“A história é de fadas. Não que elas apareçam (nem eu o afirmei), mas que história há de ser a deste lagarto que surdiu no Chiado?”
(Ei! Mas este “lagarto” é o do escritor Saramago; o “meu” lagarto é outro, embora tenha lá suas semelhanças.)
“Grande e verde, um sardão imponente, com uns olhos que pareciam de cristal negro, o corpo flexuoso coberto de escamas, o rabo longo e ágil, as patas rápidas” [….] “ficou parado no meio da rua, com a boca entreaberta disparando a língua bífida, enquanto a pele perolada e fina do pescoço latejava compassadamente.
Era um animal soberbo”
O sol ardia. A ruazinha, sonolenta, fazia a sesta. Cortinas corridas, persianas fechadas, excessiva claridade entorpecia. O rangido de um portão a abrir-se não afetou o ar estático. E a menina, suspensa em mistério, topou com o dragão!
(Esta “menina”, na verdade, é um pouco velha, mas é uma menina, sem dúvida alguma: o fantasma de suas tranças ainda lhe brejeiram os movimentos).
No meio da rua deserta, imóvel, avultava, surpreendente a figura do lagarto. Sua casca dura, irizada de cores, disparava brilhos, retribuía dardejos ao Sol. De onde viera? Como chegara até ali?
Era um animal soberbo!
A menina quase velha agachou-se na frente do enorme réptil. Perplexos, quase em êxtase, olharam-se longamente. A figura do lagarto sacudiu-lhe a memória onde dormitava meio século de recordações. E ela enveredou no tempo:
… : havia uma colina a cavaleiro do mar. Sobre a colina, uma casinha abandonada, toda feita de troncos redondos de um azul que o tempo descascara. Na porta, um pesado cadeado enferrujado gritava, rouquenho: não entrar!
Entraram. Pelo telhado, pelos vãos entre as telhas deslocadas - (uma inusitada fresta no portal do tempo). (Quem?… ela, Zequininho e Paíco – o primo inseparável). Dentro, difusas, como entre névoas, membranas de penumbra. Fina poeira dançava entre os fachos de luz. Vagalentas centopeias, teias de aranha tecidas com fios de prata... “formigos e formigas, lagartixos e lagartixas” – minisseres ali viviam.
Um inusitado movimento num canto empoeirado do chão atraiu-lhes a atenção - minúsculos ovinhos, amontoados, começaram a espoucar, a romper as frágeis cascas quase ao mesmo tempo, e deles saíam prontinhas, ligeirinhas, num milagre de perfeição, com seus finíssimos membros e minúsculas mãozinhas, cinquenas de lagartixinhas, a bracejar e correr em todas as direções, como se não tivessem nem pais, nem mães. Inacreditavelmente aptas para a vastidão do mundo - uma barafunda de sôfrega independência. O três, coração aos pinotes, boquiaberto espanto, assistiam ao milagre da vida!
A segunda reação do trio foi a de tentar capturar, esbaforido, algumas daquelas taruíchas ou lagartuíras (como prefiram), pois assim, dentro de algum tempo, teriam sua própria safra. Encontraram um vidro gordo com um resto de rótulo, em inglês - mais que apropriado. Apropriaram-se dele. Improvisaram uma tampa. Dentro, as taruirinhas, a se entrecruzarem desnorteadas, lembravam o “globo da morte” das motos circenses.
O dragãozinho, até então estranhamente inerte, moveu a cauda volumosa, disparou sua língua fina de duas pontas, arriscou escapulir. - ! Ah, não... reagiu prontamente, a menina; agora você é meu. - Vai ser meu amigo! (ora, todo mundo tem gato, cachorro, hamster, periquito… Ela teria um dragão.) Supimpa! Construiria para ele um castelo medieval, com ameias, torres, portão levadiço… talvez um fosso… Flâmula no pico da torre, com brasão e tudo. Uau!
Luis, de apelido “o Véio”, seu jardineiro, sempre a postos, o deteve, segurou com jeito e o levou para o quintal. Neto, cachorro, coelho, o “Véio”, ela… O dragão parecia indiferente a tantas atenções! E surgiu o primeiro impasse: a primeira providência: o quê de comer? Dúvidas, palpites, nenhuma ideia válida clareou… - O que um dragãozinho come? Taturanas de fogo? Libélulas? Fadinhas? Batatas fritas?... A realidade começou a alterar o mistério, o encantamento, o sonho de ter um excêntrico bichinho de estimação.
Pois, pois, como essa história não se passou no Chiado (em Portugal) e sim na Barra do Jucu, não houve cá o rebuliço de lá. Por aqui, ninguém mais viu - era justo a hora da sesta - não houve balbúrdia, mulheres não gritaram, carros não buzinaram, policiais não intervieram. Só imperava a quietude da rua escaldante, o sol de bochechas vermelhas e a tal menina/velha embasbacada.
Sim; a menina um pouco velha - (beirando os 80 é ainda mais menina que muita menina por aí, que nunca ninou bonecas, nunca fez comidinha com pólen de flores em “panelas” de tampinhas, nunca pulou corda até ficar roxa, nunca se quedou absorta a “ouvir estrelas”…) Talvez por isso mesmo só ela entenderia o lagarto como um presente do acaso. Mas, no caso, logo descobriu, este não fora orquestrado pelo destino: triste notícia: ...enquanto ela, lá dentro de casa, tentava descobrir algum alimento plausível, o lagarto fugiu! Como, se os muros eram tão altos? Por quê - se ela já lhe dera seu amor? Triste, desapontada, ela sentou-se num toco do quintal e coçou a orelha. Com um graveto desenhou um lagarto.
Nas nuvens buscou consolo. Sim; “tudo vale a pena se a alma não é pequena”: tivera sua “viagem no tempo” com todas as emoções vivas:… a “volta de Zequininho e Paíco” … a eclosão das lagartixas … e, de quebra, um lapso de tempo que parecera infinito. (Todo amor é “eterno enquanto dura”)
Sim; era um animal soberbo!