“Pela estrada plana, toc, toc, toc,/ guia o jumentinho uma velhinha errante/ como vão ligeiros, ambos a reboque, antes que anoiteça, toc, toc, toc,/ a velhinha atrás, o jumentinho adiante...”
Nesse delicioso poema, Guerra Junqueiro, o grande poeta português, cria dois personagens tocantes: a velhinha de 80 anos, alegre como um passarinho, e seu burrinho. “Vai sem cabeçada, em liberdade franca,/ o jerico ruço duma linda cor;/ [....] tange-o toc, toc, a moleirinha branca/ com o galho verde de uma giesta em flor.”
Alguém o musicou. Mamãe o cantava, com sua voz cristalina, e eu me deliciava!
“Toc, toc, e vendo o sideral tesoiro/, entre milhões d´astros o luar sem véu,/ o burrico pensa: Quanto milho loiro!/ Quem será que mói estas farinhas d´oiro/ com a mó de jaspe que anda além no céu?...” Existe algo mais lindo e tocante?
Outros burricos foram as estrelas de livros que me encantaram: O burrico Lúcio,³ trotando em minha infância (Vaz de Barros), o burrinho pedrês, de Guimarães Rosa, em Sagarana³ – “miúdo e resignado, muito idoso, beiço inferior caído”..., o pouco mencionado burrinho do varão São José, tão paciente manso e silencioso como ele (imagino), a transportar sua preciosa ‘carga’ a caminho de Belém: Maria e o Bebê, ainda imerso nas águas tépidas de seu abençoado ventre.
E o burrinho Quixadá? Ah, o burrinho Quixadá… diretamente dos sertões nordestinos, fugindo da impiedosa seca, pisando o solo crestado, a seguir um bando de esquálidos retirantes com suas trouxinhas, seus restos de carne de sol (seis bocas, um trocinho pra cada um ficar mastigando por meia hora), seu inseparável e fiel cãozinho. Encontra um amigo de infortúnios: o boizinho Godofredo (ossos rasgando a pele ressequida, olhar de mansuetude e resignação). Proseiam. Nos diálogos cheios de sabedoria e penúria, fulgem lampejos de esperança brotando tão verde como o capim entressonhado.
E tem mais burrinhos? Ah, tem! Diretamente da Espanha - Camping Olé, Valência: quando ao cair da tarde, e tudo era ouro no poente, lá vinha Chumare: sua barbicha gris, os ralos fiapos de cabelo branco e a burrinha Paloma. Atrás, afoito e inquieto, um bando de crianças em alarido - Chumaree!... Chumaree!… eu primeiro… também quero... O passeio na burrinha Paloma era um atropelo - todos a queriam ao mesmo tempo. Chumare, aturdido, arranjava-se como podia para contentar a todas. Paloma, cônscia de sua carga preciosa, abanava as orelhas e zurrava contente.
E eis senão quando surge, certo dia, luciluzindo na prateleira de uma livraria, entre centenas de livros - Platero y yo, a piscapiscar para mim - (‘relinchando que o levasse’ - logo entendi por quê). Com inexplicável timidez o peguei. Se a poesia já me é irresistível, o delicado afeto entre um burrinho e seu dono me fascinou. Feito de luar e prata, Platero tem luz própria ou reflete a luz de seu criador. Logo minha paixão se materializou em ambos, sim, em Platero, o burriquito e no excêntrico e lírico poeta espanhol, Don Juan Ramón Jimenez (Nobel 1956). Impossível distingui-los um do outro; quem sabe seja Platero, o alter ego juanjamonesco de seu amo.
Ele, de rosto fino e olhos profundos, todo vestido de preto, um pequeno chapéu, também preto, a barba de profeta, montando seu burrinho, é seguido pelos ciganinhos a gritar “mira el loco!... mira el loco!...” Tudo se passa no lugarejo onde nasceu e que sempre amou: Moguer, em Andaluzia.
Moguer é uma cidade quase fantasma. Após a decadência de seus ricos vinhedos devorados pela filoxera, o porto (entulhado pelo aterro de uma mina de cobre) desapareceu, reduzido a um pântano; um restolho abandonado, a apodrecer sob destroços, abrigo de dezenas de pássaros que enchem o ar com seus gritos agudos e o chão de excrementos.
“Platero és pequeño, peludo, suave; tan blando por fuera, que se diria todo de algodon”. Vivem, os dois - Platero e Juan - a vida simples da vila, bolorenta e sem novidade, com suas ruazinhas tristes, a praça, a cisterna, a torre, as estradinhas subindo morro acima, numa paz plena de melancolia, “contagiada de eternidade”. O maior encanto de Platero é sua meiguice, seu alvoroço infantil. Está sempre contente - inundado de felicidade. Todos o conhecem; a fonte velha, o poço, o pinheiro solitário, o tenebroso ossário (onde jazem para morrer os cães doentes ou loucos), o cemitério, as madressilvas (que ele acaricia de leve, com o focinho) e as brancas borboletas... num voo onde o real e o irreal se encontram.
Platero, burrinho marchador, que leva a passear a alma do poeta...“Lo llamo dulcemente: ‘Platero!?’, y viene a mi com un trotecillo alegre que parece que se ríe...” Mas às vezes se assusta, “entra no riacho, pisa em cima da lua e deixa-a em pedaços”.
À noite, Juan o traz de volta à estrebaria onde Diana, a cachorrinha branca, já o espera para aconchegar-se a dormir entre suas patas. Platero, sedento, sorve em grandes goles “dos cubas de água com estrellas”.