Renata Bomfim (Vitória/ES, 21 de novembro de 1972) é poetisa, professora, educadora ambiental e doutora em estudos literários pela Universidade Federal do Espírito Santo. Membro da Academia Feminina Espírito-santense de Letras, tendo, também, presidido a instituição e organizado uma das edições da Feira Literária Capixaba (a Flic-ES), Bomfim é autora de quatro livros, todos recolhos poéticos. O coração da Medusa (2021), seu mais recente trabalho, é um volume de 157 páginas, editado com recursos da Secretaria de Cultura do Espírito Santo (Secult/ES) e apoio do Funcultura, Fundo Estadual de Cultura. O livro é bilíngue (português/espanhol) e a tradução é assinada pelo prestigioso escritor e crítico literário espanhol Pedro Sevylla de Juana, membro correspondente da Academia Espírito-santense de Letras.
O coração da Medusa possui três partes: 1) “Canto iniciático”; 2) “Queda”; e 3) “Ascensão”. Há também uma quarta parte, “Outros poemas”, mas, segundo a própria autora, “[O]s poemas que se seguem vieram à luz um tempo depois de finalizado O coração de Medusa. A decisão de incluí-los no poemário deve ao fato de eu sentir, ainda, ressoar a voz serpentina de Górgona nesses versos”, no que achamos, portanto, que o núcleo da obra se concentra nos três primeiros capítulos.
O livro tem, como fio condutor, o mitema (grosso modo, a representação/consubstanciação do mito) da Medusa (“Górgona”), ainda que Bomfim explore, também, outras alegorias, como a bíblica (“O prazer de Salomé”) e a indígena (“Ritual tupiniquim”). Trata-se de um bem estruturado poemário, cujo erotismo tem uma tônica singular como forma de posicionamento da própria autora, numa poesia que, ousamos afirmar, vai além do feminismo, consubstanciando-se em uma “poesia fêmea”.
Expliquemo-nos: primeiramente, o mitema da “Medusa”, tão popular, leva em consideração não apenas aspectos do próprio mito, mas, também, uma provocação. Medusa era uma bela sacerdotisa que, ao se deitar com Poseidon no templo de Atena, foi transformada por essa em uma horrenda criatura, com cabelos de serpente e o condão de transformar em pedra quem ousasse cruzar seu olhar. Ela é o arquétipo da maldição, alguém condenada por ousar o amor e, mais ainda, ousar o prazer.
Há, portanto, várias “Medusas” na História, mulheres que foram além das convenções, mas que pagaram com suas vidas, sendo tidas como bruxas, prostitutas, proscritas. Nota-se, no entanto, que a Medusa de Bomfim possui um coração, o que leva a um paradoxo interessante, visto que o órgão, em literatura, tradicionalmente, representa o amor. Sim, Medusa também tem coração e, se tantas mulheres foram tidas como monstros, não seria por elas terem ousado pôr o sentimento em lugar de uma razão proveniente de uma sociedade de papeis preestabelecidos? Não seriam por terem ousado ser como elas realmente queriam ser?
“Medusa” é o preço que uma mulher paga na nossa sociedade machista e falocêntrica. Bomfim, todavia, faz de seu livro um canto contrário a esse estado de coisas, o que já se percebe, num leitor mais atento, quanto ao conteúdo do livro, com a proposital mudança entre os vocábulos “queda” e “ascensão”. Começo, porém, por “Canto iniciático”. O vocábulo “canto”, aliás, é bastante encontradiço na obra. A mulher, sempre tida como “perigosa”, seduzia por seu canto. Muitos monstros mitológicos, como a Medusa, tinham formas femininas. Lembro-me de outro mitema, o das sereias, que entorpeciam os homens com seu canto. Ulisses só escapa da “maldição” pois estava amarrado a um mastro. O mesmo canto que seduz também pode levar à guerra. Renata canta a bravura de tantas mulheres, alijadas pelo cânone histórico e social. Por isso a inversão: se a mulher, que nos primórdios, era o cume da sociedade matriarcal, foi destronada pelo patriarcado, a poeta, no seu “canto iniciático”, quer dar voz a uma nova ascensão para as tantas Medusas da História.
O poema que dá título ao livro está, justamente, no capítulo deste “canto iniciático”, como uma preparação para um porvir. É ele:
O coração da Medusa
O coração da Medusa
(forjado em lada, cheio de fúria)
ama aquele que a busca.
A diva serpentina oferece
ao macho que penetra
na senda úmida e obtusa,
(caverna iniciática):
sedução, prazer, e gozo.
Até o momento fatal
da mirada suave e íntima,
o tempo para. A virgem
quebra o silêncio sepulcral,
chacoalha o guizo,
mas, ninguém testemunha
o milagre dos milagres:
A volúpia eternizada
numa estátua de carrara.
São 17 versos livres e brancos, em que Renata lança mão de uma inteligente proposta: usar um erotismo fino e elegante como fio condutor. É neste aspecto que ousamos classificar o livro não dentro de um viés apenas feminino ou feminista. Para nós, a obra de Bomfim ultrapassa esses conceitos, mostrando-se uma “poesia fêmea”: marcando territórios, ainda hoje, dominados pelo masculino, a autora expressa em versos o corpo da mulher, junto de sensações que, em muito, deságuam em um tema tão tabu: o prazer feminino. Nesta senda, ela se une a autoras como Gilka Machado, Cecília Meireilles, Julia Lopes de Almeida, Haydée Nicolussi e tantas outras que “cantaram” o feminino, o corpo, suas idiossincrasias, seu espaço e, principalmente, seu direito.
O poema em epígrafe esbanja essa sensualidade, com arquétipos que aludem tanto ao genital feminino (“caverna iniciática”) quanto ao masculino (com o uso do verbo “penetrar”). Há, também, uma alegoria que vai se repetir em muitos textos do livro, a da serpente, como imagem do pecado, do proibido e, em última análise, da própria mulher, como ser “perigoso”, que pode “seduzir” e “perverter” o homem. O gozo, esta petite mort, representado pelo chacoalhar do guizo, é o prenúncio de um milagre: Medusa também tem coração, também sente prazer, isto é: à mulher também é outorgado esse direito.
Ainda sob alegorias ofídicas, a segunda parte trás o poema “A víbora”. Há de se lembrar, entrementes, que este capítulo, intitulado “Queda”, alude ao rasteiro, ao chão, sobre o qual rasteja a serpente:
A víbora
A víbora que faz Eurídice dormir
ronda a minha cama,
Se acerca em arabescos
Aguardando o momento
do bote preciso, prefeito.
No instante apoteótico
do sonho,
Ela crava os dentes
no meu seio.
Nem Cleópatra experimentou
tamanha delícia.
Há, aqui, mais uma alegoria mítica: a de Eurídice que, morta por uma serpente, desce ao Hades, sendo resgatada de lá a súplicas de Orfeu, seu marido, filho da musa Calíope e do deus Apolo. Orfeu desobedece aos deuses, olha sua amada antes de chegar ao lar e é condenado ao Hades, o que significa: a víbora, aqui, mais uma vez, é o desejo pelo proibido. Se lembrarmos, também, Freud, pode ser a pulsão pela morte, mais uma vez, alegoria do gozo. Há toda uma sensualidade aí: a víbora ronda a cama, serpenteia. Ela pode ser, também, um arquétipo da genitália masculina. Ela crava seus dentes no seio feminino, podendo, também, ser representado pelo corpo. É um “instante apoteótico”, orgásmico, epifânico, um lapso antes da expulsão do jardim das delícias como “Nem Cleópatra experimentou”.
Do terceiro capítulo, “Ascensão”, colhemos este:
Ritual Tupiniquim
A praia recebe do mar
Homens errantes e exaustos.
Recolhidos pelas guerreiras,
Os corações são postos ao sol para secar.
Enquanto elas cantam e dançam,
eles cintilam, pulsam, ardem,
sentem desejo. As carnes quentes
encontram peitos receptivos,
se abrigam e brotam...
A coisa geminada vira gente.
É importante notar que a autora, além de literata, é ambientalista, e também engajada nas causas indígenas. Não é a primeira vez que Renata Bomfim se utiliza dessa temática, colocada neste poema, cremos, como chancela ao capítulo: mais uma vez, ritual. O rito, o canto iniciático, a guerra, tudo tão presente na obra, tudo tão, aparentemente, caro ao masculino, é transportado para o universo feminino. Aqui, podemos pensar, em termo de mitemas, às amazonas. Elas são, porém, “tupiniquins”, ou seja, o poema traz, também, elementos de brasilidade, como uma ode à força da mulher brasileira, latino-americana, mestiça.
É interessante notar, justamente, essa alteridade: os homens estavam “errantes e exaustos”; eles são “recolhidos pelas guerreiras”; o coração deles é “posto ao sol para secar”. Há uma clara inversão de lugares comuns, como o sexo masculino como o mais forte, por exemplo. Os corações postos ao sol aludem a um canibalismo e a dança das mulheres, sempre sensual, nos remete a um ritual de antropofagia que, em um sentido figurado, subverte o sentido: não são os homens que comem as mulheres, mas as mulheres que comem os homens.
O fim, portanto, será o milagre da vida: “a coisa germinada vira gente”, ou seja, a mulher, aqui, não é apenas uma imagem de força, mas, também, como um campo fértil que abriga a semente masculina. Ela é um ser dotado para ser vida e gerar, também, outra vida.
Anaximandro Amorim é membro da Academia Espírito-santense de Letras e mestrando em Estudos Literários – UFES.
Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e o clube de leitura Leia Capixabas.
Editor responsável: Anaximandro Amorim