Aninhanha: uma tragédia do feminino

Andréa Gimenez Mascarenhas

 

“Se não tiver pecados atire a primeira pedra” (p. 25).

Após uma primeira leitura do romance Aninhanha, do escritor Pedro J. Nunes, algo ficou insistindo para que fosse colocado em palavras. O que da obra causou tal ressonância? Como expressar em palavras, impressões tão vívidas? Um texto forte, impactante, que, como bem coloca Carlos Nejar em sua apresentação da obra, caminha entre Rosa, Clarice, Beckett e Joyce, mas traz a marca do autor, no grito da própria criatura. Ouso acrescentar ainda, Eurípedes e sua Medeia, como um possível ponto de inquietação que fez despertar em mim a dimensão trágica do texto de Nunes.  

Aninhanha é uma obra cuja chave interpretativa apresenta-se inesgotável, justamente por desnudar ao leitor as mais profundas paixões do ser, que constituem a essência da tragédia, enquanto gênero literário.  A tragédia, de acordo com Lacan, no Seminário 7, A Ética da psicanálise, (1959-60 [1991]), produz um fascínio em seu brilho insuportável, no sentido de que isso nos intimida no que ela tem de desconcertante e também por apontar a morte vivida de maneira antecipada, a morte em vida. Lacan enfatiza ainda, que a tragédia se encontra na raiz da experiência do psicanalista como testemunha sua palavra-chave, a palavra pivô catarse. Por catarse, pode-se entender uma purgação das mais intensas paixões humanas, o ódio, a ignorância e o amor. Encontramos esse efeito de catarse, uma espécie de expiação, ou, purificação dos pecados cometidos pelos seres falantes, no texto de Nunes.

O romance Aninhanha conta a história da travessia realizada por duas mulheres, irremediavelmente unidas por seus destinos trágicos. A travessia se faz por meio da palavra em primeira pessoa de uma narradora anônima, A., a um interlocutor, também anônimo, que tanto poderia ser um operador da lei, como um psicanalista. O fato é que tal interlocução se oferece como testemunha muda de uma vida em busca de sua origem:

O senhor me perdoe lá consigo as exposições de minhas impressões.. Convenho que as exponho com minha muito particular ótica, mas esta história é minha, eu a arranco do peito inevitável. Eu preciso ajuntar meus cacos, é preciso recompor-se, ajeitar a casa para o que será a travessia. Depois disso serei outra. Assim acontecem as coisas. O dito é o ocorrido. O que não se diz não há. O que não há passa a haver depois que se diz. (p.55)

O início da narrativa, “sempre dificultoso” (p. 12), parte do abandono desta mulher anônima, A., pelos pais biológicos, em local onde depois fizeram uma praça, “um gramado limpo-verdinho bem onde esconder a anterior miséria” (p. 14). Um monte de carne e sangue que não protestava, mudo. Foi resgatada da morte por uma estranha figura, a “mãe imposta”, também anônima, catadora de lixo e prostituta a qual A. aprendeu a chamar de Aninhanha:

Que bicho esquisito era Aninhanha! Empurrava o carroção superior às suas humanas forças, apoiava nos peitos murchos e ia empurrando como quem empurra o tempo interminável ocaso o carroção cheio de lixo [...]. Aninhanha não tinha noção do tempo cada dia o seu lixo, nunca soube me dizer nas raras ocasiões em que falou o tempo em que recolheu no lá aonde aquele meio ensanguentado embrulho que continha uma criança arroxeada e que não havia morrido ainda por causa da necessidade entranhada em mim. (p. 15)

Em meio ao lixo das águas podres que fluíam embaixo das palafitas, A. em sua (in) existência, insistente, foi adquirindo sozinha suas impressões do mundo. Aninhanha em sua precariedade simbólica, de certa forma exercia alguma função materna, a despeito de sua absoluta secura e falta de demonstração de afeto. A. nunca aprendeu a chamá-la de mãe. “Ela me tirava o pano sujo e colocava outro de menos sujices espreitando pelo vazio da janela o espírito das palafitas” (p. 17). A. não se compunha sem a existência de Aninhanha. ‘Não me componho sem ela que tem a existência dela atrelada à minha no mais profundo. ” (p. 20).
Quando de seu próprio corpo de mulher foi se apercebendo, A. acompanhava o desenvolvimento com interesse:

Ao contrário de Aninhanha, no que me possível era vaidosa dessas vaidades sem recursos, arrumava-me ao sair para as palafitas ou mesmo para ir ao trabalho do carroção. Quando Aninhanha me os cabelos cortava exigia que me adequasse os cortes, femininas transparências. (p. 32)

No entanto, diante do olhar de cobiça dos homens que Aninhanha recebia no barraco, sentia-se como carne nova destinada a eles. No pensamento de A., os homens dividiam as mulheres em duas categorias.

A mulher do sonho besta que toda mulher tem a que eu não conhecia a fragmentada: a legal, legitimada a que esperava de seu e seu homem toda noite e toda noite o mesmo homem que lhe enfiava os filhos entre as pernas, que a fazia estremecer em coisas lamentas do baixo-ventre. Esta do prazer de estrelas onde o escuro a que eu sonhava em mim eu feito esta. A outra essa outra eu conhecia muito bem: marionetes absurdas dos homens na dor sem direito ao grito. A esta concepção ajuntem-se cacos espalhados de humilhação e dor que presenciava em Aninhanha. (p. 40).

A. lutava desesperadamente com os parcos meios de que dispunha, a fim de escapar de sua tragédia anunciada e por fugir dos desejos daqueles homens, era chamada por eles de “Loucamansa”. Em seu “sonho besta”, recusava-se a ser aprisionada naquelas categorias das mulheres.

 [...] eu estava irremediavelmente destinada a ser uma delas. A. Destinada a um destino contra a concepção dele eu vinha lutando arduamente, lançando mão de todas as minhas miseráveis forças. A minha vontade de homem a que já me referi não era assim daqueles modelos ilegal, justificava-se coisa assim de macho e fêmea coisa de cio de ser assim só coisa de cio. (p.  41)

Diante do domínio autoritário de Aninhanha e alheia aos seus desejos e vontades, A. sucumbe. Vendida por Aninhanha por 30 dracmas ao seu algoz, o dono do depósito, foi abusada de todas as maneiras e vê crescer em seu ventre o fruto do abuso. Cava com as próprias mãos a cova onde enterra aquele “insignificante monte de carne e sangue” que outrora fora ela própria com todos os seus sonhos e desejos de mulher. Aninhanha, por sua vez, comete o ato supremo, “as mãos abertas, esticadas, a judas terrível” (p. 95). Passagem ao ato, ela escapa pelo suicídio. Ali a escolha não é marcada pela liberdade, trata-se antes de uma escolha forçada. Não há futuro possível, o horror se apresenta em sua dimensão trágica.

Evoco Medeia, a protagonista feminina da tragédia de Eurípedes, que desde 431 a.C. suscita o horror da plateia, diante do ato de filicídio praticado por ela. Medeia, a mulher dilacerada pela traição do marido, Jasão, a quem havia feito todas as concessões e o ajudado com seus conhecimentos de magia a conquistar o velocino de ouro, elabora sua vingança, propondo-se a matar os próprios filhos e a nova esposa de Jasão, atingindo-o, assim, no que ele possuía de mais precioso. O valor disso é admirável, segundo Miller (2010), uma vez que Medeia é apresentada por Eurípedes, como uma mãe que amava profundamente seus filhos.

Lacan em seu texto “Juventude de Gide ou a letra e o desejo”, ([1966]1998), faz menção aos atos das “Verdadeiras mulheres”, o ato de uma mulher em sua inteireza de mulher. Miller, (2010) explicita que, para Lacan, o verdadeiro em uma mulher, se mede em sua distância subjetiva da posição da mãe. Uma “verdadeira mulher” só se pode dizer em um grito de surpresa, seja de maravilha ou de horror, quando algo se articula ao sacrifício do Ter em detrimento do Ser. O que aproxima o ato extremo destas duas personagens femininas Medeia de Eurípedes e A. de Nunes? Ao que parece, ambas, foram atingidas e devastadas no mais radical do seu Ser de mulher. O que há de mulher nelas, superou o que há de mãe, deixando exposta e revelando a parte oculta do feminino “não-todo”, aquilo para o qual não existe mediação simbólica possível, levando a concretização do ato, um ato de loucura.

Medeia é resgatada ao final da peça pelo carro alado enviado pelo Sol, seu avô, levando consigo os corpos dos filhos mortos, suspensos pelos ares pelo Deus ex-machina. Embora reconheça que sofrerá pelos filhos, sua vitória está completa. A., a “Loucamansa”, “mulher absurda”, retornando à cova onde havia enterrado o filho, se depara com o vazio, seu resgate se dará pela palavra:

É dia ou noite? Enfim a minha noite será terrível. Amanhã o talvez a travessia, é possível que me aqui encontrem dura e fria. De que adiantaria me condenar se eu própria me absolvo? Ah a justiça dos homens ah. Me rio. Não esquecer que é tempo de margaridas. (p.96)

Nunes, de forma magistral, soube como poucos adentrar com seu texto no que há de mais enigmático e sensível, concernente ao campo do feminino, a parte que toca o abismo, o estranhamento, o paradoxal. Jogo de sombra e luz, dia e noite. A. fez a travessia. Pode agora criar a si mesma.

Concluo com uma citação de Jorge Luís Borges em seu prólogo de Elogio das sombras. “A verdade é que ninguém pode nos ferir, a não ser as pessoas que amamos”.

Referências

LACAN, J. “Juventude de Gide ou a letra e o desejo”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

LACAN, J. O Seminário, Livro 7: a ética da psicanálise. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.

EURÍPEDES. Medeia. Tradução Mário da Gama Kury. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

MILLER, J.A. Mulheres e semblantes. Opção Lacaniana online. 2010.

NUNES, Pedro J. Aninhanha. 3ª ed. Vitória: Secretaria de Estado da Cultura do ES, 2015.

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Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e o clube de leitura Leia Capixabas.

Editor responsável: Anaximandro Amorim