São os sonhos revelações?

A arte existe porque a vida não basta.
(Ferreira Goulart)

Na véspera aquela mulher se olhara ao espelho. Surpreendeu-se. Era a mesma imagem que vira todos os dias ao longo dos últimos anos - pele muito clara, cabelos brancos ondulados como os de sua mãe, olhar inquiridor -, nada que pudesse justificar seu espanto. Era a mesma e era outra. No entanto, gostou de ter-se visto assim, tão envelhecida e real. Parecia ser essa a primeira vez em que se via de verdade. Lembrou-se do poema de Cecília Meireles, Retrato:

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?

Nostálgica, lembrou-se ainda daquele filme a que assistira dias antes sobre a fugacidade da juventude e da beleza e sua misteriosa e ambígua relação com o desejo e o amor. Quando envelhecemos, o brilho se esvai, vinha ela descobrindo dia após dia.

Passou, devagar, o dorso da mão sobre a própria face. Sentiu-lhe a suavidade a despeito dos finos sulcos trazidos pelo tempo. Deslizou os dedos magros e longos de pianista por entre os fios de cabelo já escassos com a passagem do tempo, suspirou fundo e saiu. Dormiu feliz após a festa daquela noite.

Madrugada ainda, repentina e solitariamente a mulher acorda de um sonho que lhe causara êxtase e, uma vez mais, espanto. Entremeadas às imagens oníricas ainda tão vivas e pungentes, surgem lembranças dos amores impossíveis das canções do “amor cortês” aprendidas na escola. Por que persiste ao longo de séculos esse fascínio por essa forma idealizada de amor, o fin’amor, ela se pergunta, buscando compreender agora, tantos anos depois, que relação há entre aquele sonho com um grande amor do passado e essas práticas literárias que marcaram a história da literatura no Ocidente.

Dias depois, segundo seu relato no divã, vê sentados ambos - ela e seu amor de outrora - num banco que ladeava grande mesa no centro de uma das salas da casa na fazenda, por cujos janelões se alcançavam o entorno que se abria para o jardim e o riacho logo adiante, margeando as frondosas e perfumadas mangueiras do quintal. Conversam. Olham-se com ternura e se beijam. O tempo parece ter sido suspenso. Tudo parece ter-se distendido, condensando o antes e o depois. Repentinamente surge uma menina alegre e afável, que a eles se dirige com um sorriso largo. Sua presença interrompe o idílio; mais, interrompe o sonho.

Imóvel, dentro ou fora do sonho - não se sabe -, a mulher busca reter o calor e a doçura daquele abraço, daquele mágico, irreal encontro. Como desvendar seu mistério? O que separa e une esse seu sonho e a vida de vigília?

De repente, cônscia da fusão entre o ser sonhado e a sonhadora, no embate entre a vida de vigília e a magia onírica, a mulher descobre que a menina tão meiga e faceira, bem criança ainda, viera interromper-lhe não apenas o erotismo do sonho que acabara de ter. Ela viera interromper, isso sim, sua própria fantasia, sua fuga de viver. Como na arte, um corte, um duplo corte! A mulher acorda aos primeiros raios de sol.

Outono de 2025

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