No topo do tempo

Moramos no Peru por três extraordinários anos. Nossa imediata atração pela cultura incaica nos levava a excursionar pelos rincões mais inóspitos, por trilhas quase impossíveis de trafegar, a escalar paredões, a descobrir tesouros e em todas as situações: grávida, ‘parida’, com bebês, nada nos impedia de dar o passo além da perna.

Programamos para uma das férias um largo roteiro arqueológico: Chavin, Sacsahuaman, Paramonga, Tampo Machay, Tiahuanaco, Pisac, Wiracocha... e, partindo do Vale de Urubamba, nossa meta maior: Machu Picchu. Ao chegarmos a Urubamba, fomos informados de que o trem - único meio de alcançá-la - estava em greve. Inconformados, ocorreu-nos (e experimentamos) uma solução maluca: colocarmos nosso fusca sobre os trilhos do trem. Isso feito demos partida, rodamos por alguns metros - aos solavancos, devido aos dormentes. Logo percebemos que, quando estes estavam mais separados, as rodas do carro ficavam presas. Graves questões surgiram... e se a greve acabasse? E se o trem voltasse? E como seria quando os trilhos estivessem sobre um precipício? Não precisamos pensar muito para percebermos que aquela era, sim, uma ideia estapafúrdia, estrambótica... e perigosa!

Foi então que meu marido decidiu ir sozinho, a pé, com um guia índio. Eu adoraria a aventura, mas, com  uma filhinha de dois anos - Ina -, e grávida de cinco meses, o jeito seria contentar-me com os arredores, que também ofereciam pitorescos aspectos da vida indígena e da incrível geografia do lugar. Fiquei, pois, no aconchegante Hotel Urubamba, com sua lareira quentinha à noite, jogando pingue-pongue de dia com uns jovens em excursão, passeando com a Ina, curtindo aprazíveis momentos.

Após o quarto dia, já ao anoitecer, chega ao hotel um índio afobado, trazendo um bilhete do meu marido: “! - ...que no dia seguinte haveria um trem para Machu Picchu e ele lá me esperava”.

O gerente, sempre gentil, propôs levar-nos bem cedo, em sua camionete, até os trilhos, por onde passaria o trem - um lugar indeterminado (não havia estações). Tivemos sorte; apenas chegados... tchuco tchuco... logo surge a Maria Fumaça de um vagão só. Acenamos com um lenço... O trenzinho parou. Subimos (eu, nenê, mochilas). O trenzinho partiu.

Investigo o vagão apinhado de gentes, cestos, bichos e cheiros: (cheiro, não: inhaca da braba) um bafio denso, pegajoso, sufocante. Preferi sentar-me fora, nos três degraus da pequena plataforma, agarrada à minha filha e às sacolas, a observar, com acesa curiosidade, as cenas mais lindas e raras: cholos e cholitas em roupas coloridas, ponchos bordados, estranhos chapéus, sacos que se moviam, preás, patos, galinhas.

Uma cholita alimentava seu bebê de forma curiosa - mastigava bem a comida, depois a punha em sua boquinha (avidamente aberta, como bicos de passarinhos no ninho). Outra índia abriu uma canasta cheia de lindos patinhos amarelinhos para dar-lhes de beber. Como? De modo bem prático: ela enchia a boca de água, inclinava a cabeça para trás e, um a um, punha os patinhos a beber em sua boca. De dentro de um saco amarrado aflorava a cabeça altiva de um filhote de lhama com pompons coloridos nas orelhas. Uma velha, ao levantar-se, deixou entrever - escondidos sob as camadas de suas amplas saias superpostas - uma colônia de preás que ali se abrigava. Bichos e gentes, gentes e bichos. Eram todos irmãos!

De repente, com estranhos bufidos, o trem parou num arremedo de estação perdida em meio ao nada - apenas uma casinhola de madeira. Um homem afobado acenou-me, gritando que eu descesse, que meu marido já deixara Machu Picchu; fora informado por rádio. Sem pensar, sem questionar (ele nem mesmo perguntara meu nome), peguei bebê, sacolas, pulei fora, e o trem partiu. Olhei em torno. Não havia “entorno”… ermo total!

- E a que horas volta o trem?, perguntei.

- Não volta, respondeu o “agente ferroviário”. A greve continua.

Resumo da ópera: ali não havia nada, não havia estrada, não passava ninguém... nem mesmo o trem... por tempo indeterminado. A “civilização” estava a três quilômetros dali, numa minivila. Teríamos que ir a pé: eu, sacola, a piqueninha e um “guia” improvisado: um “cholito” de uns doze anos que só falava quétchua. Eu levava Ina nas costas, em uma manta indígena (que há muito adotara a moda deles, e que tem muitas vantagens: é cômoda, deixa os braços livres, e a criança fica bem aconchegada).

Seguimos por um sendeiro deserto serpeando entre esparsos arbustos, até que surgiu a vila. A “vila”: um apanhado de choças e botecos. A maioria dos habitantes mal falava espanhol. Atônita com minha inusitada presença, surgida do nada, logo uma aglomeração nos cercou. Pelas minhas perguntas, informaram-me afobados:

- Aqui não temos pensão e nenhum transporte; só o caminhão fornecedor que “veio ontem” e só volta “na semana que vem”.

- E telefone? Pergunto eu: ..ahnnn?!?

Eu estava em maus lençóis. Meu marido, ao chegar ao hotel, não me encontraria, pensaria que eu estaria segura em Machu Picchu... e eu, naquele ermo, sozinha com a criança. Caramba! (Sai dessa, Marilena.) Apelei pros céus: “Virgenzita de La Puerta! Ayudame...”

Não é que ela me ouviu? O instantâneo milagre se fez luz na estradinha - um fusca cinzento! Não um... O fusca cinzento de meu marido (mein Mann) - o ‘gringo’… que já ia passando direto, sem me ver entre os cholos, freou assustado quando quase me joguei sobre o carro.

Assim fora: para economizar quilômetros antes de seguir a pé até Machu Picchu, ele deixara o carro na última fazendola, perto da trilha incaica por onde seguiria. Ao saber que um comboio extra iria chegar, tratou de enviar-me um bilhete. O tal índio entregou o bilhete quando bem lhe aprouve! Após três dias de espera, sem notícias, e achando que eu desistira, ele voltou. Nem de longe imaginara que iria me encontrar “donde el diablo perdió el poncho”.  Perplexo, estarrecido,  meu marido se perguntava - onde nos procuraria quando, ao chegar ao hotel, desse por nosso sumiço?

Por um triz um final feliz!

Bem perto daquela vila ficavam as ruínas de Ollantay-tambo e as queríamos visitar. Impressionante fortaleza que, além de sua história bélica, encerra a lenda do trágico amor do general Ollantay pela belíssima princesa Ima Sumac.

Informaram-nos que havia um chalé abandonado, até bonitinho, que fora construído para pouso de turistas. Mas estava sujo e em desuso. Conseguimos a chave com o “alcaide” e decidimos arranchar ali mesmo, e explorar os arredores.

Improvisei uma vassoura com galhos, limpei bem o quarto da frente, arrumei nosso “acampamento”: fogareiro, lampião, berço dobrável, colchonetes (nosso carro era bem equipado). Banhei a bebê com a água que trazíamos em garrafões... preparei o “de comer”. Absorvida nas arrumações,  tomei um susto quando olhei para a grande janela com seus vidros quebrados e empoeirados. Uma considerável multidão amontoara-se: sorrisão estampado nas caras redondas sob os gorros coloridos, riam-se com todos (ou quase todos) os dentes a cada gesto nosso. Éramos a grande atração! Tratei de limpar o quarto de trás. Como dormir com aquele povaréu risonho e colorido nos olhando?

Permanecemos no chalé por uma semana e foi maravilhoso. Até nos acostumamos a ser, no pequeno universo deles, como estrelas na janela do mundo.

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Dois anos após a experiência frustrada inicial, voltamos a Urubamba - já com duas pimpolhas saltitantes, de trem moderno e tudo. Após dezenas de excursões, as mais aventureiras, pitorescas e estranhas, Machu Picchu foi, para mim, “a joia da coroa”. Falar sobre as impressões que me causou - e que me ficaram tatuadas na alma - faz com que me transporte, para além dos horizontes da memória, ao grandioso silêncio das cordilheiras - onde me senti um dia não no topo do mundo, mas no topo do tempo.

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