cujo sabor raro, estranho, exótico foi referido em diversos documentos antigos, sobretudo nas cartas de jesuítas. Podemos inferir que por serem menores as populações a alimentar naqueles tempos recuados, os crustáceos eram bem mais abundantes e de maior tamanho, e deviam fornecer para os consumidores maior quantidade de carne, que também podia ir desfiada para a panela. Ao longo do tempo, e com a contribuição dos portugueses, foram acrescentados no preparo da muma a cebola, o tomate, o coentro, o sal. Nessa rica troca de saberes e sabores culinários, se somaram o arroz, acompanhamento que a partir de certa época passou a estar muito presente na mesa brasileira, e o feijão em caroço ao gosto do freguês. E as bebidas? O consumo do cauim indígena (bebida fermentada obtida a partir do caju, milho, mandioca e outros vegetais) está bem documentado há muito tempo e sua combinação com a muma de siri certamente aconteceu, bem como o posterior uso da cachaça pura ou misturada em batidas de frutas da terra – abacaxi, caju, goiaba. Mais recentemente, a cerveja industrializada foi eleita como ideal para escoltar o prato.

Há muitas variações da muma de siri, mas a receita original capixaba está acessível em bons sites de gastronomia.

Por fim, deve-se ter em mente que durante longo período da história brasileira, até poucas décadas atrás, o alimento essencial do povo era a farinha de mandioca. Sobre o assunto, há diversos registros que podem ser sintetizados numa frase: se faltasse farinha, a população passava fome. Existe até conhecido ditado: “Farinha pouca, meu pirão primeiro”. Ora, a muma de siri se constituiu em criação engenhosa das primitivas populações litorâneas para evitar a fome. Se o pescado rareasse, se as condições climáticas impedissem a pesca, então se lançava mão do siri, associando-o de modo criativo à farinha – satisfação garantida para o paladar e o estômago.

A muma é de preparo rápido e simples – os siris limpos e partidos, misturados com os demais ingredientes, viram uma moqueca, cujo caldo na mesma panela, acrescentado de farinha de mandioca, é transformado em pirão. As pessoas “pescam” as metades do siri desse pirão repleto de temperos e comem os dois. Comem, se labuzam e se satisfazem com um prato cheio de prazer e de história. Os verdadeiros ingredientes da muma de siri são a alegria na alma, a descontração no espírito, o congraçamento entre parentes e amigos que tornam possível nos regalarmos com uma boa farra gastronômica.

O importante é cuidarmos muito bem dos nossos mares e mangues (e de seus siris) para que essa saborosa herança alimentar, iguaria típica da terra do Espírito Santo, continue a ser usufruída por nós, que temos a obrigação de transmiti-la em toda sua plenitude para gozo e proveito dos nossos descendentes.

E viva a capixabíssima muma de siri!

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