Na dança das sombras

… a Palavra é ‘claridade’. Define sentimentos, ilumina o entendimento, amplia a imaginação, acende (ou ascende?) a percepção...

Neste exato momento, apesar de minha aparência normal e prosaica de sempre, estou imersa num turbilhão de sentimentos. Procuro o nome das coisas. Como presas num furacão passam voando, aloucadas, as palavras que as definem. Envolvida nesse vendaval interior, não logro alcançá-las.

Quando minha vida apenas amanhecia, aos primeiros albores do sol de minha infância, descobri que palavras são fascinantes - aquela fisgada no coração, quando eu me lembrava de Joãozinho (‘elevado’ a querubim), tinha um nome: ‘saudade’. O pintinho amarelinho, que não parava um instante de comer o milho moído, era ‘insaciável’. Quando a minha verdade era acusada de mentira - ‘injustiça’. ‘Trambolho’ era aquela mala velha que já não servia, estava sempre atravancando o ‘armário das baratas’ (de guardar tranqueira), e papai não deixava jogar fora.

E mais: a palavra podia guardar inúmeros secretos sentires. Era só cavar um pouco e a gente descobria um poço sem fundo.

Na salada dos sentimentos, quando prevalece, por exemplo, a palavra ‘pepino’ (nos dois sentidos), a gente acaba eructando gosto do pepino o dia todo - argh! Assim, mesmo em meio à alegria, em momentos prazerosos, a gente percebe o coração apertado, tropeça na pedra no meio do caminho, e o sorriso se transveste num suspiro fundo.

Há também desarmonias. Hoje, por exemplo, após acirrada discussão, surgiu-me a palavra ‘furiosa’, mas percebi, com surpresa, que não estava magoada ou triste. Só furiosa!… Buscando analisar-me, entendi: o que me deixara ‘furiosa’ fora meu temperamento (explosivo, impulsivo… aquele dos ‘oriundi’ - “ma che, maledetti”), mas, como no fundo sou de paz, não guardo rancores, não alimento o lobo mau, e dificilmente algo realmente abala minha alegria interior (“...porque nasci, nasci para bailar”). Sim. Nasci pra ser feliz e cultivo esse dom, mesmo quando chove granizo.

Sou eu um poço de incoerências? Ou todo mundo o é?

Minha linda e querida mãezinha, por exemplo, era mignon, linda, delicadíssima como um biscuit, de fala macia sempre. Sua palavra mansa, porém, tinha uma autoridade inata que não admitia réplica, negação ou resistência e, querendo ou não, a gente se deixava subjugar. De repente ela crescia!

É isso que eu acho cativante no ser humano - essa multiplicidade. E escolher entre toda gama de palavras as que  identificam todas as nuances do sentir é um desafio. Por vezes, ao escrever, não descanso até encontrar a palavra que traduza, com exatidão, o que quero dizer.

Quando o Farol de Santa Luzia, de altaneiro charme, qual alva garça pousada sobre a rocha, gira seu potente facho de luz sobre a infinitude do mar (aviso aos navegantes) e, sempre rodopiando sobe e desce o Morro do Moreno, entra pelas janelas da vila, resvala sobre o Convento e faz dançar as sombras, ilumina esconsos, desperta ensombros, assombra as crianças... esse esvoaçar de luz, essa dança de claridades e escuridão, lembram-me a alma humana com seus lampejos que descortinam palavras como: presságios, crepúsculos, anseios, sonhos e até insônias - porque ninguém passa a vida em brancas nuvens.

Felizmente a esperança não é uma simples palavra - é um desabrochar de expectativas, tão ‘verde’ e tão resistente como o matinho verde que brota nas gretas das calçadas, nas frestas dos muros, ávido de vida! Se nuvens escuras toldam o céu, subitamente, um Sol deste tamanho sai de seu esconderijo detrás das nuvens e nos inunda de luz, de alegria, de cores e brilhos. Apaziguado, o coração se expande. As sombras se recolhem aos bastidores.

Na dança das sombras, a luz é alegria sem palavras!

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