Abro a janela. Um sol de inverno, fraco e recalcitrante, aquece como pode o quarto onde começo a escrever estas linhas. Diante de mim, um belo livro reforça a claridade da estrela longínqua, iluminando as minhas retinas nesta manhã de segunda-feira: A vida depois da luz, do talentoso escritor, advogado e professor Anaximandro Amorim.
Segundo a célebre frase do autor norte-americano Mark Twain, “Os dois dias mais importantes da sua vida são: o dia em que você nasceu, e o dia em que você descobre o porquê”. Com efeito, para Anaximandro Amorim, a revelação do sentido de sua existência deu-se sob a forma trágica de um acidente automobilístico no quilômetro 239 da BR-101. Após a leitura deste relato autobiográfico, é de clareza solar que o hábil escritor, ao quase desaparecer nas cinzas de um instante fatídico, renasceu como uma fênix para alçar voos mais altos, voos repletos de acrobacias artísticas, conforme queria seu coração e seu espírito de literato, poeta, ator e linguista.
A incompreensão diante do inesperado, a luta incessante pela vida, a glória da superação. Fecho os olhos para tentar perceber a escuridão por que passou o protagonista desta dramática história. Impossível captar a mensagem, haja vista ser algo do além-túmulo. A obscuridade da experiência de quase morte é de outra monta, da ordem do rompimento com o espaço-tempo a que estamos acostumados. Tal estranho acontecimento coaduna-se com a eternidade a qual só precisamos alcançar quando, de fato, chega “a nossa hora”, quando vemos a cara da indesejada das gentes, como diria o grande poeta pernambucano Manuel Bandeira.
No entanto, o autor, vítima de um violento abalroamento, contemplou-a antes do tempo, vislumbrando, por antecedência, a proximidade da partida para um outro plano espiritual. De fato, qual não é o nosso espanto ao saber que o autor de tão palpitante obra se aproximou sem medo da faixa luminosa que tentamos a todo custo, abraçando as mais modernas (e às vezes estapafúrdias) teorias da medicina, como quem se agarra a uma tábua de salvação que, contudo, não nos impede de naufragar.
A penúria hospitalar, em muitas páginas descrita, é cortante. Ao mesmo tempo em que ressalta a fragilidade de nosso invólucro corpóreo nos faz perceber a importância dos pequenos prazeres, aqueles que, displicentemente, deixamos de enxergar durante as vivências quotidianas e atribulações da rotina.
Inspirar, expirar, respirar. Sabemos nós o quanto esses gestos simples e involuntários são verdadeiras bênçãos, dádivas de um ritmo divino? Decerto, tê-los em maior conta garante a possibilidade de realizarmos desejos, de suscitar e receber amores, de contar o nosso enredo existencial até o suspiro final, aquele que nos permitirá ir ao encontro da derradeira luminosidade.
E o próprio autor nos alerta em uma graciosa mensagem ecumênica (p.91): “Acredite! Apegue-se à sua fé, independentemente de você ser cristão, islâmico, budista, de religiões afro ou mesmo se você não tiver religião alguma. Neste caso, tenha fé em você mesmo. Mas acredite! Milagres existem e eu sou a prova viva disso.” Malgrado a beleza de tão elevadas palavras, sabemos que, não raras vezes, somente sofrendo as dores do dia a dia na própria carne é que conseguimos abrir os olhos para luminescência dos momentos simples e felizes da nossa trajetória na Terra, como jogar jogo da velha com o irmão num simples caderninho preto (p.33) ou celebrar o aniversário em casa com a família e amigos (p.111). Certo é que, para muitos viventes, como bem cantou Taiguara, “quem não soube a sombra não sabe a luz”.
Por outro lado, por mais tecnológicos que estejam os aparatos médicos, permitindo-nos um lapso maior de tempo e um leque maior de possíveis realizações, o árduo e grandioso ofício de Hipócrates tem seus limites. Ao conseguir regenerar partes de um corpo cada vez mais salamândrico, esticando a pele, implantando órgãos e aparelhos para que não façamos parte das estatísticas dos desencarnados, inútil pensar que não chegaremos ao fim desta caminhada no Cosmos. A angústia da finitude é o tridente que nos espeta a fim de avançarmos em nossas conquistas, caminharmos em direção aos nossos sonhos, já que não são infindáveis nossos dias, porquanto a cada segundo as areias da vida escorrem para o outro lado da ampulheta.
Se outrora Søren Kierkegaard anunciava que vida é aquilo que acontece entre primeiro e o último grito, após a leitura desta contundente obra do professor Amorim, noto que, parafraseando o filósofo dinamarquês, a vida é o que ocorre entre a primeira e a última luz. Neste interregno, cabe a nós, como arquitetos do nosso universo particular, elaborar, com a régua e o compasso que o acaso nos põe nas mãos as bases e estruturas para uma existência autêntica, bem edificada e com acabamentos repletos de relatos interessantes. E estes serão contados nesta nossa viagem pelo planeta ou em alguma outra dimensão em que talvez nos aguardem anjos ávidos por ouvir ótimas histórias, ainda que fortemente impactantes, como a que, com brilhantismo, nos relatou o escritor capixaba Anaximandro Amorim.
Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e o clube de leitura Leia Capixabas.
Editor responsável: Anaximandro Amorim