Enquanto desfio essa intrincada malha do viver num tempo ainda tão desafiador e indefinível como é o pós-moderno século XXI, noto que acompanhamos, com perplexidade e ceticismo, os acontecimentos por aqui e pelo mundo. Conflitos intermináveis, guerras, desmatamento, incêndios, violência urbana, querelas sobre riscos e benefícios da Inteligência Artificial e tantas outras coisas que tais.
Ainda que tardiamente, gostaria de contar aqui o encantamento vivido numa tarde qualquer de sábado ao assistir entrevista com o fotógrafo Sebastião Salgado, em O Sal da Terra, documentário sobre sua história de vida, sua obra eloquente e grandiosa e o visionário projeto, dele e de Lélia, de reflorestar o que fora terra árida e devastada, herança de família, às margens do rio Doce. Mais que retratar diferentes etnias e continentes, Sebastião Salgado capta a alma de seres e paisagens inóspitas, que se revelam ao outro envoltos em segredos insondáveis. Quanto mistério e quanta beleza pode-se encontrar na relação entre aquele que olha - e que olhando, vê! - e o que se deixa olhar! Tendo percorrido terras distantes, é aqui bem perto, no coração da Mata Atlântica, a 200 km da costa brasileira, que o Projeto Terra, com seu programa de desenvolvimento sustentável e de educação ambiental, vem sendo motor de transformação social ao formar milhares de pessoas, desde crianças e jovens a produtores da região de Aimorés, trazendo-lhes, juntamente com a qualidade de vida e a renda alcançadas com o replantio de 700.000 mudas, a expansão da fauna e da flora e principalmente a compreensão da importância da água e do clima para a vida do homem e do planeta. O Projeto Terra pode ser um laboratório para o mundo.
Poderia também, talvez, trazer de volta e comentar a poética imagem do rio Sena, que irrompe tela adentro em plena manhã de domingo, colocando em cena para o mundo a belíssima Paris em festa na abertura das Olimpíadas de 2024. Mereceriam destaque o esforço, a disciplina, a dedicação e a coragem de nossos atletas olímpicos e paraolímpicos, que nos ensinam que o que fora impossível pensar um dia possa ser superado pela ousadia, por muito trabalho, pela vontade e determinação. Segundo o oráculo de Delfos, a força do desejo cria o que até então não existia. Há beleza na reinvenção desses heróis da contemporaneidade. A superação da dor e do limite, o movimento, o ritmo, a leveza, a dança no ar e nas alturas da ginasta Rebecca Andrade, por exemplo, assim como as medalhas de ouro de Gabrielzinho, são emblemáticos e nos fazem lembrar o legado dos deuses de Delfos, desde os gregos da antiguidade até o super-homem de Nietzsche. Seriam eles, jovens homens e mulheres de nós contemporâneos, os semideuses de nossa era?
De Homero, mítico autor da Ilíada e da Odisseia, e de Hesíodo, com sua Teogonia, herdamos as múltiplas histórias que ainda hoje reverberam em outras tantas histórias, cujos protagonistas se reinventam, como heróis e heroínas, tantas vezes disfarçados nas vestes da gente comum que habita a periferia das metrópoles e as favelas. Anônimos, eles se esforçam para alcançar o legado de força, grandeza de caráter e beleza trazido pela civilização do Ocidente. Vale a pena lembrar que o ideal estético na Grécia antiga, fundado em valores como proporção, simetria e harmonia, constitui o cânone de que se compõem a Beleza dos artistas e a Beleza dos filósofos, como as distingue Umberto Eco em sua História da Beleza.
Com o pensamento de Nietzsche na modernidade, o sonho de superação e reinvenção do super-homem ganha ainda mais força e se renova com a criação e suas criaturas. Em meio às antíteses entre o caos e a perfeição, atravessados pela experiência do horror e da beleza, da morte e da vida, seguimos oscilando face à tensão e ambivalência entre a orgia dionisíaca e a proporção e harmonia apolíneas. Ao reinventarmos a vida, cada coisa a seu tempo, redescobrimos que o impossível é superado pela ousadia, pela disciplina e determinação, pelo desejo e vontade de potência.
Há grandeza humana em meio ao caos.
Vitória, 16 de setembro de 2024.