Certa vez, em nossa casa - e, quando digo “nossa casa”, refiro-me à eterna casa da infância, aquela onde fomos felizes, onde a inocência nos amparava, e a realidade era sempre bonita, onde confiávamos plenamente que a verdade dos adultos era a verdade do mundo, onde os parâmetros eram simples : ‘- isso pode... aquilo não pode’ - e umas palmadas bem dadas [que não doíam] dissolviam as dúvidas...
Ah, meu Deus, como tudo era simples!
Gosto de viajar no trem de antanho - (ele anda pra trás): revisitar a infância, perambular por entre as suaves cores do passado... Saudosismo? E por que não, ora bolas; e tudo não é passado? Onde está o presente? Na última letra que acabei de digitar? Para mim, passado e presente são tempos paralelos. O futuro que tento manipular, que crio na imaginação, que planejo, ora se cumpre, ora não. Está sempre nos pregando peças e talvez rindo-se de nossa presunção. Tantas vezes o organizo, passo a passo, vem a mão do invisível, escreve torto e bagunça tudo. Não raro o resultado é melhor que o esperado - ou completamente diferente. O passado é meu porto seguro, minha felicidade tangível. É a travessa menina de tranças que está sempre ao meu alcance.
Certa vez, em nossa casa (agora retomo a história que eu queria contar), aconteceu um galinho (não confundir com galhinho - ‘filhote de galho’), era um jovem galo branco, já quase “al primo canto”. Chamava-se Chantecler. Quem o batizou foi minha irmã Yamara - a “gênia” da família - poeta sensível, coração de ouro, a bondade personificada! - (nesse então éramos seis - eu a sexta). Ela me explicou o porquê do nome escolhido e mostrou-me seu livro de francês onde Chantecler luzia - sim, um poema o iluminava - e, creio, foi a semente do meu amor por tudo o que fosse francês.
O galo do poema ufanava-se de seu canto claro (chant clair). Seu poderoso clarim despertava o Sol todas as manhãs. Orgulhoso de si mesmo (rempli de soi même), ele se acreditava responsável pelo despontar do sol cujos raios de luz acendiam cores, brilhos, nuances, claro-escuros em toda a natureza. Mas aconteceu que, certa vez, o sono devia estar tão gostoso que o galinho dormiu mais do que devia, passou da hora. Quando acordou, o Sol já brilhava em todo seu esplendor e... pobre, pobre Chantecler “quelle désilusion!” - o Sol não precisara dele para despertar!
O nosso Chantecler já estava taludinho, em tempo de ensaiar o “primo canto” quando chegou; inflava o peito, arrepiava as penas e solfejava algumas notas um tanto falhas, meio rouquenho. Mas o galináceo chegara pra reinar. Normalmente os bichinhos que tivemos: um sagui careteiro, periquitos barulhentos, Diana, charmosa cachorrinha, um tatu que se enfurnava num grande baú de zinco cheio de terra... todos viviam soltos no quintal. O galinho, não; xodó da família, circulava livre pela casa. Quando papai depois do almoço se sentava na pata-choca (cômoda poltrona de madeira) e lia o seu jornal, Chantecler empoleirava-se em seu ombro e ‘lia’ junto, muito atento.
Era costume recebermos a visita semanal de um tio idoso, meticuloso, mas paradoxalmente alienado - mesmo assim bem amado. O detalhe incômodo é que ele era um bom vivant (quem pode, pode) (vivia de renda) (sorte a dele). Erudito, falava cinco idiomas, tinha uma biblioteca de dar inveja aos que têm fome e sede de leitura, e não tinha nenhuma obrigação na vida. Seus afetos recebiam visitas periódicas, sempre em dias certos, planejados. Nós éramos os agracia… não; os agrassagrados das quartas-feiras. Com toda essa bonomia, você pode facilmente tentar imaginá-lo, caro leitor, uma figura condizente com a vida mansa: vejamos: 1. gordinho, guloso e lustroso, 2. terno de linho branco (combina, pois não?), chapéu de Panamá (sem charuto - por Deus!), 3. manias: lavar as mãos, lavar as mãos, lavar as mãos, 4. nos bolsos, para nós, crianças, balas de alcaçuz Schneckel, pretas, em formato de caracol. Segundo ele, evitavam lombrigas. Irreal!
Sim; como bom proseador era imbatível - de conversa sempre agradável, vasta cultura, amava a música, suportava bem as músicas italianas, os “Carusos” que papai ouvia, mas preferia as “Maurice Chevalier” francesas. Formal, educadíssimo (tipo que faz leve reverência e beija a mão das damas. Quanto ao seu alheamento (afinal, ninguém é perfeito) - isso causava alguns transtornos. Gorducho e suarento, após subir a ladeira e as escadas arfando, ele chegava tão exausto que simplesmente desabava na primeira poltrona que via. Era ele chegar e todos corriam a tirar de sobre as cadeiras tudo o que lá fora deixado: livros, bolsas, a cestinha de costura cheia de agulhas, alfinetes de cabecinhas coloridas, tesourinha (oh, céus, que perigo)...
Os chapéus, espavoridos, corriam para o cabideiro (já mais de um virara pizza).
Chantecler, sempre livre e despreocupado, passeava de lá pra cá, ciscava migalhas sob a mesa do almoço, saltava sobre a pia da varanda e bebia água no bico da torneira, esvoejava de um móvel a outro, entre rápidos pousos. A mim, meninota irrequieta, costumava seguir como um cachorrinho; se eu corria, ele corria, agitando as asinhas, se eu dava pulinhos, ele também os dava, se eu sentava no chão ele se aconchegava no meu colo e até na minha cabeça.
Era bem divertido! Em poucas semanas após sua chegada ele iniciara os ensaios para o “primo canto” - falho, rouquenho e desafinado, mas logo logo (expectávamos) soaria como um clarinete para o despertar do sol. E Chantecler se sentiria orgulhoso com a proeza e, ufano, avolumaria a plumagem do peito, empavonado - para parecer maior -, como o faria um dia ao apaixonar-se pela primeira franga - porque, tudo o indicava, seria um grande sedutor. Teríamos que improvisar um galinheiro no quintal, providenciar franguinhas coquetes para ele reinar quando chegasse a hora. Mas, por enquanto, seu amor éramos nós.
Naquela quarta-feira o visitante chegou, como sempre bufando de calor pelo esforço da íngreme ladeira e, pesadamente desabou na poltrona mais próxima. Chantecler dormitando aconchegado, desavisado, teve o mesmo destino do chapéu:
(Daquele fatídico dia em diante, o Sol nunca mais acordou na hora certa).