Sonhos naufragados em uma mística Paris

Ester Abreu Vieira de Oliveira

 

Marcela Guimarães Neves em A noiva de Paris (Vitória: Ed. Pedregulho, 2022, 118 p.) narra três agressões físicas e morais em três mulheres: as coadjuvantes na trama Clara e Luna Catalina, amigas de Sofia, a protagonista, e aspectos de representações de amor entre jovens e uma cidade: Paris, local sonhado para concretizações de felicidade que perde a harmonia, característica do amor, e se torna uma personagem de recebimento de agressões em moradores.

O amor é um bem tradicional nas artes e na vida cotidiana. Funciona literariamente como elemento gerador de situações conflitantes, apoiadas na realidade. São várias as explicações sobre o amor, ou Eros, que, na imagem de luz, luminosidade, influência da ideia emitida por Platão, significa harmonia. Esse filósofo interliga amor e fala; amor e palavra (Logos e Eros).

A mais geral teoria sobre a origem e significado do amor é a que o considera filho de Vênus, o deus alado da emoção extrema e do amor, princípio gerador da emoção e símbolo do desejo, cuja energia é a libido, que conduz o homem ao conhecimento, abertura para a totalidade do ser. Essa é a razão de as atividades dos instintos vitais coincidirem com Eros dos poetas e filósofos - o amor que transforma o amado na coisa amada. Mas junto com o amor vem a Paixão, o sofrimento, a preponderância do destino sobre a pessoa livre e responsável.

Amar o amor mais que o objeto do amor, amar a paixão por si mesma, desde o amabam amare de Santo Agostinho até o romantismo moderno, é procurar o sofrimento. É o amor-paixão: desejo daquilo que nos fere e nos aniquila pelo seu triunfo. No conceito socrático o amor é o desejo de algo que não se tem. Tudo o que toca destrói, mas tem como objeto a continuidade, a imortalidade que só se consegue pelo processo de renovação. No cristianismo, o amor é sinal de sacrifício, de abnegação; e é ágape, comunicação cristã com Deus - forma o princípio ético da vida cristã: solidariedade, fraternidade e abnegação. O amor místico é mentalizado. Não depende das qualidades do outro. Os místicos sentem o fascínio da morte por não conseguirem viver longe do amado. Paulo, o apóstolo, aponta que o amor tudo suporta, crê, espera e sustenta. Cervantes em Dom Quixote de la Mancha registra o amor como o ideal de perfeição, e Camões canta o amor como fogo que arde sem se ver. Há demonstrações de amor e paixão e um dos gestos de demonstração mais comum é o beijo na boca, mas a conquista começa com o olhar.

Amor e erotismo se interligam. Otávio Paz em A dupla chama concebe o erotismo como a poética corporal e a poesia como um erotismo verbal. Diversos discursos amorosos retratam as várias faces de Eros: o ódio, o amor devorador, o amor necessidade, a paixão erótica, a amizade, a ternura, a harmonia e a dedicação.

O erotismo é a metáfora da sexualidade e é movido pela imaginação (como a poesia) e busca o prazer e não a reprodução (como a sexualidade). Porém, erotismo e amor são formas de sexualidade sublimadas. Como para Platão, o amor é filho de deuses, ele tem como atributo educar as almas para a beleza celeste e fortalecer o instinto. Eros acede ao nível das ideias, porque é a aspiração da alma ao Belo e ao Bem. Na Idade Média o amor foi representado como uma divindade cega e vendada, numa associação à Noite, à fortuna e à Morte. A concepção do amor, força fatal - fogo, ardor, queimadura, se contrapõe à neoplatônica que o considera irradiação cósmica de luz divina, matriz de beleza dos corpos no mundo.

Nessas variadas apresentações do amor, ou seja, o platônico (harmônico), o idealizado, ou o amor-paixão, as três mulheres da trama de A noiva da Paris, respectivamente, Luna Catalina, Clara e Sofia, os apresentam, e Paris sofre a consequência da falta de harmonia que esse sentimento deixa de proporcionar.

Paris é um lugar que preenche o imaginário de romantismo, reduto de charme, de elegância e de cultura. Recanto para onde tantos sonharam ali viver momentos inesquecíveis de prazer, por isso o destaque de “Cidade do Amor”.

Em A noiva de Paris destacam-se algumas partes desse lugar idealizado, místico, nos capítulo: Quartier Latin, Jardim de Luxemburgo, Montmartres, Boulevard du Montparnasse, e Place de la Concorde, e apresenta-se a felicidade da noiva no dia das núpcias: “Sofia tremia de alegria em seu vestido branco”. (p. 54)

Nesse ambiente de fantasia a narradora proporciona um recinto amado e desejado por noivos para ali passarem a sua lua de mel, seja passeando de barco pelo rio Sena, apreciando o contorno de suas margens, seja caminhando prazerosamente por suas ruas, vielas, praças, jardins e museus, para mascarar o terreno da desventura de Sofia, ao descrever uma violenta cena estupro e morte provocada pelo esposo, Leon: “[...] Num gesto rápido, o francês cospe uma saliva grossa e alcoólica, e sodomiza a jovem esposa com uma violência que deixou rastros indeléveis de sangue, no carpete do quarto e na memória da estudante indefesa.” (p. 60)

Por outro lado, apresenta a frustração amorosa de Clara, a noiva brasileira, que foi abandonada no altar, por Rodrigo Albuquerque, e se refugiou em Paris. Ela não encontrou o amor verdadeiro, nem o amor platônico, nem o amor de Afrodite, o amor carnal, que oferece a fertilidade, o desejo, pois o noivo, que parecia representar para Clara o ideal do esposo, um “empreendedor de sucesso no ramo de informática”, era ambicioso. Ele sabia que o matrimônio lhe traria diversas vantagens financeiras. Ele se esforçava por lhe “parecer afetuoso, escondendo, todavia, durante os três anos de noivado, a sua única paixão na vida, Amália, sua amante desde a adolescência”, (p. 21) com quem nunca se poderia casar com o consentimento da família devido à posição social e à cor da amada. Mas na hora em que se casava com Clara, Amália lhe aparece com o filho deles ferido por balas, correu para socorrê-los, pois a eles amava.

A colombiana Luna Catalina conheceu o amor que transforma o amado na coisa amada, o amor eterno. Ela era uma artista, exótica em seus costumes, um pouco de bruxa, possuidora de habilidades pré-videntes, uma volta às aptidões da clássica Cassandra, a profetisa de Apolo. Morava numa exótica casa que “era puro esoterismo. Uma pantera negra empalhada protegia a entrada, e uma cobra quase cega, criada com esmero [...]” (p. 49). Em seu povoado perto de Medellín, aos 17 anos, conheceu o amor de um biólogo estadunidense, Frank Dawson. Com ele se casou, viajou, conheceu vários países. Estimulada por ele desenvolveu seus dons artísticos. Sua vida era “uma miríade de sensações, emoções e aprendizado.” (p. 81) Mas ela desabou com a morte do amado e, sentimentalmente, passou a viver numa casa perto do cemitério de Montparnasse, em Paris, onde tinha sido sepultado o seu esposo e dizia: “A minha ligação com o amor morreu com Frank, e o que permanece é apenas disposição de se viver a vida plenamente como ela se apresenta”. (p. 82) A vida livre que Luna Catalina deseja viver nos lembra Carmem, a cigana meio bruxa, figura mítica do drama passional de Merimée.

Sofia, a estudante brasileira, numa trama de amor frustrado, será o pivô do desenrolar criminal de agressões à mulher, do destaque ao tema do machismo e de, em todo o desenrolar da história, estar num processo de fugas de quem deveria ser o objeto de seu amor.

Poucos dias de sua chega à Cidade Luz, Sofia já se sentia “uma parisiense, tamanho foi o seu estudo da língua dos costumes do povo gaulês” (p.17). Mas em um encontro num bar recebeu “um olhar de puro charme” (p.18), primeiro passo para despertar-lhe o amor por Leon, um jovem ambicioso que viu na jovem o elemento que o faria “retornar ao Brasil de forma definitiva” (p. 18). E numa primavera na França, perto da basílica do Sacré Coeur, ao som de risadas infantis a intelectual Sofia recebeu a declaração de amor de Leon: “Tu es mon amour, toi. Et pour toujours” (p. 32.). Contudo ela não encontrou o verdadeiro amor, mesmo vivendo em Paris, além de ter sido quase morta pela truculência de seu marido, etnólogo francês, machista, mentiroso, que, para conquistá-la, mascarou o amor-paixão.

Enfim, é uma obra que se aconselha ao leitor por conter reflexões pertinentes à literatura em geral e citas precisas. Ainda aborda temas relevantes na mídia atual, muitos relacionados com a Lei Maria da Penha. Trata de preconceitos diversos, do submerso mundo das drogas, do apoio da família, de amizades sinceras, e de desejo de liberação da mulher, de enganos e casamento por interesse, de riscos que o casamento traz, do aborto devido à brutalidade conjugal, da agressividade e da exploração à mulher. Mas penso que se deveria eliminar o epílogo, pois nele parece que a autora quis redimir, purgar, justificar os atos violentos de Leon, uma espécie de Minotauro, que leva quase à morte Sofia e suas amigas: Clara e Luna Catalina, mais o amigo Seb, um cantor e hermafrodita. Essa escolha cabe a você, leitor.

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Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e o clube de leitura Leia Capixabas.

Editor responsável: Anaximandro Amorim