Fiapos...

Da tenra infância: o rio Doce, o mar salgado,  a vizinha azeda, a anedota picante, o sal amargo, a Lua de prata, a língua afiada, o mão de vaca, os dentes de pérolas: o intrigante e variado universo das palavras (semente e adubo da paixão por livros). De meus anseios o voo: as árvores, as grimpas, os ninhos, o vário chilrear dos passarinhos - a amplidão!

Na casa, sons domesticados: o chiar da vassoura, o sininho de mesa, o tlin-tlin de louça na pia, a animada prosa na cozinha, antecipando apetitosos cheiros, os interessantes ‘moradores flutuantes’:  Antonia - a cozinheira, Erotildes - a arrumadeira. Filismina, moleca enxerida; e Penhoca (agregadas por piedade).

Penhoca, era uma ‘quase’: quase anã, transparente de tão magra e branquinha, quase sem dentes (que meu pai, dentista, aos poucos devolveu). Sua função… um quase nada: - Na hora do lanche, ir à padaria. Chegou triunfante um dia: “- Tanto insisti, dona Maíza, que o presunto que custava 15 ele deixou por 18.” Irreal! E o dinheiro se chamava ‘mirréis’.

Apaixonou-se pelo ‘Negão’ (no bom sentido), foi o nome que ele mesmo se deu. ‘Homi bão’, o Negão. Gentil, sorriso enluarado, dentes como estrelas (ou pérolas) e um olhar tão macio como o do boi ‘Zeloso’ (lá do sítio de tio Dório). Quando vinha ‘pra trabaiá’ podava tudo. O quintal ficava esquálido, invernal, esquisito. Pelo chão, enormes galhos folhudos. Brincávamos de cabaninha (eu e Paíco). ‘Homi bão’! Comia uma montanha de feijão com arroz, carne, batatas, farinha farinha farinha - tudo bem amassado com os dedos, Dispensava o garfo (já lhe bastava o rastelo).

‘Homi bão’, enorme, um colosso. Penhoca, minúscula, mal lhe passava dos joelhos, Casaram-se. Vê-los juntos era um tanto bizarro, exótico, causava espanto! De tão magrinha, sumia a olhos vistos. Até que um dia sumiu. Mamãe foi visitá-la na Santa Casa de Misericórdia.

- “Misericórdia, contou ela - parecia um fiapo!”  Daí que morreu. Nos olhos de Negão a notícia escorria pelos cantos do olhar. A tristeza vestiu-o de cinzento (devastado pela poda). - “Truxe a troxinha dela e a tesoura que a senhora emprestou.” - “Não precisava, disse mamãe. Pode dar pra quem precise.” – “Não senhora, prefiro queimar”. O Negão era puro Amor.  Amor puro como a alma dele que transluzia no olhar.

Fez um trapézio para eu brincar de circo.

Minha irmã (enxerida) leu esse começo e comentou: - “Credo, você só fala bobeira.. e nós? - pai, mãe, irmãos, a vó...” - Mas família é família: é a casa, o telhado, as paredes, o travesseiro, a boneca Lúcia, o anjo da guarda...  - ( Eu estou lembrando os complementos extras, como falar dos adereços de um vestido - colares, brincos, rendas , lacinhos)… Minha irmã não me entende. Família é algo sagrado. A gente não precisa falar. Está tão lá dentro, tão fundo que embarga a voz. (Mas algum dia eu conto tudo).

Quando eu conto da infância, é como se redescobrisse o mundo. Meu mundo era pequeno, feito de limitadas trilhas em meio a um bosque cheio de surpresas. No entanto me parecia imenso - cores, brilhos, cheiros, texturas, os veios das folhas, o macio das pétalas, a frágil beleza das libélulas, o verde-luz das terríveis lagartas de fogo, as joaninhas que, postas no braço, faziam cosquinhas, o balanço que voava altíssimo, até alcançar a caramboleira do vizinho. Fascinava-me a beleza escondida nas pequenas coisas: - um galho aparentemente seco onde minúscula folhinha verde translúcida se oferecia aos nossos olhos, as ordenadas fileiras de formiguinhas tão louras que quase nem se viam a descer, apressadinhas, a parede de azulejos. De repente, uma ‘conversinha’ aqui, outra ali e elas, vupt, se dispersavam. E lá  vinha Erotildes com um pano úmido, meio encardido a ‘limpar’ tudo. Limpar?

E havia um porão. Escuro. Quando eu ia ao porão, ia assobiando bem forte. Lá moravam fantasmas, esqueletos, bruxas - o que era comprovado por estranhos estalidos, por um bafo gelado saindo de um esconso qualquer, pela pilha da lenha com suas farripas perfurantes (isso antes - depois veio o fogão a gás, bem menos interessante).

Na entrada da casa, após a escadaria, havia um hall em cujas paredes, em um pálido lago azul, boiavam nenúfares com lindas flores. Nas margens, garças pousadas numa perna só ou voando, folhagens longas como espadas ou em leque, e um céu tão pálido quanto o lago. Aqui e ali um descascado envelhecia a pintura e lhe dava um ar de misteriosa irrealidade. Hipnotizava! A certa altura da minha vidinha, eu fui seduzida por aquela paisagem. Quanto mais eu a olhava mais via minúsculos detalhes - como se a cada dia surgissem - antes não vistos. Imaginava abelhas zumbindo entre as florinhas. A cena enchia-se de vida e movimento diante de meus olhos. De repente a parede toda se cobria  de uma luminosidade opalina, e uma névoa esbranquiçada flutuava…  se movia (talvez nuvens de pequenas fadas com azas de libélulas invadissem a paisagem) (sim, azas com Z). Vaga vertigem se apossava de mim. Sonhosas lendas invadiam minha cabeça. Eu entrava na paisagem e me perdia por horas, naquele mundo - meu refúgio!

Após algum tempo, quando eu desaparecia, logo sabiam onde me achar: imersa na paisagem da esmaecida pintura. Aos 5 anos eu  descobrira a magia da solitude, a silenciosa beleza de estar a sós…

… anos depois a parede foi pintada. Restou, semioculta na pátina do tempo, uma sonhadora menininha com azas de libélula.

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