Somente para os olhos de vocês

Uma vez, escrevi uma crônica, publicada na Folha de São Paulo. Me disseram que a ideia da “alma capixaba é como uma moqueca”, na frase final, foi depois aproveitada por alguém, com sorrateiras modificações. Não mencionaram por quem. Fofocas literárias à parte, juro que eu não quis saber e nem me importei. É assim mesmo. A gente escreve e solta as ideias no ar, quem tem senso ético cita e recita; quem não tem trapaceia e dá um jeitinho de se aproveitar. Bem, aí vai a croniquette em questão. Agora repetida em nosso “Tértúlia”. Somente para os olhos de vocês.

Corpo, alma e espírito santo

Vivemos numa curva suave, debaixo do sol, do lado oriental do Brasil. Indo para oeste, o capixaba se depara com aquela corrente de pedra negra e verde que é a serra do Caparaó; para leste é só o mar. Além disso, entre a serra e o mar, temos duas metades de terra que o rio Doce atravessa como uma artéria grossa: a do Sul e a do Norte. Na do Sul, embutido, está um pequeno coração: Vitória, a Ilha. Esta é nossa cartografia de corpo. Justa, mínima, concisa. E sobretudo resulta muito elegante. Pois nada de esparramado sobrevive entre nós.

Desde os tempos de capitania, neste espaço exíguo somos habituados a conviver com os contrastes. Dessa forma, desenvoltamente, com facilidade, pulamos alegremente de um lado para outro: da praia à montanha; do frio ao calor; do ouriço-do-mar à orquídea; da planície ao pico; do asfalto ao navio; do urbano ao suburbano; do atual ao antigo.

O tempo, o vento sul e a topografia esculpiram a nossa matéria. Daí, esta espécie de zen em nosso desprendimento: a generosidade com que aceitamos as incursões de nossos vizinhos de mapa; a volubilidade com que praticamos os nossos defeitos; a afetividade de nossa alegria, que não é uma alegria carnavalesca ou palhaça, mas a alegria de quem está muito contente em ser o que é de verdade. É aquela alegria de quem está muito contente em si mesmo. Pois o Espírito Santo é um estado de graça e a alma capixaba é como uma moqueca: um mix gozoso de todas as fronteiras, de todas as margens, de todos os estilos.

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