Naquele dia amanheci pensando nele. Nele quem? No meu queridíssimo Mestre e Amigo Luiz Guilherme, em sua escrita fluida, deliciosa, em seus livros, e insistentemente, pensando em um de seus personagens: um esqueleto erudito dançando a “dança do sabre” (leiam, está no Tertúlia!). Como de costume, quando me vem à cabeça uma ideia - com luzinha acesa e tudo -, eu “tenho” que derramá-la imediatamente ou ficará fazendo cócegas nos meus miolos o dia inteiro. Derramei... Virou “Homenagem” ao escritor, romancista, historiador, dramaturgo, cronista... tudo isso (e muito mais) aliado ao talento, ao carisma, à simpatia. Luiz Guilherme marcou presença forte e indelével em nossa geração e presente estará sempre, pulsando em nosso Amor - porque seria impossível não amá-lo!
No dia seguinte, meu coração chorou. (*)
Desde que o Mestre Luiz Guilherme (o Santos Neves) descreveu seu encontro com o fantasma da cidade, em pleno Parque Moscoso, fiquei picada. Curiosa! Um fantasma que dança a “dança dos sabres” como um Nijinsky, um fantasma erudito que sabe tudo de História, que conheceu personagens, viveu “efemérides”, que sabe de feitos e fatos…me fascinou!
Também quero, pensei. Quero conhecer esse fantasma, quero com ele dançar - de ossos colados como dois enamorados, e flertar (falanges entrecruzadas) a deambular por lugares amados.
Saí à procura. Deserta, a cidade sonhava plácida na noite do tempo. Cruzei a rua saltitando nos trilhos do saudoso bonde, meus pés a escorregar nos gastos paralelepípedos. Ao longo de nossa rua me olhava, sisudo, o Coronel Monjardim : - Menina fujona, onde pensa que vai? - Vou em busca de um fantasma erudito que vai me mostrar a cidade e revelar seus segredos.
Fui. Logo ali, o convento do Carmo alongou-me degraus. Subi. De dois em dois como soía ser, aos saltos, aos pulos na alegria de viver. Majestoso colégio! Nas escadas de madeira dos varandões internos escorreguei pelo corrimão (velho hábito); As salas de aula ronronavam sono-lentas. Entrei na capela com cheiro de vela, rezei. No coro, cantei (Adeste fidelis ...). O “caracol” do campanário me acenou. Subi mais. Que linda vista: a pracinha com seus fícus copados, raízes aéreas em tranças trançadas… Ah! E os sinos? Os sinos ali, ao alcance da mão! Toquei. Badalos soaram. Lembrei da criançada cantando um refrão ao ritmo das badaladas: “....Irmãdecaridade... sórrezempé... nãorrezassentada... porquenãoquér...” (sacrilégio! Confesso que pequei). Mas, do fantasma, nada! Por lá não estava.
Dali mesmo, do alto do campanário, em voo rasante segui procurando. Fui até o cais (era dia de regata: Saldanha da Gama & Álvares Cabral). O Sol já nascera, o mar faiscava; rapazes robustos, moçoilas faceiras, acenos, gritinhos vibravam no ar - mais força, rapazes! Competir é bom; melhor é ganhar!
E o fantasma, por onde andaria?
Ouvi o tlin tlin do bonde; sua meta: Santantônio! - Eureka! Ulalá!… é lá… lá que é lugar de fantasma - no Cemitério! Subi no bondinho afoita e feliz! Sacolejo, sacolejo, brisa fresca, o vai e vem balouçante, o cobrador: maços de notas nos dedos, a deslizar nos estribos, pendurado como um símio, sem cair. Seu condutor, dlin dlin… o bonde superlotado e o rhum creosotado a salvassarar o velho encatarrado.
Santantônio chegou. Motorneiro parou (foi tomar seu cafezinho). A fujona saltou. Um pulo, dois pulos (seu jeito de ser). No cemitério lajes lúgubres, perpétuas sombrias. Anjos tristes, bentas velas, murchas flores. Do lado de lá, a pobreza pobre - nem flor tinha. Fiz o que pude: roubei velas, vasos floridos e os levei aos desvalidos. Enfeitei as pobres tumbas (sem anjo, sem choro nem vela e sem a fita amarela, sem batuque ou tamborim). Era a hora de voltar. No bonde girei os bancos pra trás, como carecia ser, pro bonde poder voltar (de costas não se viaja, dá azar!).
E o elegante fantasma que eu, ansiosa, buscava? Onde mais o encontraria? Nas muitas escadarias? No Morro da Fonte Grande onde lavadeiras lavavam lençóis, “velas pandas ao vento mais leves que o pensamento”... (Lençóis? Cáspite; fantasmas são como lençóis - desde criança, eu sabia). Porém, ai, jisuis, quem diria? Nem de longe, nem de perto encontrei algum espectro. Onde mais? Onde iria eu buscar meu parceiro com quem rever a cidade e no palco do Carlos Gomes dançar a “dança do sabre” ou um tango sincopado”?
A Praça regurgitava. Velhos pombos, cão obeso, pardais a ciscar migalhas, normalistas, os velhos jogando damas, Otinho a dizer seus versos, Grapuá xingando menino. Pregões: - “Olha o pirulitoo”...
E o fantasma, camarada? Que mistério!
Digníssimo Luiz Guilherme, já rodei toda a cidade, me ajude - me ajude a encontrar seu fantasma, gestos longos chacoalhantes, olhos cavos a fitar, passos céleres bailando. Quero muito ouvir histórias do meu amado rincão e depois, juntos, dançar... tantantantan… “aonde onde for quero ser seu par!...”
E Luiz Guilherme responde com seu sorriso matreiro: onde mais pode encontrá-lo? Busque onde deve buscar: no Parque Moscoso, é óbvio! Da Concha Acústica, o palco, onde ele ama dançar. Afoita me fui, feliz.
E lá estava o ansiado, dançando desconjuntado na percussão dos ossinhos. Juntei aos dele os meus e - dois pra lá dois pra cá - nos pusemos a valsar. E que surpresa; entrevi, com olhos a marejar, além do seu, - meus fantasmas: o “anjinho” de porcelana, o fotógrafo mambembe, o marinheiro a buscar seu amor de cada porto, o soldado em verde-oliva, o “velocipe” vermelho, o juiz, sua bengala, castão de prata e chapéu. Num triz me revi menina, duas tranças, magrelinha. Entendi: ...os fantasmas somos nós. Nosso amor pela cidade.
Quando, enfim partirmos pra terra dos pés descalços, nosso espectro translúcido hialino fluido fugaz dançará. E ternamente feliz!
(*) Esta crônica foi escrita em 29 de julho de 2024. No dia seguinte, morreria o escritor Luiz Guilherme Santos Neves.