O tempo e o rio

I

Vi de relance, há poucos dias, uma matéria jornalística a respeito da região de Aimorés, nossa vizinha a noroeste do Espírito Santo, onde se localiza a centenária fazenda herdada por Sebastião Salgado, que vem se transformando em referência nacional e internacional no que concerne à necessidade de preservação das matas e da vida no planeta. O reflorestamento de toda aquela região resulta do belo e persistente trabalho do fotógrafo - artista que nos enche de orgulho - e de sua mulher, Lélia Salgado. Não há como não se encantar com a beleza da floresta, ainda jovem porém já formada, com o reaparecimento de raras espécies da flora e de pequenos e vários animais, com as dezenas - ou seriam centenas? - de nascentes recuperadas. Não há como não se comover com o depoimento desse brasileiro que saiu do interior do país para fazer lembrar bem o seu nome: “Temos a esperança de que o rio Doce voltará a ser o que foi um dia”. Todos sabemos o que o rio Doce representa para o desenvolvimento do Espírito Santo e, principalmente, o que ele significa para a admirável gente que compõe sua população ribeirinha.

Pois é pensando no rio Doce que vou margeando parte de sua extensa geografia, fonte de vida e de sonhos, para narrar minúscula experiência. De visita às terras em que nasceu, no imenso território de Minas Gerais, banhando os olhos com a visão de suas águas turvas, lá pelas bandas de Governador Valadares, ei-lo imensamente pungente nos rasgos da memória.

Não sei por que não trouxe Mrs. Dalloway comigo. Acho que teria um pouco de conforto ou pelo menos companhia na minha incessante flannérie. Andei tanto e não me cansei. Quanto mais percebo o contraste entre o que foi e o que ainda resta da voluptuosidade do rio Doce, mais aumenta o meu encantamento por ele. O tempo, titânico em sua própria origem e natureza, corre, à revelia das minhas lembranças, que teimam em invadir meus mais simples e comezinhos afazeres. O tempo, como o rio, segue impetuoso, indiferente aos rastros e aos homens. Embora não a tenha trazido comigo, Clarissa Dalloway me consola. Acho que hoje até mesmo a prefiro, com seu habitual senso de observação, sua sutileza, seu perspicaz olhar para o que há ao redor, à outra Clarice. Uma e outra, cada uma à sua maneira, com seu olhar implacável sobre minúcias e aparentes tolices humanas, me ajudariam em minhas especulações. A cidade e o mundo são outros. Mas um certo jeito de contemplá-los por um breve momento faz interromper a voracidade dos dias, que não espera a minha preguiça.

Então arrasto um pouco a cadeira e a mesinha simples para perto da janela, de onde posso ver o rio e toda a vegetação que circunda a ilha, bem ali ao alcance dos meus olhos na varanda do apartamento de meu filho, para quem, ainda tão jovem, passa incólume a metáfora do rio. Sim, o apartamento, ao qual nunca mais retornarei, fica defronte ao trecho encachoeirado do rio. O murmúrio das águas chega atravessado pelo barulho acelerado de motos e carros. No entanto, a claridade que vaza por entre a densa vegetação não deixa entrever os enganos.

II

Parto da estação sem saber ao certo o que sinto: se o desejo de voltar, se a saudade do que em mim se imprime e deixa sulcos em minha memória, dor da despedida. Sempre eclode essa vontade de ficar quando é preciso partir. Sempre em trânsito, retorno e despedida desenham e confundem minha existência.

Acho que posso entender Cézanne tão simples e completamente. A paisagem me olha e me devora. Sou atravessada por tudo que olho. O trem segue lentamente e meu olhar se estende até longínquas sombras e formas, que me arrastam como parte delas. Pastagens, montanhas, casas, quintais, pomares, casinhas humildes e distantes, indícios de uma vida calma e fora do tempo, que já vai muito longe.

Uma voz anuncia a parada do trem na estação próxima. Casas à beira da estrada de ferro parecem contar a quem passa que ali toda a gente leva uma vida à toa, à toa... Histórias, talvez, de um tempo em que se chegava à janela para ver o trem passar sem perceber a passagem das horas. Uma igrejinha sobrevive.

À medida que o trem avança em sua marcha regular, ziguezagueando às margens do rio, rio manso às vezes, encachoeirado aqui ou ali, reconheço outra voz, outra melodia, outra imagem: a poesia vem dividir com a paisagem a minha atenção. Está lá, inteira, a poesia guardada nas páginas do livro em minhas mãos entreaberto, jorrando da tela que insiste em me roubar o olhar. Volto à janela do trem. O rio desliza, serpenteia, desaparece e inesperadamente ressurge e se alarga para a minha alegria doída de ver toda uma história, milhares de histórias, diferentes, remotas, patéticas, todas condensadas numa só imagem. Imagem que se multiplica em vestígios e ausências. As casinhas lá longe não me deixam descansar a lembrança inventada de ter um dia ali vivido, ali corrido e brincado, indagando jeitos e costumes de quem nem conheci. São casas pequenas, algumas quase centenárias, umas perto da estrada de ferro, outras mais ao longe, ensaiando riquezas e heranças coloniais, sabe-se lá de quantas vidas ali entrelaçadas. Chamam a minha atenção aquelas rodeadas de mangueiras ou com varandas engalanadas de trepadeiras em flor.

A poesia do rio Doce me transporta o tempo todo para a outra margem. Estou sempre a querer saber o que que há do lado de lá.

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