Estudo sobre três livros escritos por mulheres - todas nascidas nos anos oitenta - que se destacam na melhor safra de jovens poetas do Espírito Santo.
Ingrid Carrafa é poeta e atriz. Livros publicados: Entre rosas e abismos. Vitória, ES, Penalux, 2015; Não joguem pedras na Geni. Vitória, ES, Independente, 2016; E quando borboletas carnívoras dançam no estômago. Vitória ES, Maré, 2021.
Lívia Corbellari é poeta e jornalista. Mantém o projeto literário “Livros por Lívia” e faz parte do núcleo editorial da revista Trino, sobre literatura brasileira contemporânea. Carne Viva. Vitória, ES, Cousa, 2019, é seu primeiro livro publicado.
Cora Made é poeta e produtora cultural. Livros publicados: Fenda e vulcão. Vitória, ES, Maré, 2019; Zinabre. Vitória, ES, Pedregulho, 2022.
Apesar de autoras singulares e advindas de profissões diversas, os poemas apresentam muitas semelhanças que se entrançam a ponto de parecer que uma única temática os sustenta: o modo escolhido pelas autoras para dar centralidade às ideias. Talvez a semelhança mais importante, bastante digna de evidência nesta resenha e que desejo enfatizar, é que os três diferentes livros carregam a marca de uma única estética, que se pode chamar feminista. Aqui entendendo a estética como um elo indissolúvel entre a vida, a arte e a subjetividade.
E como isso se dá? Pelo testemunho intrínseco que os versos das três poetas, em sua imediatidade contemporânea, dão a quem estuda ou acompanha as mudanças ocorridas longo da História das Mulheres até chegar ao ponto de hoje. São versos que permitem exibir experiências concretas de vida, revertidas em palavras em que repercutem as formas atuais de culturas e de sociedades, em contraposição ao que a maioria das escritoras conseguiam externar em seus textos em séculos passados. No contexto dessas transformações, é inegável a influência do movimento feminista, quanto ao processo de valorização da subjetividade na produção literária feita pelas mulheres.
Para além de encorajar a denúncia à sujeição familiar, social, política, econômica e outras em que eram mantidas, o movimento feminista encorajou também as mulheres a expor seus escritos ao público, primeiro de maneira tímida, em jornais específicos, depois no espaço do livro. Coisa que, no Brasil, aconteceu a partir do século XIX, quando apareceram periódicos compostos por escritoras e redatoras engajadas na defesa do sufrágio universal, como o Echo das Damas, o Jornal das Senhoras, O Belo Sexo, A Mensageira e outros.
Não se pode esquecer que, apesar da aparência de liberalidade atual, com que as culturas e as sociedades cercam hoje as mulheres que escrevem, ainda existe uma fatia da crítica que não renuncia à primazia da literatura feita por homens. Ou seja, grande parte das escritoras continuam a reivindicar “um quarto só seu”, tal qual Virgínia Woolf dizia, em 1929. E ainda existe quem pense que a elas deve ser reservado um puxadinho nos fundos, um espaço literário adjunto, para que se recreiem escrevendo ou para que exercitem de forma escrita seus dotes de doçura, candura, meiguice et caterva.
Entre tantos estereótipos, herança de um sistema patriarcal, se incluem ainda os modelos de corpo feminino voltados para os mitos da sensualidade, em que existem certos tipos apresentados como objetos sexuais liberados, e outros destinados ao controle de submissão, de repressão dos desejos e das emoções. A duplicidade (ou docilidade) a respeito de corpos não ocorre sem violência. Esta é uma constatação que transparece nos poemas de Ingrid, Lívia e Cora. E elas se esmeram na construção dos fragmentos e detalhes em busca de um meio próprio de expressão que dê conta disso:
“Fazer literatura é uma gozada solitária” (Ingrid, p.13).
“Só é mudança se passar pelo corpo” (Lívia, p. 12);
“Se for pra errar a mão que seja pelo excesso, escassez jamais” (Cora, Intensidade, p.93).
As três poetas igualmente resolvem as contradições que cercam a literatura feita por mulheres por vezes com ironia, por vezes com astúcia, por vezes com condescendência, por vezes com dor, mas sempre com a consciência aguda de quem sabe do que fala, e de que o que fala reflete a condição de quem se assume como como proprietária de seu corpo e de sua sexualidade, vivenciando e traduzindo experiências, sejam amargas, sejam deliciosas:
“Já fui chamada de vagabunda, louca, sem juízo, insubmissa, destrambelhada, feminazi, puta” (Ingrid, p.42).
“Já morri mil vezes / Mas sempre volto para mim (Lívia, p.58).
“Eu sou a mulher do amor eterno / Mas não sou a garota perfeita / Tenho uns defeitos meus / E outros que comprei na feira...” (Cora, Eternidades, p.77).
Assim, exercitando uma estética que se desenrola em um lugar de posições múltiplas e variáveis dentro do campo de criação de cada uma, as três poetas fogem às armadilhas das identidades de gênero, binárias ou não, que seria fácil de apreender no dizer de uma “literatura feminina”, e seria capaz de “naturalizar” atributos das mulheres já tão “naturalizados” pela cultura literária patriarcal. É pelo avesso que elas tratam dos assuntos geralmente atribuídos à fraqueza e à docilidade dos sentimentos:
“Eu o amava / Mas também me amava / E viveria comigo mesma por muito mais tempo” (Ingrid, p.95).
“e eu não sei fingir / igual a minha mãe / e a mãe dela / mas você sabe machucar / igual ao seu pai / e o pai dele” (Lívia, p.23).
“Do que mais preciso. / Do que sou por dentro. / De ser eu sem ti. / De me ver em mim”. (Cora, Balão, p.74).
Lendo os poemas desses três diferentes livros, têm-se a impressão de que foram escritos em um único e misterioso pacto de entendimento da condição humana, do desejo indissociável de ser alguém vivo, múltiplo e desejante:
“Antes a loucura de 7 bestas feridas / Com a lágrima retida. / Antes secar de que virar desejo morto” (Ingrid, p.16).
“Não correrei o risco de perder minha alma / Não perderei o viço de minha idade. / Não me abandonarei aos braços da sorte. / Só desejarei a morte quando ela me quiser” (Cora, Poemas em fluídos, p. 70).
“Meu corpo / que você diz frágil / sustenta toda minha força / me suspende acima daqueles que não acreditam que posso voar” (Lívia, p.13).
Enfim, ler esses escritos de jovens mulheres, já tão seguras do domínio mágico da poesia, é um sopro de resistência e crença no poder das palavras para mudar o mundo. Pode-se dizer, então, que a literatura que é feita por elas soa em uníssono, é bem-vinda e mobiliza uma força estética inventiva, capaz de criar espaços para os mais variados modos de ser feminina, de viver e de gerenciar a própria vida.