Córrego dos Coelhos: o minimalismo da infância universal

Italo Samuel Ferreira Wyatt

Tricotar os retalhos da memória com as agulhas delicadas da poesia.

O romancista é sempre um latifundiário: sua construção literária é imensa e até infinita. Escreve, pois, sobre os grandes achados da humanidade, diálogos complexos, convicções filosóficas, os firmamentos dos céus, a vileza de Poseidon com os seus mares que apartam amores pretensiosamente construídos para experimentarem o eterno, os carnavais incautos de um cristianismo político.

O contista é senhor de uma sesmaria: sua produção caminha por alguns quilômetros de veredas manchadas pelos sucos dos buritis e pelas cores atômicas dos ipês multifacetados, um encontro casual numa rua de notívagos e desesperados, a soberba de um crítico literário em sua biblioteca.

O poeta é servo de algumas tarefas de terra. Sua arte é sempre uma percepção profunda das coisas inúteis: o farelo de pão no canto da boca que sorri quando a manhã rompe o tecido fino da aurora, as formigas que laboram durante o dia enquanto cigarras cumprem a função de oferecer disposição com os cantos melindrosos, a hora do beijo ou “o adeus de Teresa” (apenas o adeus). Escreve, pois, sobre aquilo que ninguém nota, mas que reverbera no seu coração como querosene que explode quando o carro aquece o seu tanque cilíndrico.

Córrego dos Coelhos (1), obra de Matusalém Dias de Moura, é uma coletânea de poemas que consagra essas definições. O livro retrata a infância pobre do menino de roça que, diferentemente dos seus entes queridos que “olham pedra e veem pedra”, possui a sensibilidade de considerar as menores desimportâncias de um cenário lúdico como as coisas mais fundamentais da sua vida. No poema “Noturnal”, por exemplo, enfeixa o autor:

Menino de infância pobre,
Deitado em colchão de palha
Sobre uma tarimba de ripas
No canto escuro do quarto,
Descansava o corpo e dormia
Um sono cheio de esperanças
Que ainda hoje são sonhos
Boiando no meu destino [...] (2)

Com a sensibilidade à flor da pele, Moura cumpre o ofício de retratar a infância universal do poeta, uma infância comum de todos os meninos que, por sina ou encanto das musas, são fascinados pelo mínimo.

Essa infância não passou despercebida dos maiores autores da literatura universal. O pequeno príncipe (3), de Antoine de Saint-Exupéry, é um bom exemplo disso. A personagem principal é um habitante de um pequeno planeta que cumpre o ofício de arar a terra diariamente eliminando a possibilidade do caos que ocorreria se os baobás crescessem avassaladoramente. Apaixonado por uma rosa que nasceu vaidosa e despertou-lhe toda paixão escrita nas constelações, o menino compreende o seu sentimento por meio da lição de uma raposa-filósofa que leciona que “só vemos bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos”(4).

O pequeno príncipe torna-se forasteiro pela necessidade que possui dentro de si de compreender as coisas mínimas, os sentimentos de manjedoura, as razões da afetação. Deseja um carneiro e não um elefante, torna-se amigo de um aviador perdido no deserto não conhecendo qualquer presidente ou primeiro-ministro da Terra. Por fim, o garoto retorna para sua casa através de uma picada de cobra dourada ao invés de viajar em algum ônibus espacial.

Miguilim (5), de João Guimarães Rosa, é uma criança de oito anos que reside no Mutum e que, diferentemente da sua mãe, achava o Campo Geral um lugar muito bonito procurando ratificar a sua convicção por meio de alguma palavra de autoridade. Amava a sua grota porque valorizava as matas, os animais, a cor da terra, os galhos das árvores em que trepava junto ao seu irmão Dito. Sua mãe, confessando todo desamor pelas terras de poucos acontecimentos, lamenta: “Estou sempre pensando que lá por detrás dele acontecem outras, que o morro está tapando de mim, e que eu nunca hei de poder ver” (6).

Quando o seu adorado irmãozinho morre, Miguilim cai em total melancolia. É plenamente possível vislumbrar a dor minimalista do poeta:

Mas chorava com mais terrível sentimento era quando se lembrava daquelas palavras da Mãe, abraçada com o corpo do Dito, quando o estavam pondo dentro da bacia para lavar: - “Olha o inflamado ainda no pezinho dele… Os cabelos bonitos… O narizinho....Como era bonito o pobrezinho do meu filhinho....”

[...] Depois, repetia, alto, imitando a voz da mãe, aquelas frases. Era ele quem precisava de guardá-las, decoradas, ressofridas; se não, alguma coisa de muito grave e necessária para sempre se perdia. - “Mãe, o que foi que naquela hora a senhora sentiu? O que foi o que a senhora sentiu?”! O que foi que a senhora sentiu?!... (7)

No final da obra, Miguilim é diagnosticado míope, ganha duas boas lentes e parte para uma nova terra, com saudade infinita da sua grota, da sua mãe e do seu querido finado irmão, a mesma saudade do sexagenário Matusalém Dias de Moura, que lapida a joia rara e bruta do que não ficou (e ainda persiste no relicário da lembrança) e confessa suas lágrimas em diversos versos dos seus poemas como, por exemplo, em “Cinzas mortas”: “Agora, em silêncio verga-se ao peso/ Do esquecimento/ Guardando apenas uma saudade…” (8), no título “Delícias do engenho”: “Em mim, bem guardado/ No fundo da alma,/ Permanecem rangendo/ As velhas moendas/ Do velho engenho/ Mágico e Romântico.” (9) e no texto “As mãos de meu pai”: “Aquela manhã, aquelas mãos”/ Aquelas tiras de couro/ E meu pai/ Sobretudo meu pai/ Ainda estão em mim,/ A chorar a morte/ E a cantar a vida.” (10)

Córrego dos Coelhos é um culto, portanto, às minúcias da vida, às preciosidades dos milésimos de segundos, aos flashes que ninguém espera. A pretensão de Matusalém é voltar para casa, é retornar para os braços da criança que fora e dormia ao som dos cantos dos sapos e das chuvas gostosas. Moura é avoador e pequeno príncipe. Poderia bem e fielmente sintetizar sua obra com a súplica do homem que se perdeu no deserto:

Olhe atentamente esta paisagem, a fim de estar certo de reconhecê-la, se um dia viajar para a África, no deserto. E se acontecer de passar por lá, eu lhe suplico, não se apresse, espere um pouco bem embaixo da estrela! Se então uma criança vier até você, se ela rir, se ela tiver cabelos dourados, se ela não responder quando perguntar, você já adivinhará quem é. Então seja gentil” Não me deixe tão triste: escreva-me logo que ele voltou. (11)

Córrego dos Coelhos é Mutum e deserto. É a persistência da memória. É a certeza de que nada se perde na vida do poeta. Absolutamente nada.

Italo Samuel Ferreira Wyatt é escritor, poeta, compositor, advogado e membro da Academia de Letras de Vila Velha.

REFERÊNCIAS

(1) MOURA, Matusalém Dias de. Córrego dos Coelhos. 1. ed. Vitória : Arte da Cura, 2018.

(2) Ibid., 2018, p. 17.

(3) SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O pequeno príncipe. 1.ed. Barueri : Ciranda Cultural, 2016.

(4) Ibid., 2016, p. 74.

(5) ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguilim. 11. ed. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2001.

(6) Ibid., 2001, p. 29-29.

(7) Ibid., 2001,p. 123.

(8) MOURA, ibid., p 21.

(9) Ibid., 2018, p. 24.

(10) Ibid., 2018, p. 35.

(11) SAINT-EXUPÉRY, 2016, p. 96.

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Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e o clube de leitura Leia Capixabas.

Editor responsável: Anaximandro Amorim