Se a gente soubesse antes…
Se a gente soubesse antes… Teria medo de viver? Os fatos adversos empanariam a sutileza do belo, a ingenuidade, as surpresas, o alento, os adágios, o crescendo do que viria a ser?
Quando a gente percebe que tem um filho especial, sente uma dor muito grande - pelo profundo receio do que a vida vai lhe roubar, das dificuldades que o esperam, das superações constantes que lhe serão exigidas, dos sofrimentos que terá quando entender que é diferente, dos preconceitos e rejeições que enfrentará… Oh, céus, como poupá-lo? Como compensá-lo? Só havia um meio, logo descobri - dar-lhe a certeza de ser incondicionalmente amado! E assim ele cresceu:
Único!
Indefinível.
Sólido e diáfano
Iluminado e translúcido: meu menino de alabastro.
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Quero contar esta história e mal me atrevo. É-me difícil abranger ou relatar o abissal significado que a mansa superfície engana. Também não sei se conseguirei discernir a verdade intrínseca e chegar ao âmago da extrema simplicidade onde tudo se resume.
Meu menino cresceu. Fisicamente era um homem, com as instâncias do instinto intactas e gritando. Seu sonho: ter uma namorada. Eu já vinha pensando no assunto desde que percebera uma espécie de dor muito íntima a resvalar em seu olhar.
Mesmo sempre cercado de amigos, era um sersolitário. Não fazia parte. Não pertencia ao nosso mundo. Transitava entre o adulto e a eterna criança, entre surpreendentes laivos de sabedoria que emergiam do mais recôndito de seu ser. Mas, acima de tudo, era um ingênuo - puro, cristalino (sim; meu menino de alabastro).
Criativo, tinha suas manias bem, bem peculiares: um senso de organização fanático - seu guarda-roupa era programado de segunda a domingo, semana após semana. E a mania de me escrever bilhetes, com quadradinhos para as respostas em sugestões de múltipla escolha, a meu critério - como esta por ocasião de seu aniversário:
“Mãe - Para meu aniversário. Marque um X na resposta certa:
( ) Festa junina no quintal
( ) Rádio novo
( ) Churrasco no terraço
( ) Pizzaria com amigos
Que mundo abraçaria essa criatura adorável e misteriosa?
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Até que, num certo fim de semana, só apareceu em casa às cinco da manhã.
- Onde andou, filho? - perguntei, preocupada.
- Aconteceu um milagre, mãe: fiquei a noite toda com uma menina.
Era uma forasteira. Surgiu do nada; sem nome, sem endereço.
Fez amizade com o grupo de rapazes na pracinha e, para surpresa de todos, principalmente dele mesmo, ela o escolheu para ficar. “Ficar” era a grande jogada. Todo mundo “ficava”, menos ele. O inacreditável acontecera! Ele, que já estava conformado com sua solidão, de repente lhe cai uma nos braços - por livre e espontânea apetência.
Desfilaram de mãos dadas, mão no ombro, pra lá pra cá, como toda gente normal. Com um sorriso iluminado, exibia sua conquista, a autoestima reconquistada. Finda a noite, começo do dia, a menina se foi - sem nome, sem endereço. Esfumou-se na madrugada com a névoa da manhã. O sonho ficou, marcado a ferro e fogo no peito arfante, no peito infante. Era possível!
Todo fim de semana a chegada do ônibus era alvo de todo seu interesse. A cor laranja do ônibus acendia-se em luzes. No ronco do motor, promessas. Um vulto de mulher - quem sabe, ela? - detonava em seu peito uma rajada de palpitações.
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Dois meses. Dois meses durou o sonho. O sobe-desce das tocaias e desencantos, ansiedades e frustrações - e a esperança ainda. Mesmo que a flor da noite fenecesse à aurora, renascia viçosa em cada entardecer. E em cada entardecer - qual galetto al primo canto - se emplumava e ensaiava seu canto.
Dois meses são, no mínimo, mil quatrocentas e quarenta horas; sete milhões, setecentos e setenta e seis mil pulsações que se multiplicavam em seu expectante coração - um coração tão incandescente que, quando ele bebia água, chiava.
Dois meses se passaram. Até que...
O ônibus laranja, luminescente, avultou na rua. Gritou buzina, roncou estardalhaço - alvíssaras! Dentro, um vulto metamorfoseou-se em luz - certeza: era ela!
Ela, ela, ela pulsando-lhe nas têmporas, nas veias dilatadas pela corrida, no coração a galope, subjugando-o. Ela!
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Nem gesto, nem palavra. Só um olhar - frio, fino, fundo, fulminou em segundos a candura do menino/homem … perplexo!
Estilhaçou-se o delicadíssimo cristal.
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A caixinha de veneno para formigas foi encontrada na praia. Vazia.
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Chamada às pressas ao hospital, vejo-o, através da vidraça da UTI. Muito pálido! Não posso sequer tocá-lo. Colo as mãos espalmadas no vidro gelado que nos separa - quisera trespassá-lo. Há um cheiro de éter no ar. Tudo parece irreal e enevoado.
Procuro em minha bolsa, com dedos nervosos, lápis e papel... e, com meu amor pulsando-me nas têmporas, nas veias dilatadas, no coração aflito, escrevo, num bilhete de múltipla escolha:
“Volta Schumi (... o apelido do coração). Eu tenho propostas para você. Por favor, marque um X na resposta certa:
1 ( ) Viver
2 ( ) Viver
3 ( ) Viver
4 ( ) VIVER!”