O fiel da balança!

A procissão se aproximava. - Ajoelha! disse a tia, e forçou-a nos ombros. A tuba com seu som cavo, as matracas, a latomia dos cantos sacros entoados por mulheres com seus negros véus, os homens metidos em opas vermelhas, portando velas protegidas por cones... era um funeral! Sobre o andor, o condenado, ainda vivo, coroado de espinhos e vestido de chagas, sangrava. O sangue jorrava, escorria e ao chegar ao solo transformava-se em pétalas vermelhas. No chão áspero os joelhos doíam. Tentou levantar-se. - Ajoelha! Impediu a tia. Ela queria chorar, mas tinha vergonha. Perguntou baixinho: - Quem fez isso com ele? - Nós! disse a tia. Nossos pecados! - Mas eu não fiz pecados, balbuciou. A tia olhou-a de narinas frementes e olhos em fogo: - Pois acaba de cometer dois: a soberba e a mentira.

O céu, de repente, fez-se escuro. Um repentino trovão reboou; gotas enormes desabaram. Muita gente correu, mas a maioria continuou a arrastar-se atrás da procissão, e seu lúgubre lamento. A tia tomou-lhe a mão com firmeza e a arrastou empós si, inflexível. Com a chuva a escorrer-lhe pelo rosto, aproveitou para chorar - ninguém perceberia.  

- Por que Deus gosta de sacrifícios? Por que deixou que matassem Jesus? Por que temos que sofrer para agradar-Lhe? [por quê… por quê… por quê…] A tia sempre se irrita com suas perguntas idiotas. - O sofrimento purifica, diz! E por tudo e por nada a tia sugere: - Faça um sacrificiozinho, minha filha. Fazer sacrificiozinhos significa ceder, reprimir desejos, calar, calar todas as perguntas e engolir todas as respostas. A chuva era vermelha. O céu sangrava “por causa dos nossos pecados”. Tentou lembrar-se de algum... Nunca  sabia ao certo se o que fazia era ou não pecado; só os que sua irmã via e dizia que ia contar. Fazia chantagens e a obrigava a fazer suas vontades: - Senão eu conto “aquilo” para mamãe. Não imaginara que “aquilo” fosse tão grave, mas morria de medo.

Estavam, ela e o amiguinho, em cima do pé de figo catando goiaba (é que o pé de goiaba era mais alto que o pé de figo; trepando-se neste era mais fácil alcançá-las). De repente ela escorregou e se esborrachou em cima de um cacho de bananas podres que alguém deixara no chão. O menino disse: - Deixa eu ver! Ela levantou o vestidinho e mostrou-lhe as calcinhas cheias de banana amassada. Aí, a irmã chegou e gritou: - Que sem-vergonhice é essa?  Desse dia em diante escravizou-a com a eterna ameaça de “vou contar pra mamãe”. E a alertou que quando fosse fazer a primeira comunhão tinha que contar tudo ao padre. Ela disse que não contava não contava não contava. - Então você vai para o inferno! (Que inferno isso de inferno!)

Durante o dia ela esquecia tudo. Pulava corda, brincava de roda, fazia dever de casa (ou não), rabiscava no muro... mas à noite, na hora de rezar, lembrava. E sofria! Ela queria muito fazer a primeira comunhão - ia ao catecismo, colecionava santinhos, encantava-se com Sta. Terezinha do Menino Jesus e com São Tarcísio, tão corajoso, brincava de gruta de aparição (um amontoado de pedras) ao lado de um arbusto redondinho, bem apropriado para uma Nossa Senhora “pousar”... Mas contar “aquilo” pro padre não contava não.

... uma enorme penitência

Era bonito o ritual quando o padre recebia Deus dentro da hóstia: um sacristão tocava a sineta, outro balançava o incensário, um aroma celeste a tudo invadia. E então o padre guardava Deus à chave no sacrário. (Enquanto isso o diabo andava solto pelo mundo - pensou baixinho, mas a tia ouviu e deu-lhe uma enorme penitência!) - Pensar assim era uma grave ofensa à bondade de Deus. E lhe explicou que os que comungam levam Deus no coração.

Deus é como um imenso sol, pensou. Uma grande hóstia de luz e calor a espalhar vida, sempre no meio do céu, para todos. Qualquer um o recebe e se aquece, e se ilumina. Quando fizer a primeira comunhão, ela também vai ter o sol no coração.

... criança não tem mistério

Todas as tardes, às 6 horas, a tia reunia as crianças para a reza do terço. Ela não conseguia concentrar-se naquele murmurinho. Seu pensamento escapulia. Um dia ficara cavilando: o mundo é uma bola solta no espaço. Quando será que estamos de cabeça para baixo? Afinal, onde é embaixo, onde em cima? Com certeza as coisas malucas acontecem quando estamos de cabeça para baixo e... a tia dera-lhe um cocuruto: - Responde, menina! - ...Santa Maria, mãe de Deus... - Como é que quem é eterno tem mãe? perguntou. - Maria é mãe de Jesus feito homem, disse a tia; Ele faz parte da Santíssima Trindade. Isso ela já sabia do santinho: um triângulo com um olho dentro, uma pomba e uma cruz. Era mistério demais! Precisava de tantas respostas e as respostas, quando vinham, eram acompanhadas de penitências. - Ô menina impertinente!        

Mas do Jesus “piquininho” ela gostava muito. Com ele se entendia melhor. Criança não tem mistério.

... dois pesos, duas medidas

A figura do padre Elias, no alto do púlpito com sua espada flamejante, impressionava! Brandia a espada e trovejava palavras terríveis sobre “os pecados da carne”. Não entendera nada. Em sua cabeça, como uma girândola, zuniam frases que pareciam sem sentido. Eva comeu a maçã, mas a eterna herança do pecado era sempre da “carne”. Queria entender o jejum da semana da paixão. Mas então, por que nos outros dias podia? Sua pergunta à tia ficara sem resposta (só um olhar furibundo). Mas tem coisas que a gente começa a entender mesmo sem explicação. Um lampejo foi clareando clareando quando ela, a mando da tia, fora buscar umas couves na horta. Ao ouvir uns gemidos, pensando que era a cachorrinha que estava por parir naqueles dias, resolveu espiar e dera com a empregada e o jardineiro em estranha luta corporal. Voltara em disparada, sem as couves.

- Menina imprestável! nem distingue uma couve de uma alface? E a tia fora ela mesma buscar as couves.  No dia seguinte teve que ajudá-la na cozinha. - Onde está Matilde? perguntou. Matilde, a empregada, fora despedida. E então ela cometera a imprudência de perguntar... - E o jardineiro? O pesado silêncio da não resposta disse tudo; o jardineiro acabara de surgir na porta com um maço de cheiro verde na mão. Proibida de comer a sobremesa por ser insolente, passou a tarde rezando os terços impostos como penitência e ruminando suas descobertas. Era besta de perguntar mais alguma coisa?

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