A memória fragmentada

... de como o orvalho vira sonho

Ela aprendera os caminhos do silêncio. A única realidade é o sol que a aquece. Toda manhã põe sua alma a secar, ainda recendendo a orvalho. O orvalho dos sonhos. Com seu vestido verde, leve e claro, de babados e folhos, imóvel sob as carícias do sol, parece uma alface. Uma alface orvalhada. Vegeta. Já não vive para fora; trancou-se em si mesma.

Antes gostava de sair, de ver o mundo. Que se dane o mundo! Nem os alvoroços em família, aniversários, de nada quer saber. A televisão ainda a atraía um pouco, por distraí-la. Agora, não gosta mais. Por causa do mau cheiro. Quando liga a televisão o mau cheiro se espalha pela sala. Deviam contratar os urubus. Existem urubus desde que o mundo é imundo. O urubu é feio, mas útil, porque devora a carniça. Ela gosta dos urubus - por seu voo límpido.

... o esquife dourado

Há tempos mantém-se calada. Alheia a tudo, acostumou-se a embutir seus sentimentos mais profundos, a recalcar seus anseios. A vida lhe é indigesta. O olhar, bruxuleante, apaga-se pouco a pouco; é como se estivesse sempre a olhar para muito muito longe.  “É um anjo”, disse alguém... Anjos têm asas; as dela foram podadas. Asas podadas não alçam voos. A voz calou-se. Da vida só lhe resta, vez em quando, um frêmito. À medida que as portas foram se fechando, ela também. Não foi coisa pensada. Foi inanição do espírito.

Uma velha fantasia de criança é seu restolho de vida - sua ilha imaginária (por vezes, um asteroide) onde vive sozinha, longe de tudo e de todos! Tem horta, frutas, patos e galinhas. Aquela casa elegante, arrumada a gosto do marido, nunca representou nada para ela. Nem as mesuras vazias, insinceras (ela sabia, as mesuras, eram para o cargo que ele ocupava) nada significavam!

Tornara-se apática. - Mãe, você é uma múmia! Gritara-lhe, certa vez, a filha adolescente. Olhou-se no espelho: longos trapos a envolviam da cabeça aos pés; travavam-lhe os movimentos. Tinha algodão nos ouvidos e nas narinas. Jazia, semiviva, em um esquife dourado.

... um olho dentro de um triângulo

Desde que escolhera o silêncio ela se sente assim; um olho dentro de um triângulo. As pessoas se afastaram. Não lhe dão a mínima atenção.. Falam de tudo em sua presença, sem pejo, nem cuidados. Tecem comentários - como se ela fosse invisível. - Ela nos ouve? Perguntara alguém. - Não sei, disse outro alguém. Nunca reage! Pensam que ela não pensa..

(Ela é um olho dentro de um triângulo - como o olho de Deus).

Agora conhece as pessoas por dentro!

... clarões:

Seus jovens anos ainda afloram vez por outra em sua memória! Pequenas janelas abrem-se e fecham-se - como um filme passado no escuro onde um relâmpago ilumina a cena. Não importa a cena; somos sempre os protagonistas. Mesmo que sejamos os últimos somos o centro de nós mesmos. Sente-se única, num mundo oco. Um vácuo pleno de nada! Esporádicos momentos de lucidez, vívidos, passam como ofuscantes clarões. Passam - como angustiantes pontadas. Passam!

 ... a primeira comunhão…

“Chegou o dia da querida festa
chegou a hora em que vamos comungar...

Na tarde anterior houvera confissão. Um bando de crianças buliçosas com suas “listas de pecados” nas mãos, preparava-se para o grande momento. Ouvira, entre lágrimas, um comovente sermão: - Jesus açoitado, humilhado por nosso amor, crucificado com enormes pregos. (Um dia ela achara um prego enorme, de uns 15 cm. e convencera-se que fora usado na crucificação. Guardara-o junto aos outros tesouros).

No dia da “querida festa”, com seu lindo vestido, envolta em nuvens de organdi… “um lírio da inocência”, ela encantara a todos: - Parece uma noivinha!

Em sua cabeça cheia de névoa tudo lhe é estranho e confuso... Fugazes lembranças a torturam e atraem: um olhar (uma cobra no bote) - um olhar que a perfura com os dardos dourados que chispam de sob suas pálpebras, até crivá-la inteira. Um sedicioso olhar – uma cobra a divertir-se com sua presa.

No oratório de sua avó havia um São Sebastião, todo crivado de flechas, sangrava até morrer. Ela sangra luz. Sua tia, que vira a poça de luz, se assustara: - Para dentro, já!  ... - ... Diacho de menina sonsa! …

(Escurecia. Ao cruzar o beco que cortava caminho para sua casa, ele surgira do nada. Com movimentos bruscos e inesperados, a prensara contra um vão do muro e a beijara de um jeito... como se o mundo fosse se acabar. Ela desvencilhara-se dele com um safanão, os lábios em brasa. Fora tudo tão rápido ... até duvidava que acontecera).

Um “fogo que arde sem se ver” a consumia. Céu e inferno.

… um deslembramento dolorido...

Queria chorar e não podia queria gritar não conseguia. Felipee! Ouvir alguém, chamar. - Esse nome a despertou de seu torpor; doeu-lhe como uma fisgada. Por que doía? Quem era Felipe? Era um nome perturbador. Casaram-na (“que linda noivinha’’). Seu casamento fora um presente de Deus; marido bem posto na vida, cargo importante no governo, um pouco distante é certo, mas bom com ela; nada lhe faltava. Estudar pra quê? dissera a tia. Estudar pra quê? dissera o marido. Ela queria tanto, mas cedera. Entre a vida e o casulo de seda, escolhera o casulo. Jazia, o velho sonho, num jazigo perpétuo! (- Esqueça, menina - você tem tudo!)

Aos pouco fora ficando apática. Trancara-se no triângulo do olho. Depois, na alma. Não sabe mais viver desde então. As filhas enviadas para o colégio interno voltaram esnobes, falando francês. Ninguém precisava dela. Ninguém precisava dela.

... “mulheres debruçadas das varandas do céu em vestidos fora de moda.”

Ultimamente está cercada de pessoas desconhecidas, quase todas velhas. Não reconhece o lugar, nem sabe como veio parar ali. Vem sempre uma moça muito bonita que a chama de “mãe”. Às vezes são duas. Uma delas lê para ela em francês. Como a moça sabe que ela gosta?  No colégio era a matéria de que mais gostava. Desde menina assustara sua mãe com seus sonhos malucos: moraria na França, numa água furtada com um pintor surrealista. Lera tudo que lhe chegara às mãos. Decorava poemas em francês, seu idioma preferido. Até rezar em francês era mais bonito. Embora meio esquecida, já não entende quase nada, mas gosta. Agrada-lhe o tom intimista, a musicalidade. Uma frase insistente lhe ficara na memória: “j’ai besoin d’etre sûr de notre eternité”.

Amanhã. Amanhã, à tarde, (ela sabe) irá embora, só não lembra mais onde fica sua ilha, ou melhor, seu asteroide,  com seus bichos e a horta. Mas ela vai achar - é só seguir o caminho, ou “agarrar-se aos pés das aves migratórias”. A moça que a chama de mãe não pode saber que ela pensa escapulir. Fingiu que dormia para a moça bonita ir embora. Queria ficar sozinha para preparar-se. Na rua ouviu alguém chamar -  Felipee! … (o punhal a trespassou)

Nuvens de gaze em dourada luminosidade, esgarças, deixaram à mostra uma porta aberta: “Mulheres debruçadas nas varandas do céu em vestidos fora de moda acenavam para ela”. De longe pareciam conhecidas.

A tarde caiu.  C’est fini!

Leia outros textos

Volte ao índice das colunas