Navalha na carne

Marcela Guimarães Neves

 

Crepúsculo de uma sexta-feira conturbada. Trabalho atribulado, família fragilizada por mais um caso de suspeita da nova peste, e o cansaço da semana lateja em uníssono com o meu joanete no pé esquerdo.

Para aliviar a tensão, faço a música de Chico Buarque ressoar pela casa, calmante sonoro para as noites de angústia. No momento em que ouço os versos da canção “De todas as maneiras”, vejo o livro Carne viva, de Lívia Corbellari, aquisição do dia anterior, em cima da minha mesa da sala.

De todas as maneiras que há de amar/ Nós já nos amamos/ Com todas as palavras feitas pra sangrar/ Já nos cortamos/ Agora já passa da hora, tá lindo lá fora/ Larga a minha mão, solta as unhas do meu coração/ Que ele está apressado/ E desanda a bater desvairado/ Quando entra o verão...

A poesia perfurante de Chico aumenta o desejo de emoções ardentes. Escolho uma taça de vinho e uma dose a mais de intensidade. A noite exige profundidade. Abro Carne viva e, como uma afiada navalha, a poesia de Lívia Corbellari corta a pele sensível dos dissabores do dia, crava as suas unhas no coração e enaltece um vermelho-vivo de emoções femininas sem contenções.

O concretismo do poema “Fluxo intenso” inaugura o que será uma viagem ao interior de mim mesma. Ferida aberta, a leitura do texto de Corbellari não coagula sem a compreensão de que “não há mentira que estanque” (p.14).

Como bem disse Ernesto Sábato, em sua obra O túnel: “A felicidade está cercada de dor”. Confirmo essa grande máxima nos versos de Lívia (p.46):

o seu corpo descolando no meu
é pele se soltando deixando a carne viva
é perder a camada que me protege do mundo lá fora
que me separa de você

A alegria do encontro, a dor da partida, “a mesma história tantas vezes lida”, lembrando-me de Florbela Espanca, outra poeta que asperge intensidade nos seus sentimentos e em suas palavras.

Mais uma taça de vinho para continuar a leitura. Deparo-me com a hereditariedade do ódio em “corações engarrafados” (p. 23), masculinos machucados e não curados por conta de condicionamentos ininterruptos e incompreensíveis. Há meios de se mudar uma cultura que ainda insiste em evidenciar comportamentos de pessoas com “sangue duro”?

A escatologia para marcar a ausência e o “sorriso morno” (p.25) de quem não tem coragem de ser presença. Nada mais justo; o afeto que persiste é sempre o asco de gente covarde.

Recordo-me da obra Confusão de sentimentos, de Stefan Zweig, quando leio os poemas sobre a mistura de batons vermelho-loucura (p. 32) e a indecisão no momento do depois que não sabe se “foi frio ou calor? Foi tédio ou foi tesão?” (p. 35). Um grande cantor de minha terra pernambucana afirma que “a cor do pecado é rouge carmim”. Mas não existe pecado algum e, em verdade, a cor do AMOR que é sempre rouge carmim, em todas as suas formas, de todas as maneiras.

A poeta acerta, em cheio, o peito cansado de vivências incompreendidas, quando exalta as luas no coração de uma mulher:

as luas do coração
transitam em fases incontáveis
o vinho branco invariável
mas, às vezes, é só gim
oculta de novo
já morri mil vezes
mas sempre volto pra mim

Com o olhar molhado de experiências passadas, revividas agora por meio de versos curtos e precisos, termino o vinho branco que me acompanhou durante toda a leitura do livro da talentosa poeta soteropolitana. A poesia sanguínea de Lívia Corbellari deixa a carne viva e o espírito atento.

“Navalha na carne” é o título de uma peça teatral de Plínio Marcos, levada aos palcos em 1967.

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Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e o clube de leitura Leia Capixabas.

Editor responsável: Anaximandro Amorim