“Porque sem amigos ninguém escolheria viver, ainda que possuísse todos os outros bens.” No livro Ética a Nicômaco, obra fundamental para a compreensão da filosofia clássica ocidental, Aristóteles reserva, como não poderia deixar de ser, todo um extenso capítulo (Livro VIII) sobre a importância da amizade. Para o grande filósofo grego, a amizade seria um atributo essencial para o bem-viver.
Como Nicômaco, filho e discípulo do mestre grego, Ivan Borgo, profundo conhecedor dos textos clássicos, pelo que prontamente se extrai da leitura de suas crônicas, seguiu a recomendação aristotélica e praticou, com excelência, a arte de cultivar amizades. É o que se aufere já nas primeiras páginas do livro Roberto Mazzini e outros navegantes – Ivan Borgo: vida e obra, elaborado com perfeição pelo brilhante escritor capixaba Pedro J. Nunes, membro da Academia Espírito-santense de Letras e grande amigo do biografado.
Ademais, a obra conta com a belíssima apresentação de Francisco Grijó, célebre escritor e secretário de Cultura de Vitória; um prefácio do professor doutor Francisco Aurélio Ribeiro, membro da Academia Espírito-santense de Letras; além do tocante depoimento de Luís Carlos de Souza Vieira, ex-diretor do SENAI no Espírito Santo e do SENAI de São Paulo e que, conforme afirmou, foi também um grato discípulo de Borgo. Por fim, o texto do excelente escritor Luiz Guilherme Santos Neves une-se aos dos outros mestres já citados, explicitando, de forma precisa e convicta, que a obra de Ivan Borgo consegue integrar, por meio de um perfeito domínio do texto curto, valores aparentemente divergentes, como o episódico e o universal. Com efeito, as recordações trazidas pelos amigos do cronista já nos incutem o ávido desejo de descobrir a história deste ser humano capaz de reunir, em uma única obra, expoentes grandiosos da cena literária capixaba. Note-se que o autor dessa enternecedora biografia teve o cuidado de, em seu estudo crítico, revelar apenas o necessário para abrir o apetite literário do leitor, eis que, como advertia o filósofo alemão Friedrich Nietzsche: “Não se deve falar de seus amigos, caso contrário, se trai por palavras o sentimento da amizade.”
E os ilustres amigos de Ivan Borgo têm toda a razão. A leitura, tanto da história de vida quanto das crônicas e contos escritos por Borgo, fabulosamente selecionados para sua biografia, nos confere uma medida muito próxima deste homem que, embora tímido para falar de si mesmo, soube expressar, de forma sensível e profunda, sob o manto do pseudônimo Roberto Mazzini, seu olhar sobre sua rica trajetória pessoal, bem como sobre a história do Espírito Santo.
Nascido em Castelo, município situado no sul do estado, Ivan Borgo muda-se com a família para Vitória em 1945. Publica, em 1948, o conto “Noite de Natal”, premiado no concurso literário do jornal A Gazeta. Além disso, colabora para a revista Você, da Secretaria de Produção e Difusão Cultural da UFES, e publica os livros Crônicas de Roberto Mazzini, Chão de Araguaia: poemas e Navegantes: contos, entres outras obras. Paralelamente às atividades literárias, o biografado foi fiscal da Previdência Social, professor da Universidade Federal do Espírito Santo, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo e diretor regional do SENAI.
De fato, Ivan Borgo foi um grande estudioso em várias áreas do conhecimento, tais como a economia, a literatura, a filosofia e a história. Em sua crônica “A utilidade veste Prada”, publicada no site “Tertúlia Capixaba”, organizado por Pedro J. Nunes, Borgo utiliza, de forma exata e didática, conceitos econômicos para denunciar a “utilidade artificial” presente nos rígidos mandamentos do universo da moda.
Com um humor sofisticado, o cronista traz para o nosso cotidiano ideias filosóficas atemporais, como podemos constatar na deliciosa crônica “Esperanças e propostas”, em que cita o grande filósofo Heráclito em sua argumentação sobre as oscilações do mercado da nutrição, visto que, assim como não podemos nos banhar duas vezes no mesmo rio, também não podemos aproveitar de igual maneira as mesmas iguarias nos diversos momentos da vida. E, desolado com a nova e imperativa dieta que os exames clínicos impõem, dá adeus, ou melhor, arrivederci,às “queridas pizzas” e bom dia aos “simpáticos repolhos” e às “esvoaçantes alfaces”, ainda que permaneçam as lembranças dos prazeres perdidos.
Lembranças... É sobretudo no exercício mnemônico de descrever pessoas e momentos relevantes da sua trajetória que o mestre Ivan Borgo nos presenteia com sua genialidade poética. Sim, as crônicas e contos de Borgo aspergem poesia em várias passagens, a exemplo da crônica “Araguaia: memória e sentimento” em que, opondo-se à ideia de Millôr Fernandes sobre a inviabilidade do animal humano, afirma que Araguaia é antes de tudo o seu pai, “esse homem medieval que foi um universo de valores sitiado por um mundo demasiado distinto de onde eles provieram, e que se destaca no horizonte da minha memória como a prova mais eloquente de que o homem é um ser viável.”
Na crônica “Um olhar”, é lindamente poética a maneira terna e grata com que Borgo acolhe e protege a sua nonna, pequenina e simples camponesa, mas com “um olhar que era puro luxo”, dos perigos da cidade grande quando de sua primeira e única passagem por esta capital.
Nesse mesmo diapasão, a forma como a personagem de Abelardo mostra a distante e bela faixa marítima à esbelta Leda, sua paixão secreta de perfil grego e pescoço comprido como “duas colunas dóricas”, nos toca sobretudo pelo modo como o autor descreve a deliciosa angústia de Abelardo para disfarçar sentimentos até então desconhecidos.
Reminiscências da Segunda Guerra, dos alourados gringos saltando de seus jipes defronte ao Teatro Glória, na Vitória dos antigos cinemas; memórias de Santa Leopoldina, cidade-personagem da eterna Canaã, obra de Graça Aranha; vestígios do futebol de Vitória “naquele tempo”; lembrança do nobre cachorro de nome Chiquinho para aliviar o seu pesado pedigree. Enfim, os textos de Ivan Borgo, apuradamente pinçados para a sua biografia, reconstroem, como num colorido quebra-cabeça, a imagem do Espírito Santo dos anos quarenta/cinquenta, ou nos dizeres do biografado, na crônica “Um mundo Eça/Vitoriense”, daqueles tempos “manuelinos”.
No entanto, a veloz ampulheta do tempo também age de forma inexorável sobre as crônicas e contos de Ivan Borgo, mas, neste caso, ela nos remete ao espaço sempre encantado das livrarias, bem como nos faz sentir o delicioso aroma dos Cafés de Vitória. E, sobretudo, nos traz de volta aos seus maravilhosos amigos.
Em “Cafés/Livraria”, lembranças dos Cafés antigos, como o Café Central, na Praça Oito, se unem às memórias da Livraria Logos, na Praia do Suá, onde, segundo o autor, “aos sábados reúnem-se pessoas para conversas sem compromisso e onde até, de vez em quando, se fala em literatura”. Aqui, vários amigos são citados, inclusive o próprio autor da biografia Roberto Mazzini e outros navegantes, Pedro J. Nunes. Ademais, pedindo licença ao leitor desta resenha para um comentário pessoal, não posso deixar de me orgulhar com o fato de que José Neves, meu pai e assíduo frequentador do famoso “Sabalogos”, também foi um dos nomes eternizados nesta belíssima crônica de Ivan Borgo.
Infere-se da crônica “Ainda bem” que as escolhas literárias eram fraternalmente respeitadas pelos amigos literatos de Borgo. Tanto a “inexplicável ojeriza” ao livro Crime e castigo, de Dostoiévski, quanto a profunda admiração pela obra de Eça de Queiroz não precisavam de maiores explicações por parte do cronista. Afinal de contas, como disse o próprio Eça de Queiroz, por meio de sua personagem Zé Fernandes, no romance A cidade e as serras, não se deve desalojar “um espírito do conceito onde ele encontra segurança, disciplina e motivo de energia.” Ou seja, numa verdadeira amizade, não deve haver espaço para vaidosas e infrutíferas discussões. Para o autor da crônica, o reconfortante adágio segundo o qual “gosto não se discute” parecia ser a regra de ouro entre os livres-pensadores da Livraria Logos.
O livro Roberto Mazzinni e outros navegantes – Ivan Borgo: vida e obra nos traz a certeza de que, se não tivemos o privilégio de tomar um café com esse grande cronista/contista, temos ao menos a grande oportunidade de, por meio da leitura de suas obras, abraçar um grande amigo. Com efeito, sendo um exemplo para todos nós, o mestre Ivan Borgo soube, de modo sublime e fraterno, conciliar leveza e profundidade, razão e sensibilidade, memória e sentimento.
Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e o clube de leitura Leia Capixabas.
Editor responsável: Anaximandro Amorim